Capitulo III: Ação da Igreja junto aos construtores da Sociedade pluralista na América Latina

1206 A Igreja colabora por meio do anúncio da Boa Nova e mediante uma radical conversão à justiça e ao amor, para transformar, a partir do seu íntimo, as estruturas da sociedade pluralista, para que respeitem e promovam a dignidade da pessoa humana e lhe ensejem a possibilidade de realizar a sua vocação suprema de comunhão com Deus e dos homens entre si (Cf. EN 18, 19, 20).

3.1. Situação

Limitamo-nos a enfocar alguns aspectos que mais diretamente desafiam nossa ação pastoral, fazendo assim uma como síntese de questões tratadas em diversos lugares.

1207 Desde Medellin, percebem-se sobretudo duas tendências evidentes:

a) Por um lado, a tendência à modernização, com forte crescimento econômico, urbanização crescente do Continente, tecnificação das estruturas econômicas, políticas, militares, etc...

b) Por outro, a tendência à pauperização e crescente exclusão das grandes maiorias latino-americanas da vida produtiva. Por isso, o povo pobre da América Latina anseia por uma sociedade de maior igualdade, justiça e participação em todos os níveis.

1208 Essas tendências contraditórias favorecem a apropriação, por uma minoria privilegiada, de grande parte da riqueza, assim como dos benefícios criados pela ciência e cultura; por outro lado, geram a pobreza duma grande maioria com a consciência de sua exclusão e do bloqueio de suas crescentes aspirações de justiça e participação. Não obstante, verificamos que as classes médias estão aumentando em muitos países da América Latina.

1209 Deste modo, surge um conflito estrutural grave: "A crescente riqueza de alguns poucos corre paralela com a crescente miséria das massas" (João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 4. AAS LXXI, p. 200).

3.2. Critérios

Doutrinais

1210 Vivemos numa sociedade pluralista, na qual se encontram diversas religiões, concepções filosóficas, ideologias, sistemas de valores que, encarnando-se em diferentes movimentos históricos, propõem-se construir a sociedade do futuro, rejeitando a tutela de qualquer instância inquestionável.

1211 Sabemos que a Igreja, ao trazer uma valiosa colaboração para a construção da sociedade, não se atribui competência para propor modelos alternativos.

Por isso, adotamos os critérios doutrinais seguintes:

1212 a) Não reivindicamos privilégio algum para a Igreja; respeitamos os direitos de todos e a sinceridade de todas as convicções, com pleno respeito para a autonomia das realidades terrestres.

1213 b) Contudo, exigimos para a Igreja o direito de dar testemunho de sua mensagem e de usar sua palavra profética de anúncio e denúncia em sentido evangélico, na correção das falsas imagens da sociedade, incompatíveis com a visão cristã.

1214 c) Defendemos os direitos dos organismos intermediários, dentro do princípio de subsidiariedade, inclusive dos criados pela própria Igreja, em colaboração com tudo o que se refere ao bem comum.

Pastorais

Advogamos:

1215 a) A superação da distinção entre pastoral de elites e pastoral popular. A pastoral é uma só. Penetra em "quadros" ou "elites" evangelizadoras; afeta todos os âmbitos da vida social; dinamiza a vida da sociedade e, ao mesmo tempo, põe-se a seu serviço.

1216 b) A responsabilidade específica dos leigos na construção da sociedade temporal, conforme inculca a Evangelii Nuntiandi.

1217 c) A preocupação preferencial em defender e promover os direitos dos pobres, marginalizados e oprimidos.

1218 d) A preocupação preferencial pelos jovens, da parte da Igreja, que neles vê uma força transformadora da sociedade.

1219 e) A responsabilidade insubstituível da mulher, cuja colaboração é indispensável para a humanização dos processos transformadores, como garantia de que o amor é uma dimensão da vida e da mudança e porque sua perspectiva é insubstituível para a representação cabal das necessidades e esperanças do povo.

3.3. Opções e linhas de ação

Princípios gerais de ação pastoral

1220 Sabemos que o povo, em sua dimensão total e em sua forma particular, mediante suas organizações próprias, constrói a sociedade pluralista.Diante deste desafio, temos consciência de que a missão da Igreja não se reduz a exortar os diversos grupos sociais e categorias profissionais à construção duma sociedade nova, para o povo e com o povo, nem se trata tão-somente de estimular cada um dos grupos e categorias a darem, com honestidade e competência, sua contribuição específica, mas a serem outrossim agentes duma conscientização geral de responsabilidade comum perante um desafio que exige a participação de todos.

1221 Temos consciência de que a transformação das estruturas é uma expressão externa da conversão interior. Sabemos que esta conversão começa por nós mesmos. Sem o testemunho duma Igreja convertida, vãs seriam nossas palavras de pastores.

1222 Na Igreja, como unidade dinamizadora e em vista duma eficácia permanente de sua ação, assumimos a necessidade duma pastoral orgânica que compreenda, entre outras coisas: princípios orientadores, objetivos, opções, estratégias, iniciativas práticas, etc.

Linhas de ação pastoral

Princípios orientadores

1223 * A defesa e promoção da inalienável dignidade da pessoa humana;

1224 * O destino universal dos bens criados por Deus e produzidos pelos homens, que não podem esquecer que "uma hipoteca social pesa sobre toda propriedade privada" (João Paulo II, Discurso Inaugural III, 4. AAS LXXI, p. 200);

1225 * O recurso às fontes da força divina: a oração assídua, a meditação da palavra de Deus, que sempre questiona, e a participação eucarística dos construtores da sociedade que, com suas responsabilidades, acham-se rodeados de tentações que os inclinam a encerrar-se no âmbito das realidades terrenas sem abertura para as exigências do Evangelho;

1226 * A comunidade cristã conduzida pelo Bispo estabelecerá a ponte de contato e diálogo com os construtores da sociedade temporal, a fim de iluminá-los com a visão cristã, estimulá-los com gestos significativos e acompanhá-los com atuações eficazes;

1227 * Neste contato e diálogo deve circular, numa atitude de escuta sincera e acolhedora, a problemática trazida por eles do seu próprio ambiente temporal.Assim poderemos descobrir os critérios, normas e caminhos por onde aprofundar e atualizar a doutrina social da Igreja, no sentido da elaboração duma ética capaz de formular as respostas cristãs aos grandes problemas da cultura contemporânea .Exortamos a todos a lutarem contra a corrupção econômica em seus diversos níveis, tanto na administração pública como nos negócios particulares, pois com ela causa-se grave prejuízo à grande maioria.

1228 * Este diálogo requer iniciativas que permitam o encontro e relacionamento estreito com todos os que colaboram na construção da sociedade, de tal sorte que eles descubram a sua complementariedade e convergência.Pela mesma razão, nesta ação, deve-se trabalhar prioritariamente com aqueles que detêm poder decisório.Isto não exclui o reconhecimento do valor construtivo de tensões sociais que, dentro das exigências da justiça, contribuem para garantir a liberdade de direitos, especialmente dos mais fracos.

Objetivos, opções e estratégias

1229 * Formar nos diversos setores pastorais pessoas capazes de exercer nos mesmos liderança como fermento evangelizador.

1230 * Elaborar, com pessoas de cada setor, normas de conduta cristã que sejam objeto de reflexão e aplicação e que se submetam a permanente revisão.

1231 * Promover encontros que reúnem pessoas de setores pastorais diversos, para confrontar suas experiências e em vista da convergência de sua ação.

1232 * Estimular a elaboração de alternativas viáveis para a ação evangelizadora, tendentes à renovação crista das estruturas sociais.

1233 * Promover a formação de sacerdotes e diáconos especializados, e os novos ministérios confiados aos leigos, que se adaptem às necessidades pastorais de cada setor.

1234 * Desenvolver movimentos especializados que reúnem os elementos disponíveis para a evangelização do próprio ambiente.

1235 * Saber valorizar os meios pobres, humildes, populares, inclusive artesanais, para comunicar a mensagem.

1236 * Preservar os recursos naturais criados por Deus para todos os homens, a fim de transmiti-tos como herança às gerações vindouras.

Iniciativas práticas

1237 A Igreja leva sua palavra com simpatia e sem prevenção àqueles que ela sabe que a esperam e precisam de sua orientação ou estímulo. Aos que elaboram, difundem e realizam idéias, valores e decisões:

1238 Aos políticos e homens de governo, lembramos as palavras do Concílio Vaticano II: "Só Deus é a fonte da vossa autoridade e o fundamento das vossas leis" (Vaticano II, Mensagem à Humanidade, nº 2, aos governantes) por mediação do povo.Nós afirmamos a nobreza e dignidade do compromisso com uma atividade orientada para a consolidação da concórdia interna e segurança externa, estimulando a ação sensível e inteligente do político para melhor conduzir o Estado, para conseguir o bem comum e para conciliar eficazmente a liberdade, a justiça e a igualdade, numa genuína sociedade participada. "A comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas, cada qual em seu próprio terreno. Todavia ambas, embora por títulos diferentes, acham-se a serviço da vocação pessoal e social do homem.Este serviço, ambas o realizarão com tanto maior eficácia, para o bem de todos, quanto melhor cultivarem uma sadia cooperação entre si, levando em conta as circunstâncias de tempo e lugar" (GS 76).

1239 Ao mundo intelectual e universitário, para que atue com liberdade espiritual, cumpra com autenticidade sua função criativa, se disponha para a educação política - diferente da mera politização - e satisfaça a lógica interior da reflexão e o rigor científico, já que deste mundo se esperam projetos e linhas teóricas sólidas para a construção da nova sociedade (Cf. Vat. II, Mensagem à Humanidade, Aos Homens do pensamento e da ciência).

1240 Aos cientistas, técnicos e forjadores da sociedade tecnológica, para que incentivem o espírito científico com amor à verdade, a fim de investigar os enigmas do universo e dominar a terra; para que evitem os efeitos negativos duma sociedade hedonista e a tentação tecnocrática e apliquem a força da tecnologia à criação de bens e à invenção de meios destinados a resgatar o homem do subdesenvolvimento.Deles se esperam notadamente estudos e investigações tendentes à síntese entre a ciência e a fé.Exortamos a todos os pensadores conscientes do valor da sabedoria - cuja fonte primeira e última é o Logos - e preocupados com a criação do novo humanismo, a que atentem à grande afirmação da Gaudium et Spes: "O destino futuro do mundo corre perigo, se não se formarem homens mais instruídos nesta sabedoria" (15c).Para isso, é preciso um grande esforço de diálogo interdisciplinar da teologia, filosofia e ciências, à procura de novas sínteses.

1241 Aos responsáveis pelos meios de comunicação, para que elaborem e respeitem um código de ética da informação e comunicação, para que tomem consciência de que a neutralidade instrumental das meios os torna disponíveis para a bem ou para o mal; para que sirvam à verdade, objetividade, educação e conhecimento suficiente da realidade.

1242 Aos criadores em arte, para que se esmerem em intuir os rumos do homem, pressintam e interpretem suas crises, ampliem a dimensão estética da vida humana e contribuam para a personalização do homem concreto.

1243 Aos juristas, segundo o seu saber especial, para que reivindiquem o valor da lei na relação entre governantes e governados e para a justa disciplina da sociedade.Aos juízes, para que não comprometam sua independência, julguem com eqüidade e inteligência e sirvam, através de suas sentenças, para a educação de governantes e governados no cumprimento das obrigações e conhecimento de seus direitos.

1244 Aos operários: no mundo que se urbaniza e se industrializa, cresce o papel dos operários "como principais artífices das prodigiosas transformações que o mundo hoje experimenta" (Vat. II, Mensagem aos Trabalhadores, no. 6). Para isto, devem empenhar sua exigência na busca de novas idéias; renovar-se a si mesmos e contribuir de maneira ainda mais decidida para construir a América Latina do porvir.Não esqueçam o que o Papa lhes disse no mesmo discurso: é direito dos operários "criar livremente organizações para defender, promover seus interesses, para contribuir responsavelmente para o bem comum" (João Paulo II, Alocução Operários Monterrey, 3 - AAS LXXI, p. 241).

1245 Aos camponeses: vós sois uma força dinamizadora na construção duma sociedade mais participada. Advogando por vós, o Santo Padre dirigiu estas palavras aos setores de poder: "Dá vossa parte, responsáveis pelos povos, classes poderosas que mantendes por vezes improdutivas as terras que escondem o pão que falta a tantas famílias: a consciência humana, a consciência dos povos, o clamor do desvalido e, sobretudo, a voz de Deus, a voz da Igreja vos repete comigo: não é justo, não é humano, não é cristão continuar com certas situações claramente injustas.Devem-se pôr em prática medidas concretas, eficazes, em nível local, nacional e internacional, na vasta linha traçada pela Encíclica Mater et Magistra... Irmãos e filhos: trabalhai por vossa elevação humana" (João Paulo II, Alocução Oaxaca, - AAS LXXI, p. 210).

1246 A sociedade econômica, para que os economistas contribuam com um pensamento criativo a dar respostas rápidas às exigências fundamentais do homem e da sociedade.Para que os empresários, tendo presente a função social da empresa, atuem concebendo-a não só como fator de produção e lucro, mas como comunidade de pessoas e como elemento duma sociedade pluralista, unicamente viável quando não há concentração excessiva do poder econômico.

1247 Aos militares: lembramo-lhes como Medellin que "sua missão é dar garantia às liberdades políticas dos cidadãos, em vez de pôr-lhes obstáculos" (Pastoral de Elites, 20).Tenham eles consciência de sua missão: garantir a paz e a segurança de todos.Jamais abusem da força. Sejam antes defensores da força do direito. Propiciem outrossim uma convivência livre, participativa e pluralista.

1248 Aos funcionários, para que assumam sua atividade como um serviço, porque a dignidade da função e da vida pública reside no fato de que o seu destinatário natural é a sociedade e, sobretudo, os que menos possuem e mais dependem do bom funcionamento do serviço público.

1249 A todos, por fim, que contribuam para o funcionamento normal da sociedade: profissionais liberais, comerciantes, para que assumam sua missão em espírito de serviço ao povo, que deles espera a defesa de sua vida, de seus direitos e a. promoção do seu bem-estar.

3.4. Conclusão

1250 Na conjuntura atual da América Latina, as mudanças poderão ser rápidas e profundas em benefício de todos, especialmente dos pobres, por serem estes os mais afetados, e dos jovens que, em breve, assumirão os destinos do Continente.

1251 Para tanto, propomos a mobilização de todos os homens de boa vontade. Que eles se unam, com novas esperanças, para essa tarefa imensa.Queremos escutá-los com viva sensibilidade; unir-nos a eles em sua ação construtiva.

1252 Com nossos irmãos que professam a mesma fé em Cristo, embora não pertençam à Igreja Católica, esperamos unir esforços, preparando constantes e progressivas convergências que apressem a chegada do Reino de Deus.

1253 Aos filhos da Igreja que se empenham em postos de vanguarda, queremos transmitir-lhes nossa confiança em sua, ação, fazendo deles nossos mensageiros de novas esperanças. Sabemos que, no Evangelho, na oração e na Eucaristia, procurarão encontrar a fonte de constantes revisões de vida e a força de Deus para sua ação transformadora.

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