Respeitar a dignidade do moribundo

Considerações éticas sobre a eutanásia

ACADEMIA PONTIFÍCIA PARA A VIDA

-Prof. Juan de Dios VIAL CORREIA, Presidente
-Dom. Elio SGRECCIA, Vice-presidente

A partir da década de 70, começando nos países mais desenvolvidos do mundo, foi-se difundindo uma insistente campanha a favor da eutanásia, entendida como ação ou omissão que por sua natureza e em suas intenções provoca a interrupção da vida do doente grave ou também da criança recém-nascida mal formado. O motivo que se aduz pelo geral é que dessa maneira quer poupar o paciente de sofrimentos definidos inúteis.

Com esse objetivo, levaram-se a cabo campanhas e estratégias, que contaram com o apoio de associações pró-eutanásia em nível internacional, com manifestos públicos assinados por intelectuais e cientistas, com publicações favoráveis a essas propostas -algumas acompanhadas inclusive de instruções para ensinar os doentes, e os não doentes, os diversos modos de pôr fim à vida, quando esta se considere insuportável-, com pesquisa que recolhem opiniões de médicos ou personagens famosos, favoráveis à prática da eutanásia e, por último, com propostas de leis apresentadas nos Parlamentos, além das tentativas de provocar sentenças dos tribunais que poderiam permitir de fato a prática da eutanásia ou, ao menos, que fique impune.

O recente caso da Holanda, onde já existia desde fazia alguns anos uma espécie de regulamentação que eximia de castigo ao médico que praticasse a eutanásia a pedido do paciente, expõe um caso de autêntica legalização da eutanásia solicitada, embora limitada a casos de doença grave e irreversível, acompanhada de sofrimentos e a condição de que essa situação seja submetida a uma verificação médica que se apresenta como rigorosa.

O cerne da justificação que quer utilizar e apresentar à opinião pública está constituído substancialmente por duas idéias fundamentais: o princípio de autonomia do sujeito, que teria direito a dispor, de maneira absoluta, de sua própria vida; e a convicção, mais ou menos explicitada, da insuportabilidade e inutilidade da dor que pode às vezes acompanhar a morte.

A Igreja seguiu com apreensão esse desenvolvimento de pensamento, reconhecendo nele uma das manifestações da debilitação espiritual e moral com respeito à dignidade da pessoa moribunda e um caminho "utilitarista" de desinteresse frente às verdadeiras necessidades do paciente.

Em suas reflexões, manteve um contato constante com os agentes e especialistas da medicina, tratando de ser fiel aos princípios e aos valores da humanidade compartilhados pela maior parte dos homens, à luz da razão iluminada pela fé, e produzindo documentos que mereceram a avaliação de profissionais e de grande parte da opinião pública. Queremos lembrar a Declaração sobre a eutanásia (1980), publicada há vinte anos pela Congregação para a doutrina da fé, o documento do Conselho pontifício "Cor unum" Questões éticas relativas aos doentes graves e aos moribundos (1981), a encíclica Evangelium vitae (1995) do Papa João Paulo II (em particular os números 64-67) e a Carta dos agentes sanitários, elaborada pelo Conselho pontifício para a pastoral da saúde (1995).

Estes documentos do Magistério não se limitam a definir a eutanásia como moralmente inaceitável, "assim que eliminação deliberada de uma pessoa humana" inocente (cf. Evangelium vitae, 65. O pensamento da encíclica se precisa no número 57, permitindo assim uma correta interpretação do texto do número 65, que acabamos de citar), ou como "opróbio" (cf. Gaudium et spes, 27), mas sim também oferecem um itinerário de assistência ao doente grave e ao moribundo, que se inspire, tanto sob o aspecto da ética médica como sob o espiritual e pastoral, no respeito à dignidade da pessoa, no respeito à vida e aos valores da fraternidade e a solidariedade, impulsionando às pessoas e às instituições a responder com testemunhos concretos aos desafios atuais de uma cultura de morte que se difunde cada vez mais.

Recentemente, esta Academia pontifícia para a vida dedicou uma de suas assembléias gerais (depois de um trabalho de preparação que durou vários meses) a esse mesmo tema, e publicou em seguida as Atas conclusivas no livro titulado "The Dignity of the Dying Person" (2000).

Vale a pena recordar aqui, até remetendo aos documentos que acabamos de citar, que a dor dos pacientes, da qual se fala e sobre o que quer fundamentar uma espécie de justificação ou quase obrigatoriedade da eutanásia e do suicídio assistido, é hoje mais que nunca uma dor "curável" com os meios adequados da analgesia e dos cuidados paliativos proporcionados à própria dor; o paciente de receber uma adequada assistência humana e espiritual, pode receber alívio e consolo em um clima de apoio psicológico e afetivo.

As possíveis solicitações de morte por parte de pessoas que sofrem gravemente, como demonstram as pesquisa realizadas entre os pacientes e os testemunhos de clínicos próximos às situações dos moribundos, quase sempre constituem a manifestação extrema de uma premente solicitude do paciente que quer receber mais atenção e cercania humana, além de cuidados adequados, ambos os elementos que atualmente às vezes faltam nos hospitais. Resulta hoje mais verdadeira que nunca a consideração já proposta pela Carta dos agentes sanitários: "O doente que se sente rodeado pela presença amorosa, humana e cristã, não cai na depressão e na angústia de quem, pelo contrário, sente-se abandonado a seu destino de sofrimento e morte e pede que acabem com sua vida. Por isso a eutanásia é uma derrota de quem a teoriza, decide e a pratica" (N. 149).

A este respeito, podemos nos perguntar se, sob a justificação de que a dor do paciente é insuportável, não se esconde mas bem a incapacidade dos "sãos" de acompanhar ao moribundo na prova de seu sofrimento, de dar sentido à dor humana -que, pelo resto, nunca se pode eliminar totalmente da experiência da vida humana- e uma espécie de rechaço da idéia mesma de sofrimento, cada vez mais difundido em nossa sociedade onde domina o bem-estar e o hedonismo.

Tampouco se tem que excluir que detrás de algumas campanhas em favor da eutanásia se ocultam razões de gasto público, considerado insustentável e inútil frente à prolongação de certas enfermidades.

Declarando curável, no sentido médico, a dor e propondo, como compromisso de solidariedade, a assistência aos que sofrem é como se chega a afirmar o verdadeiro humanismo: a dor humana exige amor e participação solidária, não a expedita violência da morte antecipada.

Pelo resto, o chamado princípio de autonomia, com o que às vezes quer exasperar o conceito de liberdade individual, impulsionando-o além de seus limites racionais, certamente não pode justificar a supressão da vida própria ou alheia. Com efeito, a autonomia pessoal tem como primeiro pressuposto o fato de estar vivos e exige a responsabilidade do indivíduo, que é livre para fazer o bem segundo a verdade; só chegará a afirmar-se a si mesmo, sem contradições, reconhecendo (também em uma perspectiva puramente racional) que recebeu como dom sua vida, da que, por conseguinte, não é "amo absoluto"; em definitiva, suprimir a vida significa destruir as raízes mesmas da liberdade e da autonomia da pessoa.

Além disso, quando a sociedade chega a legitimar a supressão do indivíduo -sem importar em que estágio de vida se encontre, ou qual seja o grau de debilitação de sua saúde- renega de sua finalidade e do fundamento mesmo de sua existência, abrindo o caminho a iniqüidades cada vez mais graves.

Por último, na legitimação da eutanásia se induz uma cumplicidade perversa do médico, o qual, por sua identidade profissional e em virtude das  exigências deontológicas a ela vinculadas, está chamado sempre a sustentar a vida e a curar a dor, e jamais a dar morte "nem sequer movido pelas prementes solicitudes de qualquer" (Juramento de Hipócrates). Essa convicção ética e deontológica se manteve intacta, em sua substância, ao longo dos séculos, como o confirma, por exemplo, a Declaração sobre a eutanásia da Associação médica mundial (39ª assembléia, Madri 1987): "A eutanásia, quer dizer, o ato de pôr fim deliberadamente à vida de um paciente, tanto a pedido do paciente mesmo como por solicitude de seus familiares, é imoral. Isto não impede ao médico respeitar o desejo de um paciente de permitir que o processo natural da morte siga seu curso na fase final da enfermidade".

A condenação da eutanásia que se faz na encíclica Evangelium vitae por ser "uma grave violação da lei de Deus, assim que eliminação deliberada e moralmente inaceitável de uma pessoa humana" (N. 65) entranha o peso da razão ética universal (funda-se na lei natural) e a instância elementar da fé em Deus criador e custódio de toda pessoa humana.

Assim, a linha de comportamento com o doente grave e o moribundo deverá inspirar-se no respeito à vida e à dignidade da pessoa; deverá perseguir como finalidade fazer disponíveis as terapias proporcionadas, sem utilizar nenhuma forma de "encarniçamento terapêutica"; deverá acatar a vontade do paciente quando se tratar de terapias extraordinárias ou perigosas -que não se tem obrigação moral de utilizar-; deverá assegurar sempre os cuidados ordinários (que incluem a alimentação e a hidratação, embora seja artificiais) e comprometer-se nos cuidados paliativos, sobre tudo na adequada terapia da dor, favorecendo sempre o diálogo e a informação do paciente.

Diante da proximidade de uma morte que resulta inevitável e iminente "é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que só produziriam uma prolongação precária e penosa da vida (cf. Declaração sobre a eutanásia, parte IV), dado que existe grande diferencia ética entre "provocar a morte" e "permitir a morte": a primeira atitude rechaça e nega a vida; a segunda, em troca, aceita seu fim natural.

As formas de assistência domiciliar -hoje cada vez mais desenvolvidas, sobretudo para os doentes de câncer-, o apoio psicológico e espiritual dos familiares, dos profissionais e dos voluntários, podem e devem transmitir a convicção de que cada momento da vida e cada sofrimento se podem viver com amor e som muito valiosos perante os homens e perante Deus. O clima de solidariedade fraterna dissipa e vence ao clima de solidão e à tentação de desespero.

Especialmente a assistência religiosa -que é um direito e uma ajuda valiosa para todo paciente e não só na fase final da vida-, se for acolhida, transfigura a dor mesmo em um ato de amor redentor e a morte em abertura para a vida em Deus.

As breves considerações que oferecemos aqui se somam ao constante ensino da Igreja, a qual, tratando de ser fiel a seu mandato de "atualizar" na história o olhar de amor de Deus ao homem, sobre tudo quando é fraco e sofre, segue anunciando com força o evangelho da vida, com a certeza de que pode achar eco e ser acolhido no coração de toda pessoa de boa vontade. Com efeito, todos estamos convidados a formar parte do "povo da vida e para a vida" (cf. Evangelium vitae, 101).

Cidade do Vaticano, 9 de dezembro de 2000

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