Fazer um aborto agora é um direito constitucional na França, que se torna oficialmente o segundo país na história a dar este passo, algumas décadas depois da Iugoslávia comunista de Josip Broz “Tito” na década de 1970.

Ao tomar esta medida, a França também foi além da situação que prevalecia nos EUA antes da anulação do caso Roe x Wade em 2022, que loberou o aborto no país em 1973 mas era apenas uma decisão judicial.

Então, o que significa esta mudança sem precedentes, tanto na França como a nível internacional?

Depois de vários meses de debate parlamentar, deputados e senadores franceses reuniram-se no Congresso em Versalhes, votando no dia 4 de março por uma maioria esmagadora (780-72) a favor da emenda constitucional que torna o aborto uma “liberdade garantida”. A emenda já havia sido aprovada pela Assembleia Nacional e pelo Senado francês no início deste ano.

Enquanto isso, na Esplanada do Trocadero, em Paris, aconteceram cenas de júbilo, com bombas de fumaça roxas voando ao ritmo do hit pop de Beyoncé, Run the World (Girls), tendo como pano de fundo a reluzente Torre Eiffel com a mensagem "Meu corpo, minha escolha".

Estas imagens, destoantes da seriedade do assunto, juntamente com a pompa e a teatralidade do Congresso de Versalhes, provocaram a consternação de vários observadores e internautas, incluindo alguns defensores do aborto, que denunciaram a indecência de muitos partidários políticos deste projeto de lei.

“A Constituição de nosso país teria sido honrada em inscrever em seu coração a proteção de mulheres e crianças”, escreveu a Conferência Episcopal Francesa num comunicado divulgado no dia da votação. Observaram que “de todos os países europeus, mesmo da Europa Ocidental, a França é o único onde o número de abortos não diminuiu e até aumentou nos últimos dois anos”.

Estas observações são corroboradas pelo Instituto Nacional Francês de Estudos Demográficos, que registrou um número recorde de 232 mil abortos em 2022, um aumento acentuado em comparação com anos anteriores, com uma proporção de um aborto para cada três nascimentos em 2022, em comparação com um por cada quatro em 2017.

Uma “manobra de publicidade”

Na verdade, se o presidente Emmanuel Macron iniciou este projeto para emendar a constituição, foi menos para proteger um "direito ameaçado" na França do que para fazer promessas aos seus eleitores de esquerda num contexto social tenso e enviar uma mensagem ao resto do mundo, a começar pelos EUA, cuja anulação do caso Roe x Wade chocou o mundo ocidental em junho de 2022. É o que se diz diretamente na exposição de motivos do projeto de lei, que afirma que o direito ao aborto está ameaçado noutros países, como os EUA, a Polônia e a Hungria.

Para os opositores do projeto de lei, esta iniciativa francesa nada mais é do que uma “manobra de publicidade”, cujas consequências são difíceis de medir.

“É totalmente absurdo”, disse a advogada constitucional Anne-Marie Le Pourhiet numa entrevista ao Le Figaro durante os debates parlamentares de janeiro. “A Constituição está sendo usada para inscrever simbolicamente uma reivindicação categórica baseada em demandas sociais tirânicas, transformando-a em um autosserviço normativo em que cada categoria, cada grupo de pressão passa a exigir que seu direito pessoal seja inscrito”.

No entanto, a estratégia do presidente francês deu frutos, pois grande parte dos principais meios de comunicação internacionais lhe prestaram homenagens, desde o El País na Espanha; ao Corriere Della Sera, na Itália; The Guardian no Reino Unido; Die Welt na Alemanha; e Clarín na Argentina. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde também elogiou a iniciativa da França.

Macron, evocando o “orgulho francês” e uma “mensagem universal”, aproveitou o entusiasmo mediático gerado pela votação para anunciar que no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, seria feita uma cerimônia formal de inscrição na Constituição, aberta ao público pela primeira vez, na Place Vendôme, em Paris.

Mudança gradual

Segundo o bispo de Nanterre e ex-capelão parlamentar, dom Matthieu Rougé, nos subúrbios de Paris, a emenda constitucional da França testemunha uma inversão internacional de valores, segundo a qual o aborto é agora um “direito fundamental por excelência”.

Numa entrevista à rede de rádio católica KTO, ele lamentou a “lógica mediática global” que tende a estereotipar toda a oposição a esta prática, e que não perdoou os parlamentares franceses, como “prisioneiros do espírito dos tempos”. Referiu-se às “pressões externas” sobre os representantes eleitos e a uma “atmosfera global que os dissuadiu de fazer aquilo em que eles próprios acreditavam”.

A ECLJ, uma ONG de direitos humanos pró-vida sediada em Estrasburgo, que trabalhou nos bastidores durante os debates parlamentares para sensibilizar os representantes eleitos para o trauma que o aborto causa a tantas mulheres, fez eco de sentimentos semelhantes. Reunindo-se com mais de uma dezena de deputados de diferentes partidos, Nicolas Bauer, advogado e pesquisador do ECLJ, apresentou-lhes os testemunhos comoventes de 12 mulheres, muitas das quais tinham abortado sob coação ou por falta de informação sobre a natureza e as consequências do procedimento.

Bauer viu vários políticos comovidos até as lágrimas com estes testemunhos, como disse numa entrevista ao National Catholic Register, sem, no entanto, se opor à maioria dos representantes eleitos na votação de 4 de março. “Os conservadores franceses acabam sempre votando a favor de leis descritas como ‘avanços sociais’, por covardia ou derrotismo, pensando que o projeto irá avançar com ou sem eles”, disse. “Eu inclusive me reuni com parlamentares na semana passada que são pessoalmente contra o aborto, mas votaram a favor para adicioná-lo à Constituição”.

Quando o aborto foi despenalizado pela primeira vez na França, em 1975, a promotora do projeto de lei, Simone Veil, proclamou num discurso que “o aborto deve continuar sendo a excepção, o último recurso para situações sem saída”, acrescentando que “é desnecessário dizer que nenhum médico será obrigado a participar”.

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O projeto de lei, que encontrou oposição virulenta na época, foi aprovado por uma margem estreita. Inicialmente definido em dez semanas em 1975, o prazo legal para o aborto foi ampliado para 12 semanas em 2001 e depois para 14 semanas em 2022

Para os defensores do direito à vida, a discrepância entre o tom do discurso de Veil e as festividades imortalizadas em Versalhes e Paris esta semana parecem ilustrar melhor do que palavras o risco representado por cada limiar ético que uma lei atravessa posteriormente.

Num vídeo em que fez um chamado aos representantes eleitos antes da votação final no dia 4 de março, a geneticista Alexandra Henrion Caude manifestou preocupação com a ausência de um limite legal para o aborto no projeto de norma constitucional, que diz que "a lei determina as condições sob as quais é exercida a liberdade garantida às mulheres de recorrer ao aborto”.

“No momento, o prazo está definido em 14 semanas, quando esse ‘grupo de células’, como alguns chamam, já tem rosto, coração e autonomia para chupar o dedo. Mas como a lei determinará as condições desta liberdade constitucionalmente garantida, será possível prorrogar este prazo uma e outra vez. Não haverá freios", advertiu.

Riscos para a liberdade de consciência

O que mais preocupou muitos opositores da constitucionalização do aborto foi a questão da ausência de uma cláusula de consciência para os profissionais de saúde que se oponham a participar no aborto.

O arcebispo emérito de Paris, dom Michel Aupetit, descreveu a França como um “estado totalitário” que “chegou ao fundo do poço” numa publicação no X depois da rejeição de uma emenda do Senado para incorporar a cláusula de consciência na emenda constitucional.

Embora o governo tenha garantido repetidamente que a constitucionalização do aborto não ameaçaria a liberdade de consciência, poucas horas antes da votação de 4 de março, alguns membros do Parlamento francês pediram a abolição da cláusula dupla de consciência existente para os médicos. (A Lei de Veil de 1975 introduziu um direito específico a não fazer abortos, além da cláusula de consciência geral para os médicos, que já lhes permitia se negar a fazer um ato médico por motivos profissionais ou pessoais.) No seu plano estratégico 2023-25, a seção francesa da organização Planned Parenthood já se comprometeu a fazer campanha pela abolição desta cláusula de dupla consciência, bem como por uma nova prorrogação do prazo legal para o aborto.

“A cláusula de consciência tem valor jurídico. Ao inserir o direito ao aborto na Constituição, o aborto adquire de fato um valor constitucional mais elevado”, disse Bauer ao Register. “O Conselho Constitucional poderia muito bem considerar que a cláusula de consciência dos médicos põe em questão a liberdade constitucional do aborto.” O Conselho Constitucional é uma instituição encarregada de garantir que as leis cumpram a Constituição e os direitos e liberdades nela consagrados.

Bauer acrescentou: “Posteriormente, o Conselho Constitucional poderia restringir ainda mais outras liberdades que entrariam em conflito com o aborto, em particular a liberdade de expressão, já tão abusada pelo crime de obstrução ao aborto”.

Um caminho a seguir para outros países

Outra questão já levantada por muitos comentadores em todo o mundo é o impacto global desta ação legislativa da França, que ainda mantém uma influência cultural considerável, especialmente entre os seus vizinhos europeus.

Na verdade, animada pelo sucesso da votação no Congresso de Versalhes e pelo coro de elogios internacionais, uma das principais promotoras da proposta de emenda constitucional, a deputada de esquerda Mathilde Panot, anunciou em 4 de março que apresentaria uma nova resolução para que o direito ao aborto seja consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. O texto pede ao governo francês para “mobilizar-se diplomaticamente com os Estados-membros da UE e a Comissão Europeia para garantir que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia garanta o direito ao aborto”.

Uma resolução semelhante já tinha sido adotada pelo Parlamento Europeu em 2022 depois da decisão Dobbs dos EUA, mas sem força vinculante, uma vez que a União Europeia não tem competência para definir a política de saúde, que continua a ser da responsabilidade dos Estados-membros.

Do outro lado dos Alpes, organizações pró-vida já apelam à mobilização para impedir a exportação do modelo francês.

“Esta é uma trágica regressão da civilização e não de progresso”, escreveu a ONG italiana Provita e Familia num comunicado de imprensa divulgado na noite de 4 de março. “Apelamos a todos os italianos pró-vida: evitemos que a Itália acabe como a França, unindo forças numa grande redenção civil que defenda a humanidade daqueles que foram concebidos”.

Um chamado para despertar?

A radicalização dos movimentos pró-aborto na França parece ter tido o efeito inesperado de galvanizar as forças da oposição, que se reuniram nas ruas de Versalhes no momento da votação no Congresso, e cujos líderes estão considerando estratégias mais agressivas para defender a vida.

Num editorial publicado depois da votação de 4 de março, a revista Famille Chrétienne pede que se inspirem nas ações concretas dos pró-vida americanos, que "construíram centros de maternidade próximos às clínicas da Planned Parenthood [...] Eles imaginaram equipes móveis para sair em busca de famílias isoladas e ajudá-las a descobrir, através de um simples ultrassom, a realidade do ‘pedacinho de homem’ que está nascendo”.

Os bispos franceses, muitas vezes criticados pela sua falta de ousadia e pela sua retirada gradual dos debates públicos, desta vez foram muito mais veementes na denúncia dos ataques à dignidade humana no país, incluindo os debates contínuos sobre a eutanásia que serão retomados nos próximos meses.

E enquanto jovens padres tocavam os sinos da sentença de morte nas suas igrejas em protesto em várias cidades francesas, começando por Versalhes, iniciativas de oração como o site "Va, Vis, Prie" - que tem como objetivo rezar pelo menos tantos terços de reparação como o número de abortos por ano, em 50 cidades diferentes - estão forjando as armas espirituais do país.

Os próximos anos poderão muito bem ser os de uma mudança coletiva mais profunda na consciência espiritual, intelectual e política, ainda mais quando o país, tal como o resto do Velho Continente, está sofrendo a dura realidade do inverno demográfico, com o número de nascimentos em 2023, no seu nível mais baixo desde o final da Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, a curiosa coincidência entre a afirmação de Emmanuel Macron sobre a necessidade de “rearmar” demograficamente a França e a inclusão do aborto na Constituição não passou despercebida a alguns observadores.