Capítulo IV: Ação da Igreja em favor da pessoa na sociedade nacional e internacional

4.1. Introdução

1254 João Paulo II lembrou-nos que a dignidade humana é um valor evangélico e o Sínodo de 1974 nos ensinou que a promoção da justiça é parte integrante da evangelização . Essa dignidade e esta promoção da justiça devem verificar-se tanto na ordem nacional como na internacional.

1255 Ao ocupar-nos da realidade da ordem nacional e internacional, fazemo-lo numa atitude de serviço, como pastores, e não de um ponto de vista econômico, político ou meramente sociológico. Esforçamo-nos para que haja entre os homens maior comunhão e participação nos bens de toda ordem que Deus nos outorgou.

1256 Por isso, queremos encarar a situação da dignidade da pessoa humana e da promoção da justiça em nossa realidade latino-americana, refletindo sobre a mesma à luz de nossa fé e dos princípios fundados na própria natureza humana, para encontrar critérios e serviços que nortearão nossa ação pastoral, hoje e no futuro próximo.

4.2. Situação

Em nível nacional

Recordamos alguns pontos que já foram considerados em outras partes deste documento:

1257 O homem latino-americano sobrevive numa situação social que contradiz sua condição de habitante dum Continente majoritariamente cristão; são evidentes as contradições existentes entre estruturas sociais injustas e as exigências do Evangelho.

1258 Muitas são as causas desta situação de injustiça, mas à raiz de todas elas encontra-se o pecado, tanto em seu aspecto pessoal como nas próprias estruturas.

1259 Verificamos com profundo pesar que se agravou a situação violenta que se pode chamar institucionalizada (subversiva e repressiva), na qual a dignidade humana é violada até em seus direitos mais fundamentais.

1260 Precisamos assinalar de maneira especial que, depois dos anos cinqüenta, e não obstante as realizações obtidas, têm fracassada as amplas esperanças do desenvolvimento e aumentado a marginalização de grande parte da sociedade e a exploração dos pobres.

1261 A falta de realização da pessoa humana em seus direitos fundamentais tem início antes mesmo do nascimento do homem, pelo incentivo de evitar a concepção e também de interrompê-la por meio do aborto; prossegue com a desnutrição infantil, o abandono prematuro, a carência de assistência médica, de educação e moradia, que propiciam uma desordem constante, na qual não se pode estranhar a proliferação da criminalidade, da prostituição, do alcoolismo e da toxicomania.

1262 Neste contexto, impedido o acesso aos bens e serviços sociais e às decisões políticas, agravam-se os atentados à liberdade de opinião, à liberdade religiosa, à integridade física. Assassinatos, desaparecimentos, prisões arbitrárias, atos de terrorismo, seqüestros, torturas disseminadas por todo o Continente, demonstram uma total falta de respeito pela dignidade da pessoa humana.Por vezes até pretende-se justificar alguns desses atentados como exigências da segurança nacional.

1263 Ninguém pode negar a concentração da propriedade empresarial, rural e urbana em mãos de poucos, o que torna imperioso reivindicar verdadeiras reformas agrárias e urbanas; de igual forma, a concentração do poder pelas tecnocracias civis e militares, que frustram as exigências de participação e garantias dum Estado democrático.

Em nível internacional

1264 O homem latino-americano encontra uma sociedade cada vez mais desequilibrada na sua convivência.Há "mecanismos que, por estarem impregnados, não dum autêntico humanismo, mas de materialismo, produzem em nível internacional ricos cada vez mais ricos, à custo de pobres cada vez mais pobres" (João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 4).Tais mecanismos se manifestam numa sociedade muitas vezes programada à luz do egoísmo, nas manipulações da opinião pública, em expropriações invisíveis e em novas formas de domínio supranacional, pois crescem as distâncias entre as nações ricas e pobres.Acrescente-se, além disso, que em muitos casos o poderio de empresas multinacionais se sobrepõe ao exercício da. soberania das nações e ao pleno domínio de seus recursos naturais.

1265 Como conseqüência dos novos manejos e da exploração causada pelo sistema de organização da economia e da política internacional, o subdesenvolvimento do hemisfério pode agravar-se e até tornar-se permanente. Devido a isso, vemos o ideal da integração latino-americana ameaçado, fato lamentável, motivado em grande parte pelas ambições econômicas nacionalistas, pela paralisação dos grandes planos de cooperação e por novos conflitos internacionais.

1266 O desequilíbrio sócio-político, em nível nacional e internacional, está criando um grande número de desenraizados, tais como os emigrantes, número este que pode crescer de forma imprevisível em futuro próximo.A esses devem acrescentar-se os desenraizados políticos, como os asilados, refugiados, desterrados e também toda a gama de pessoas desprovidas de documentos.Em situação de total abandono encontram-se os anciãos, os inválidos, os nômades e as grandes massas de camponeses e indígenas "quase sempre abandonados num nível de vida ignóbil e, por vezes, duramente ludibriados e explorados" (Paulo VI, Discurso Camponeses, Bogotá 23.8.1968).

1267 Finalmente, não se torna estranho neste completo problema social o aumento dos gastos com armamentos, como tampouco a criação artificial de necessidades supérfluas, impostas de fora aos países pobres.

4.3. Critérios

Na sociedade nacional

1268 A realização da pessoa consegue-se graças ao exercício de seus direitos fundamentais, eficazmente reconhecidos, tutelados e promovidos.Por isso a Igreja, perita em humanidade, deve ser a voz daqueles que não têm voz (da pessoa, da comunidade perante a sociedade, das nações fracas perante as poderosas) cabendo-lhe uma ação de docência, denúncia e serviço em prol da comunhão e da participação.

1269 Em face da situação de pecado, surge por parte da Igreja o dever de denúncia, que deve ser objetiva, denodada e evangélica; que não intenta condenar, mas sim salvar o culpado e a vítima. Tal denúncia, feita após entendimento prévio entre os pastores, requer a solidariedade interna da Igreja e o exercício da colegialidade.

1270 A declaração dos direitos fundamentais da pessoa humana, hoje e no futuro, é e será parte indispensável de sua missão evangelizadora.

A Igreja proclama, entre outros, a exigência de realização dos seguintes direitos:

1271 Direitos individuais: direito à vida (a nascer, à procriação responsável), à integridade física e psíquica, à proteção legal, à liberdade religiosa, à liberdade de opinião, à participação nos bens e serviços, a construir o próprio destino, ao acesso à propriedade e "outras formas de domínio privado sobre os bens exteriores" (GS 71).

1272 Direitos sociais: direito à educação, à associação, ao trabalho, à moradia, à saúde, ao lazer, ao desenvolvimento, ao bom governo, à liberdade e justiça social, à participação nas decisões que concernem ao povo e às nações.

1273 Direitos emergentes: direito à própria imagem, à boa fama, à privacidade, à informação e expressão objetivas, à objeção de consciência "contando que não se violem as justas exigências da ordem pública" (DH, 4), e a uma visão pessoal do mundo.

1274 Entretanto, a Igreja também ensina que o reconhecimento desses direitos supõe e exige sempre, "no homem que os possui, outros tantos deveres: uns e outros têm na lei natural que os confere ou impõe, sua origem, seu sustentáculo e sua força indestrutível"(PT 28).

Na Sociedade Internacional

1275 Todo o desequilíbrio da sociedade internacional, como a necessidade de salvaguardar o caráter transcendente da pessoa humana numa nova ordem internacional, impelem a Igreja a urgir a proclamação e o esforço por tornar realidade certos direitos como:

1276 direito a uma convivência internacional justa entre as nações, como pleno respeito à sua autodeterminação econômica, política, social e cultura.

1277 direito de cada nação defender e promover seus próprios interesses perante as empresas transnacionais, fazendo-se necessária a elaboração, em nível internacional, dum estatuto que regule as atividades de tais empresas.

1278 direito a uma nova cooperação internacional, que reveja as condições originais de tal cooperação.

1279 direito a uma nova ordem internacional em consonância com os valores humanos de solidariedade e justiça.

1280 Esta nova ordem internacional evitará uma sociedade edificada sobre critério neomalthusianos; basear-se-a nas legítimas necessidades sociais do homem; assumirá um pluralismo sadio com a adequada representação das minorias e dos grupos intermédios, a fim de que o mesmo não seja um círculo fechado de nações; preservará o patrimônio comum da humanidade e, em especial, os oceanos.

1281 Finalmente, os excedentes econômicos, as poupanças provenientes do desarmamento e qualquer outra riqueza sobre a qual pesa, também em nível internacional a "hipoteca social", deverão ser utilizados socialmente, garantindo o acesso imediato e livre dos mais fracos ao próprio desenvolvimento integral.

1282 Reconhecendo, de modo especial, que os povos latino-americanos possuem em comum tantos valores, necessidades, dificuldades e esperanças, deve-se promover uma legítima integração, que supere os egoísmos e os nacionalismod estreitos e respeite a legítima autonomia de cada povo, sua integridade territorial etc. e promova a autolimitação dos gastos com armamentos.

4.4 Serviços

1283 A Igreja, além de anunciar a dignidade da pessoa humana, de seus direitos e deveres e de denunciar as violações cometidas contra o homem, deve exercer uma ação de serviço, como parte integrante de sua missão evangelizadora e missionária. Ela deve criar, juntamente com todos os homens de fé e boa vontade, uma consciência ética em torno dos grandes problemas internacionais.

Por esta razão, ela:

1284 * dá testemunho evangélico de Deus presente na história e desperta no homem uma atitude aberta à comunhão e participação;

1285 * estabelece em sua área organismos de ação social e promoção humana;

1286 * supre, na medida de suas possibilidades, as lacunas e ausências dos poderes públicos e das organizações sociais;

1287 * convoca a comunidade humana para que se revejam e orientem as instituições internacionais e se criem formas de proteção que, baseadas na justiça, garantam a promoção autenticamente humana da crescente multidão de desamparados.

1288 Recomenda-se a colaboração entre as Conferências Episcopais, para o estudo de problemas pastorais, especialmente dos que respeitam à justiça e que ultrapassam o nível nacional. Em especial, compete à ação da Igreja com relação aos anônimos sociais, o dever de acolhê-los e assisti-los, de restaurar sua dignidade e sua fisionomia humana, "porque quando um homem é ferido em sua dignidade, toda a Igreja sofre" (Paulo VI, janeiro de 1977).

1290 A Igreja deve empenhar-se para que este grupo flutuante da humanidade se reintegre socialmente, sem perder os próprios valores; deve velar pela restauração plena de seus direitos; colaborar para que aqueles que não existem legalmente adquiram a necessária documentação, a fim de que todos tenham acesso ao desenvolvimento integral, que a sua dignidade de homens e filhos de Deus merece. Com isto ela cooperara para assegurar ao homem uma existência digna, que o capacite para realizar-se no interior da família e da sociedade.

1291 Também necessária é a ação da Igreja para que os desenraizados e marginalizados do nosso tempo não se constituam permanentemente em cidadãos de segunda categoria, já que eles são sujeitos de direitos, com legítimas aspirações sociais, e têm direito a uma atenção pastoral adequada, conforme os documentos pontifícios e as orientações propostas nas reuniões latino-americanas sobre pastoral de migrações.

1292 A Igreja faz um apelo urgente a consciência dos povos e também às organizações humanitárias para que:

* se fortaleça e generalize o direito de asilo, instituição genuinamente latino-americana (tratado do Rio de Janeiro, 1942), forma atual daquela proteção que a Igreja anteriormente oferecia;

* os países ampliem suas quotas de recepção de refugiados e emigrantes e se agilize a implementação dos acordos e mecanismos de integração competentes nessas ações;

* se ataque pela raiz o problema ocupacional, com políticas específicas de posse da terra, de produção e comercialização, que cubram as urgentes necessidades da população e fixem o trabalhador em seu meio;

* se incentive a cooperação fraterna das nações por ocasião de catástrofes;

* se possibilite a anistia como sinal de reconciliação, para se conseguir a paz, de acordo com o convite de Paulo VI na proclamação do Ano Santo de 1975;

* se criem centros de defesa da pessoa humana, que trabalhem com o objetivo de "que se derrubem as barreiras de exploração criadas, não raro, por egoísmos intoleráveis, contra os quais se destroçam seus melhores esforços de promoção" (João Paulo II, Alocução Oaxaca, 5).

1293 A todas as pessoas aflitas e aos que sofrem por causa da violação de seus direitos, fazemos chegar nossa palavra de compreensão e ânimo.Exortamos os responsáveis pelo bem comum a que ponham todo o seu empenho, com vontade resoluta, para remediar as causas que geram essas situações, e criem as condições necessárias para uma convivência autenticamente humana.

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