O caso de Galileu costuma ser utilizado para afirmar que a Igreja Católica é inimiga do progresso científico. Portanto, chama a atenção que bastantes católicos, incluídos sacerdotes, religiosos e outras pessoas que têm conhecimentos teológicos, conheçam esse caso de modo bastante superficial e em ocasiões, até equivocado.
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Como morreu Galileu? |
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Por que foi condenado? |
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Dúvidas e interpretações |
O primeiro ponto que deveria ficar
claro é que a Inquisição não matou a
Galileu, nem a ninguém. Morreu de morte natural. Galileu
nasceu na terça-feira, 15 de fevereiro de 1564 em Pisa, e
morreu na quarta-feira, 8 de janeiro de 1642, em sua casa, uma vila
em Arcetri nas imediações de Florença. Portanto
quando morreu tinha quase 78 anos (é possível encotrar
uma diferença de ano inclusive em documentos oficiais, porque
então, em Florença, os anos começavam a com
contar em 25 de março, data da Encarnação do
Senhor). Conta Vicenzo Viviani, um jovem discípulo de Galileu
que permaneceu continuamente junto a ele nos últimos trinta
meses, que sua saúde estava muito esgotada: tinha uma grave
artrite desde os 30 anos e a isto se unia - uma irritação
constante e quase insuportável nas palpebras - e outros achaques
que traz consigo uma idade tão avançada, sobretudo
quando se tem consumido no muito estudo e vigilia -.
Acrescenta que, apesar de tudo, seguia cheio de projetos de trabalho,
até que por fim, lhe assaltou uma febre que o foi consumindo
lentamente e uma forte palapitação, com a que ao longo
de dois meses foi se extenuando cada vez mais, e por fim, uma quarta-feira,
que era o dia 8 de janeiro de 1642, às quatro horas da manhã,
morreu com firmeza filosófica e cristã, aos setenta
e sete anos de idade, dez meses e vinte dias. Portanto, não
existiu a fogueira nem nada parecido.
Tampouco foi condenado à morte.
O único processo em que foi condenado ocorreu em 1633, e
ali foi condenado à prisão que em vista de suas boas
disposições, foi comutada imediatamente por prisão
domiciliar, de modo que nunca chegou a ingressar em um cárcere.
Segundo as normas comuns, durante o processo deveria ter estado
na prisão da Inquisição, mas de fato não
esteve nunca lá: antes de começar o processo se alojou
na embaixada de Toscana em Roma, situada no Palazzo Firenze, onde
vivia o embaixador; durante o processo foi exigido em alguns momentos
que se alojasse no edifício da Inquisição,
mas então lhe habilitaram umas estâncias que estavam
reservada para os eclesiásticos que trabalhavam ali, permitindo
que lhe levassem comida da embaixada Toscana; e ao acabar o processo
foi permitido que estivesse alojado na Vila Médici, uma das
melhores vilas de Roma, com esplêndidos jardins, que era propiedade
do Grande Duque de Toscana. Tudo isto se explica porque Galileu
era oficialmente o primeiro matemático e filósofo
do Grande Duque de Toscana, território importante (inclui
Florença, Pisa, Livorno, Siena, etc.) e tradicionalmente
bem relacionado com a Santa Sede, e as autoridades de Toscana exerceram
bons ofícios para que em Roma Galileu fosse tratado o melhor
possível, como de fato sucedeu. O embaixador de Toscana,
Francesco Niccolini, apreciava muitíssimo a Galileu, e colocou
todos os meios para que sofresse menos possível com o processo,
e para que não fosse preso. Niccolini conseguiu que, ao acabar
o processo, a pena de prisão que se impôs fosse comutada
por confinamento na Vila Médici. Depois
de poucos dias foi permitido que se trasladasse a Siena, onde se
alojou no palácio do arcebispo, monsenhor Ascanio Piccolomini;
este era um grande admirador e amigo de Galileu, e o tratou esplendidamente
durante os vários meses em que esteve em sua casa, de modo
que ali recuperou-se do trauma que sem dúvida, supôs
para o processo (em 1633, quando ocorreu o processo. Galileu
tinha 69 anos). Depois, foi permitido que se trasladasse à
casa que tinha fora de Florença, e ali permaneceu até
que morresse, já velho, de morte natural. Acabou sua obra
mais importante, e a publicou, em 1638, depois do processo.
Definitivamente, Galileu não
foi condenado à morte, mas a uma prisão que não
chegou a se executar porque foi comutada: primeiro, por uma estância
de vários dias na Vila Médici, em Roma; depois, por
uma estância de vários meses no palácio de seu
amigo arcebispo de Siena; e a continuação (fins de
1633), foi-lhe permitido residir, em uma espécie de prisão
domiciliar, em sua própria casa, na Vila do Gioiello, em
Arcetri, nas imediações de Florença, onde viveu
e trabalhou até sua morte.
Galileu nunca foi submetido a tortura ou a maus tratos físicos. Sem dúvida, faze-lo ir a Roma vindo de Florença para ser julgado, tendo 69 anos, supõe mau trato, e o mesmo se pode dizer da tensão psicológica que teve que suportar durante o processo e na condenação final, seguida de uma abjuração forçada. É certo. Desde o ponto de vista psicológico, com a repercussão que isto pode ter na saúde, Galileu teve que sofrer por estes motivos e, de fato, quando chegou a Siena depois do processo, se encontrava em más condições. Mas é igualmente certo que não foi nenhum objeto dos maus tratos físicos típicos da época. Algum autor afirmou que, durante o processo, ao final, em uma ocasião, foi submetido a tortura; entretanto, autores de todas as tendências estão de acordo, com praticamente unanimidade, que isto realmente não aconteceu. Na fase conclusiva do processo, em uma ocasião, encontra-se uma ameaça de tortura por parte do tribunal, mas todos os dados disponíveis estão a favor de que se tratou de uma pura formalidade que, devido aos regulamentos da Inquisição, o tribunal devia mencionar, mas sem intenção de levar à prática da tortura e sem que, de fato, se realizasse (consta, além disso, que em Roma não se praticava a tortura com pessoas da idade de Galileu). Depois da condenação, em Siena, Galileu se recuperou. Logo sofreu diversas doenças, mas eram as mesma que já sofria habitualmente desde muitos anos antes, que foram se agravando com a idade. Chegou a ficar completamente cego, mas nada teve a ver com o processo.
2.
Porque Galileu foi condenado?
O que mais chama a atenção não são os maus tratos físicos que como acabamos de ver, não existiram, mas o fato em si mesmo de que Galileu foi condenado, com as tensões e sofrimentos que isto implica. Desde logo, não era homicida, nem ladrão, nem malfeitor em nenhum sentido habitual da palavra. Então, porque foi condenado? Qual foi a condenação?
Costuma-se falar de dois processos
contra Galileu: o primeiro em 1616, e o segundo em 1633. Às
vezes só se fala do segundo. O motivo é simples: o
primeiro processo realmente existiu, porque Galileu foi denunciado
à Inquisição romana e o processo foi adiante,
mas Galileu não chegou a ser convocado diante do tribunal:
o denunciado se inteirou de que existia a denúncia e o processo
através de comentários de outras pessoas, mas o tribunal
nunca lhe disse nada, nem o convocou, nem o condenou. Por isso com
freqüência não se considera que tratou-se de um
autêntico processo, ainda que de fato a causa se abriu e se
desenvolveram algumas diligências processuais durante meses.
Ao contrário, o de 1633 foi um processo a toda regra: Galileu
foi intimado a comparecer diante do tribunal da Inquisição
de Roma, teve que se apresentar e declarar diante desse tribunal,
e finalmente foi condenado. Tratam-se de dois processos muito diferentes,
separados por muitos anos; mas estão relacionados, porque
o que aconteceu no de 1616 condicionou em grande parte o que aconteceu
em 1633.
2.1. O processo de 1616
Em 1616 Galileu era acusado de postular
o sistema heliocêntrico proposto na antigüidade pelos
pitagóricos e na época moderna por Copérnico:
afirmava que a Terra não está quieta no centro do
mundo, como geralmente se acreditava, mas que gira sobre si mesma
e ao redor do Sol, da mesma forma que os outros planetas do Sistema
Solar. Isto parecia ir contra textos da Bíblia onde se diz
que a Terra está quieta e o Sol se move, de acordo com a
experiência; além disso, a Tradição da
Igreja assim havia interpretado a Bíblia durante séculos,
e o Concílio de Trento havia insistido em que os católicos
não deveriam admitir interpretações da Bíblia
que se afastassem das interpretações unânimes
dos Santos Padres.
Os acontecimentos de 1616 acabaram
com dois atos extra-judiciais. Por um lado, publicou-se um decreto
da Congregação do Index, datado de 5 de março
de 1616, pelo qual se incluiram no índice de livros proibidos
três livros: Sobre as revoluçôes do cônego
polaco Nicolau Copérnico, publicado em 1543, onde se expunha
a teoria heliocêntrica de modo científico; um comentário
do agustino espanhol Diego de Zúñiga, publicado em
Toledo em 1584 e em Roma em 1591, onde se interpretava alguma passagem
da Bíblia de acordo com o copernicanismo; e um opúsculo
do carmelita italiano Paolo Foscarini, publicado em 1615, onde defendia-se
que o sistema de Copérnico não está contra
a Sagrada Escritura. Ficava afetado pelas mesmas censuras qualqurer
outro livro que ensinasse as mesmas doutrinas. O motivo que se dava
no decreto para essas censuras era de que a doutrina que defende
que a Terra se move e o Sol está em repouso é falsa
e completamente contrária à Sagrada Escritura. Por
outro lado, Galileu foi admoestado pessoalmente para que abandonasse
a teoria heliocêntrica e se abstivesse de defendê-la.
O opúsculo de Foscarini foi
proibido absolutamente. Ao contrário, os livros de
Copérnico e de Zúñiga somente foram suspendidos
até que se corrigissem algumas passagens. No caso de Zúñiga,
o que deveria se modificar era muito breve. No caso de Copérnico
tratavam-se de diversas passagens onde deveria explicar que o heliocentrismo
não era uma teoria verdadeira, mas só um artifício
útil para os cálculos astronômicos. De fato,
essas correções foram preparadas e aprovadas ao fim
de quatro anos, em 1620.
Podemos nos perguntar por que se
dava tanta importância a algo que, hoje em dia, parece simples:
quando a Bíblia fala de questões científicas,
com freqüência adota o modo de falar próprio da
cultura, da época ou simplesmente da experiência ordinária.
De fato este foi um dos argumentos que Galileu utilizou em sua Carta
a Benedetto Castelli, que circulou em cópias à mão
(Castelli era um beneditino, amigo e discípulo de Galileu,
professor de matemática na Universidade de Pisa), e com maior
extensão em sua Carta à Grande Duquesa de Toscana,
Cristina de Lorena (mãe do que naqueles momentos era Grande
Duque de Toscana, Cosme II), a quem havia chegado ecos das acusações
bíblicas contra Galileu.
Para compreender o fundo do assunto
deve-se mencionar três problemas. Em primeiro lugar, Galileu
tinha se tornado célebre com seus descobrimentos astronômicos
de 1609-1610. Utilizando o telescópio que ele mesmo contribuiu
de modo decisivo para aperfeiçoar, descobriu que a Lua possui
irregularidades como a Terra, que ao redor de Júpiter giram
quatro satélites, que Vênus apresenta fases como a
Lua, que na superfície do Sol existem manchas que mudam de
lugar, e que existem muito mais estrelas do que as que se vêem
a olho nu. Galileu se baseou nestes descobrimentos para criticar
a física aristotélica e apoiar o heliocentrismo copernicano.
Os professores aristotélicos, que eram muitos e poderosos,
sentiam que os argumentos de Galileu contradiziam sua ciência,
e às vezes passavam ridículo. Estes professores atacaram
seriamente
a Galileu e, quando acabavam-se as respostas, alguns recorreram
aos argumentos teológicos (a pretendida contradição
entre Copérnico e a Bíblia).
Em segundo lugar, a Igreja católica
era naqueles momentos especialmente sensível para com aqueles
que interpretavam por sua conta a Bíblia, afastando-se da
Tradição, porque o enfrentamento com o protestantismo
era muito forte. Galileo se defendeu de quem dizia que o heliocentrismo
era contrário à Bíblia explicando por que não
era, mas com isto se fazia de teólogo, o que era considerado
então como algo perigoso, sobretudo quando, como neste caso,
se afastava das interpretações tradicionais. Galileu
argumentou bem como teólogo, sublinhando que a Bíblia
não pretende nos ensinar ciëncia e se acomoda aos connhecimentos
de cada momento, e inclusive mostrou que na Tradição
da Igreja se encontravam precedentes que permitiam utilizar argumentos
como os que ele propunha. Mas, em uma época de fortes polêmicas
teológicas entre católicos e protestantes, estava
muito mal visto que um profano pretendesse dar lições
aos teólogos, propondo algumas novidades um tanto estranhas.
Em terceiro lugar, a cosmovisão
tradicional, que colocava a Terra no centro do mundo, parecia estar
de acordo com a experiência ordinária: vemos que se
movem o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas; ao invés,
se a Terra se movesse, deveriam suceder coisas que não sucedem:
projétéis atirados para cima cairiam atrás,
não se sabe como estariam as nuvens unidas à Terra
sem ficar também atrás, se deveria notar um movimento
tão rápido.
Além disso, essa cosmovisão tradicional parecia muito
mais coerente com a perspectiva cristã de um mundo criado
para o homem, e também com a Encarnação e a
Redenção da humanidade através de Jesus; de
fato, entre aqueles que haviam aceitado as idéias de Copérnico
contava-se Giordano Bruno, que defendeu que existem muitos mundos
habitados e acabou sustentando doutrinas mais ou menos heréticas
(Bruno foi queimado, como conseqüência de sua condenação
pela Inquisição romana, em 1600, ainda que deve-se
sublinhar, não como desculpa mas para maior claridade, que
não era propriamente um cientista, ainda que utilizasse o
copernicanismo como ponto de partida).
Os acontecimentos de 1616 culminaram
em um decreto da Congregação do Índex, datado
de 5 de março de 1616, pelo qual foram proibidos os livros
mencionados, com os matizes já apontados. O decreto foi publicado
em nome da Congregação, e está assinado pelo
cardeal prefeito e pelo secretário da Congregação,
não pelo Papa. Desde então, um ato desse tipo era
feito com o mandato ou aprovação do Papa e, de algum
modo, comprometia a autoridade do Papa, mas de nenhuma maneira pode
ser considerado como un ato que se põe em jogo a infalibilidade
do Papa: por uma parte, porque nem está assinado pelo Papa
e nem mesmo a menciona; por outra, porque trata-se de um ato de
governo de uma Congregação, não de um ato de
magistério; e além disso, porque não pretende
definir uma doutrina de modo definitivo. Isso
era perfeitmente sabido então, como agora; como prova disso
pode-se mencionar uma carta de Benedetto Castelli a Galileu, escrita
em 2 de outubro de 1632, quando já tinha sido ordenado a
Galileu que comparecesse perante a Inquisição de Roma.
Castelli falou com o Padre Comissário do Santo Ofício,
Vincenzo Maculano, e defendeu a ortodoxia da posição
de Copérnico e de Galileu, acrescentando que várias
vezes falou de tudo isso com teólogos piedosos e muito inteligentes,
e não viram nenhuma dificuldade; acrescenta que o próprio
Maculano lhe disse que concordava e que, em sua opinão, a
questão não deveria se resolver recorrendo à
Sagrada Escritura. É fácil advertir que estas opiniões,
tratadas no próprio Comissário do Santo Ofício,
não teriam sentido se o decreto do índex de 1616 pudesse
ser interpretado como tendo um alcance de magistério infalível
ou definitivo.
Nas deliberações da
Santa Sede, prévias ao decreto, foram pedidas as opiniões
de onze consultores do Santo Ofício, que relataram, em 24
de fevereiro de 1616, que dizer que o Sol está parado no
centro do universo é absurdo em filosofia e além disso
formalmente herético, porque contradiz muitos lugares da
Escritura tal como expõe os Santos Padres e os teólogos,
e dizer que a Terra se move é também um absurdo em
filosofia e ao menos errôneo na fé. Com freqüência
é tomada esta opinião dos teólogos consultores
como se fosse ditame da autoridade da Igreja, mas não é:
foi somente a opinião dessas pessoas. O único ato
público da autoridade da Igreja foi o decreto da Congregação
do Índex, e nesse decreto não é dito que a
doutrina heliocêntrica seja herética: é dito
que é falsa e que se opõe à Sagrada Escritura.
O matiz é importante, e qualquer entendido em teologia o
sabia então e o sabe agora. Ninguém considerou, então,
nem deveria considerar agora, que o heliocentrismo foi condenado
como heresia, porque não é certo. Isto explica que
Galileu e outras pessoas igualmente católicas continuaram
aceitando o heliocentrismo; Galileu sabia (e estava certo) que ele
havia mostrado, em suas cartas a Castelli e a Cristina Lorena, que
o heliocentrismo podia ser compatível com a Sagrada Escritura,
utilizando além disso princípios que não eram
novos, mas que tinham apoio na tradição da Igreja.
A decisão da autoridade da
Igreja em 1616 foi equivocada, ainda que não tenha qualificado
o heliocentrismo como heresia. Galileu e seus amigos eclesiáticos
se propuseram a conseguir que este decreto fosse revogado. Poderiam
ter conseguido: trata-se de um decreto disciplinar que ainda que
fosse acompanhado por um valor doutrinal, não condenava o
heliocentrismo como heresia, nem era um ato de magistério
infalível.
Outro aspecto importante a levar
em conta é que, ainda que as críticas de Galileu à
posição tradicional estavam fundamentadas, nem ele
nem ninguém possuiam naqueles momentos argumentos para demonstrar
que a Terra se move ao redor do Sol. Esta afirmação
parecia, mais absurda, tal como a qualificação dos
teólogos do Santo Ofício. Em uma famosa carta, o cardeal
Roberto Belarmino, um dos teólogos mais influentes então,
pedia tanto a Foscarini como a Galileu que utilizassem o heliocentrismo
somente como um hipótese astronômica, sem pretender
que fosse verdadeira nem entrar em argumentos teológicos,
em cujo caso não haveria nenhum problema. Mas Galileu para
defender-se de acusações pessoais e para tentar que
a Igreja não interviesse no assunto, se lançou a uma
defesa forte do copernicanismo, mudando-se para Roma e tentando
influenciar nas personalidades eclesiásticas; isto teve talvez
um efeito contrário, provocando que a autoridade da Igreja
interviesse para frear a propaganda de Galileu que, ao menos em
suas críticas, era bastante convincente.
Além do decreto da Congregação do Índex, as autoridades eclesiásticas tomaram outra decisão que afetava pessoalmente a Galileu e que influiu decisivamente em seu processo, 17 anos mais tarde. Em concreto, por ordem do Papa (Paulo V), o cardeal Belarmino citou Galileu (que encontrava-se então em Roma, dedicado à propaganda do copernicanismo) e, na residência do cardeal, em 26 de fevereiro de 1616, o admoestou a abandornar a teoria copernicana. O Papa tinha mandado Belarmino a que fizesse essa admoestação, acrescentando que, se Galileu não quisesse abandonar a teoria, o Comissário do Santo Ofício, diante do notário e testemunhas, o ordenasse para que não ensinasse, defendesse nem tratasse essa doutrina, e que se isto fosse negado, que o prendesse. Consta que Belarmino fez a admoestação. Mas entre os documentos que foram conservados existe um que deu espaço a discussões sobre a força e o alcance desse preceito: disse que, em continuação à admoestação de Belarmino, o Padre Comissário do Santo Ofício (o dominicano Michelangelo Seghizzi) transmitiu o preceito mencionado; mas esse documento está sem assinar. Foram dadas interpretações de todo tipo; a mais extrema é que tratasse de um documento falsificado deliberdamente en 1616 ou em 1633 para acabar com Galileu; mas isto parece muito pouco provável. Com os documentos que possuímos, é muito dificil saber exatamente como se desenvolveu o encontro com Belarmino e Galileu, mas está claro que Galileu entendeu perfeitamente, que em diante, não poderia argumentar a favor do copernicanismo, e com efeito assim o fez durante anos. Precisamente o processo a que foi submetido 17 anos depois, em 1633, foi motivado porque, aparentemente, Galileu desobedeceu a esse preceito.
2.2. O processo de 1633
Se o decreto da Congregação do Índex em 1616 foi um equívoco, também o foi proibir Galileu de tratar ou defender o copernicanismo. Galileu o sabia. Entretanto, obedeceu. Sempre foi e quis ser um bom católico. Mas sabia que a proibição de 1616 era baseada em um equívoco e queria solucioná-lo. Inclusive advertia do perigo de escândalo que poderia ocasionar essa proibição no futuro, se chegasse a demonstrar com certeza que a Terra gira ao redor do Sol. Seus amigos concordavam com ele.
Em 1623 coincidiram umas circunstâncias
que pareciam favorecer uma revisão das decisões de
1616, ou pelo menos tornar possível que se expusesse ainda
que fosse com cuidado, os argumentos a favor do copernicanismo.
O fator principal foi a eleição como Papa do cardeal
Maffeo Barberini, que adotou o nome de Urbano VIII. Era, há
muitos anos, um admirador de Galileu, a quem inclusive havia dedicado
uma poesia latina em que louvava seus descobrimentos astronômicos.
Além disso, desde o primeiro momento teve em postos muita
confiança em vários amigos e partidários de
Galileu. Em 1624 Galileu foi a Roma e o Papa o recebeu seis vezes,
com grande cordialidade. Mas Galileu comprovou ao sondar sobre o
assunto do copernicanismo, que se bem Urbano VIII não o considerava
herético (já vimos que nunca foi declarado como tal),
o considerava como uma posição doutrinalmente temerária
e além disso, estava convencido de que nunca poderia se demonstrar:
dizia que os mesmos efeitos observáveis que se explicam com
essa teoria, poderiam ser devidos à outras causas diferentes,
pois caso contrário, estaríamos limitando a onipotência
de Deus. Tratava-se de um argumento que, aparentemente, tinha muita
força, e parecia que quem pretendesse demonstrar que o copernicanismo
estava pondo limites à onipotência de Deus.
Apesar de tudo, o humor do novo Papa e a posição estratégica de seus amigos levaram a Galileu a embarcar em um velho projeto pendente: escrever uma grande obra discutindo o copernicanismo e, desde então, argumentando a seu favor. Simplesmente, a apresentaria como um diálogo entre um partidário do geocentrismo e outro do heliocentrismo, sem deixar resolvida a questão. E acrescentaria o argumento do Papa. Mas o leitor inteligente logo se daria conta de que ele tinha razão.
Além disso, Galileu pensava
que dispunha de um argumento novo que demonstrava o movimento da
Terra: o argumento das marés. Segundo Galileu, as marés
só poderiam ser explicadas supondo o movimento da Terra (e
não aceita, como se soasse a astrologia, que se devesse à
influência da Lua). Inclusive queria entitular sua obra desse
modo, como um tratado sobre as marés, mas o Papa soube que
pretendia utilizar este título e, como soava demasiadamente
realista (como de fato era), aconselhou colocar outro título
que não parecesse uma prova do movimento da Terra (desde
então, como sabemos, o argumento das marés estava
errado). Galileu mudou o título do livro, que passou a chamar
Diálogo em torno dos grandes sistemas do mundo, o tolemaico
e o copernicanno. Um título muito acertado devido, em parte,
à interferência de um Papa que não queria que
se tratasse o movimento da Terra como algo real: mas sem dúvida,
essa era a intenção principal de Galileu em sua obra.
Galileu estava disposto a conceder tudo o que fosse necessário,
com tal de publicar uma obra onde se recorressem os argumentos contra
a posição tradicional e a favor do copernicanismo.
Galileu acabou de redatar o Diálogo
em 1630, e o levou a Roma para obter a permissão eclesiástica
para imprimi-lo. A permissão deveria ser concedida pelo Mestre
do Sagrado Palácio, o dominicano Niccolò Riccardi,
que não sabia astronomia mas era admirador de Galileu e sempre
tinha se mostrado desejoso de ajudá-lo. Agora Riccardi se
encontrou em um compromisso. Deu a entender que não haveria
problemas, ainda que devesse ajustar uma série de detalhes.
Galileu
voltou a Florença, a peste causou sérias limitações
ao tráfego e correio entre Florença e Roma, e aí
começou uma cadeia de quívocos que alargaram a concessão
da permissão e deixou Galileu irritado. Ao fim de um ano,
Galileu solicitou e obteve a intervenção do Grande
Duque de Toscana e de seu embaixador em Roma para obter a permissão.
Riccardi, que também era toscano e era parente da esposa
do embaixador, foi submetido a uma pressão muito forte. Finalmente
concedeu a permissão para que se imprimisse o livro em Florença,
mas com uma série de condições que se fazia
saber Galileu e o Inquisidor de Florença,. Riccardi sabia
o que o Papa pensava: que só se poderia tratar o copernicanismo
como uma hipótese matemática, não como uma
representação da realidade; as condições
e advertências que deu se encaminhavam a garantir, que não
estava nada claro na obra de Galileu.
Galileu introduziu a mudança,
mas, seguramente, nem todas as que tinha introduzido Riccardi e
tivesse desejado o Papa. No livro, Simplício, o personagem
que defende a posição tradicional de Aristóteles
e Ptolomeu, sempre sai perdendo. Simplício foi um dos mais
famosos comentadores antigos de Aristóteles, mas na obra
de Galileu dava a impressão de que seus argumentos e sua
atitude correspondiam muito bem a seu nome. Por outro lado, o argumento
favorito do Papa aparecia no final da obra: depois de ter exposto
todos os argumentos físicos e filosóficos, Simplício,
precisamente Simplício, utilizava esse argumento, e ainda
que Salviati, o defensor de Copérnico (e Galileu) o aprovasse,
o final é muito breve e forçado. Para maior confusão,
uma introdução aprovada por Riccardi, em que se explicava
que essa obra não pretendia estabelecer o copernicanismo
como teoria verdadeira, apareceu impressa em um tipo diferente do
resto da obra, dando a impressão de uma adição
postiça.
O diálogo terminou de ser
impresso em Florença em 21 de fevereiro de 1632. Galileu
enviou em seguida exemplares por todas as partes, também
a seus amigos em outros países da Europa. Ainda havia problemas
de comunicação com Roma por causa da peste, de modo
que os primeiros exemplares não chagaram a Roma até
a metade de maio. Um deles foi entregado ao cardeal Francesco Barberini,
sobrinho e mão direita do Papa, a quem Galileu havia ajudado
há alguns anos, a conseguir o doutorado, e quem considerava,
igualmente ao Papa, como um grande amigo pessoal.
Em 1632, a maior preocupação
do Papa era precisamente o movimento do Sol e da Terra. Estava em
pleno desenrolar a Guerra dos Trinta Anos, que começou em
1618 e não terminou até 1648, que enfrentava toda
a Europa em duas metades, os católicos e os protestantes.
Naquele momento havia problemas muito complexos, porque a França
católica se encontrava mais para o lado dos protestantes
da Suécia e Alemanha, enfrentada com outras potências
católicas, Espanha e o Império. Urbano VIII tinha
sido cardeal legado em Paris e tendia a alinhar-se com os franceses,
temendo, além disso, uma excessiva prepotência dos
espanhóis, e tentando não perder a França.Tratava-se
de equilíbrios muito difíceis. Os problemas eram graves.
Em 8 de março de 1632, em uma reunião de cardeais
com o Papa, o cardeal Gaspar Borgia, protetor da Espanha e embaixador
do Rei Católico, acusou abertamente ao Papa de não
defender como era preciso a causa Católica. Criou-se uma
situação extraordinariamente violenta. Nessas condições,
Urbano III via-se especialmente obrigado a evitar qualquer coisa
que pudesse ser interpretada como não defender a fé
católica de modo suficientemente claro.
Precisamente nestas circunstâncias, a metade de maio, começaram a chegar em Roma os primeiros exemplares do Diálogo. Em um primeiro momento não aconteceu nada. Mas em dois meses, à metade de julho, se soube que o Papa estava muito enfadado com o livro, que tentava frear sua difusão, e que iria criar uma comissão para estudá-lo e julgá-lo.
A documentação que
possuímos não permite saber o que provocou o enfado
e a decisão do Papa. Galileu sempre atribuiu a isto a atuação
de seus inimigos (que não eram poucos nem pouco influentes),
que teriam informado ao Papa de modo tendencioso, predispondo-o
contra. Por exemplo, além de denunciar que o livro defendia
o copernicanismo, sendo contra o decreto de 1616, teriam colocado
em relevo que um dos três personagens que intervinham no diálogo,
Simplício, que sempre costumava perder, é quem expõe
o argumento preferido do Papa sobre a onipotência de Deus
e os limites de nossas explicações. Isto poderia parecer
uma provocação deliberada, e parece que foi assim
interpretado: vários anos depois, Galileu ainda enviava uma
mensagem ao Papa, da sua vila de Arcetri, fazendo-se saber que jamais
havia passado por sua mente tal coisa. Além disso, como foi
assinalado, as circunstâncias pessoais de Urbano VIII naquele
momento eram difíceis, e não podia tolerar que se
publicasse um livro, que aparecida com a permissão eclesiástica
de Roma e de Florença, em que se defendia uma teoria condenada
pela Congregação do Índex em 1616 como falsa
e contrária a Sagrada Escritura.
O Papa estabeleceu uma comissão
para examinar as acusações contra Galileu e julgou
que o assunto devia ser enviado ao Santo Ofício (ou Inquisição
romana), de onde foi ordenado a Galileu, que vivia em Florença,
que se apresentasse em Roma ante esse tribunal durante o mês
de outubro de 1632. Depois de tentativas de prorrogação
que duraram vários meses, em 30 de dezembro de 1632, o Papa
com a Inquisição deu a conhecer que, se Galileu não
se apresentasse em Roma, enviaria alguém que se certificasse
de sua saúde e se visse que poderia ir a Roma, o levaria
preso. O Papa aconselhou seriamente ao Grande Duque que se abstivesse
de intervir, porque o assunto era sério. As autoridades toscanas
decidiram aconselhar a Galileu que fosse a Roma. O Embaixador Noccolini,
que conhecia bem ao Papa e falava com ele com freqüência,
advertia que discutir com o Papa e contrariá-lo era o melhor
caminho para arruinar a Galileu. Quando o Papa falava com Niccolini
do problema causado por Galileu, em várias ocasiões
encheu-se de cólera. Todos advertiram Galileu que o melhor
era que fosse a Roma e que se mostrasse em todo o momento disposto
a obedecer no que dissessem, porque se tomasse outra atitude as
conseqüências seriam prejudiciais para ele.
Galileu chegou a Roma no domingo
dia 13 de fevereiro de 1633, em um liteira facilitada pelo Grande
Duque, depois de esperar na fronteira dos Estados Pontifícios
por causa da peste que seguia em Florença. O embaixador de
Toscana, Francesco Niccolini, se portou maravilhosamente com Galileu,
intervindo continuamente em seu favor ante as autoridades de Roma,
de acordo com as instruções do Grande Duque, Conseguiram
que Galileu não estivesse na cárcere do Santo Ofício,
como exigia a norma. Desde sua chegada à Roma até
12 de abril (dois meses), Galileu viveu no Palácio de Florença,
onde se encontrava a embaixada de Toscana e a casa do embaixador.
As autoridades o recomendaram que evitasse a vida social, de modo
que não saía de casa, mas gozava de um tratamento
excepcional por parte do embaixador e de sua esposa. Niccolini pedia
ao Papa que o assunto fosse o mais breve possível, mas se
alongava porque a Inquisição ainda estava deliberando
sobre o modo de atuar. Como se descobriu nos arquivos do Santo Ofício
o escrito de 1616 em que proibia Galileu de tratar de qualquer modo
o copernicanismo, o processo se centrou completamente em uma única
acusação: a desobediência desse preceito em
1616.
Galileu foi chamado a depor no Santo
Ofício na terça-feira 12 de abril de 1633. Sua defesa
pode nos parecer muito estranha: negou que, no Diálogo, defendesse
o copernicanismo. Galileu sabia que o Santo Ofício pediu
a opinião de três teólogos a respeito e que,
em 17 de abril, os três informes concluiam sem lugar a dúvidas
(como de fato assim o era) que Galileu, em seu livro, defendia o
copernicanismo; neste caso, os teólogos tinham razão.
Isto complicava a situação, pois um acusado que não
reconhecia um erro comprovado devia ser tratado muito severamente
pelo tribunal. Por outro lado, Galileu se defendeu mostrando uma
carta que, a seu pedido, o cardeal Balarmino tinha escrito depois
dos acontecimentos de 1616, para que pudesse se defender frente
àqueles que o caluniavam; nesse escrito, Belarmino dava fé
de que Galileu não teve que abjurar de nada e que simplesmente
tinha sido notificada a proibição da Congregação
do Índex. Mas isso podia ser interpretado também contra
Galileu se fosse mostrado, como era o caso, que em seu livro argumentava
a favor da doutrina condenada em 1616. O tribunal centrou-se em
matizes da proibição feita a Galileu em 1616, que
Galilleu dizia não se lembrar, porque tinha conservado o
documento de Balarmino e aí não se incluiam esses
matizes. Desafortunadamente, Balarmino havia morrido e não
podia esclarecer a situação.
Estes dias Galileu seguia no Santo
Ofício, ainda que tampouco tivesse estado na prisão.
Por deferência com o Grande Duque de Toscana e frente a insistência
o embaixador, Galileu foi instalado nas habitações
do fiscal da Inquisição, traziam-lhe comidas da embaixada
de Toscana, e podia passear. Esteve ali desde a terça-feira
12 de abril até o sábado 30 de abril: 17 dias completos.
Para desbloquear a situação,
o Padre Comissário propôs aos Cardeais do Santo Ofício
algo insólito: visitar Galileu em suas estalagens e tentar
convencê-lo a reconhecer seu erro. Conseguiu depois de uma
longa conversa com Galileu em 27 de abril. No dia seguinte, sem
comunicar a ninguém mais, escreveu o que tinha feito e o
resultado ao cardeal sobrinho do Papa, que encontrava-se nestes
dias em Castelgandolfo com o Papa; através dessa carta se
vê claramente que esta atuação estava aprovada
pelo Papa: desse modo, o tribunal poderia salvar sua honra condenando
a Galileu, e logo poderia usar clemência com Galileu deixando-o
recluso em sua casa, tal como ( disse o Padre Comissário)
sugeriu Vossa Excelência (o cardeal Francesco Barberini).
Com efeito, no sábado 30 de
abril Galileu reconheceu perante o tribunal que, ao voltar a ler
agora seu livro, que tinha acabado há muito tempo, se dava
conta de que, devido a não má fé, mas a vanglória
e ao desejo de se mostrar mais engenhoso que o resto dos mortais,
tinha exposto os argumentos a favor do copernicanismo com uma força
que ele mesmo não acreditava que tivesse. A partir daí,
as coisas se desenrolaram como o Comissário tinha previsto.
Esse mesmo dia foi permitido a Galileu voltar ao Palácio
de Florença, à casa do embaixador. Na terça-feira
10 de maio foi chamado ao Santo Ofício para que apresentasse
sua defesa; apresentou o original da carta do cardeal Belarmino,
e reiterou que tinha atuado com reta intenção. Continuava
fechado no palazzo Firenze; o embaixador conseguiu que lhe permitisse
a passear na Vila Médici, e inclusive em Castelgangolfo,
porque lhe causava mal não fazer nenhum tipo de exercício.
Entretanto, a peste continuava açoitando Florença,
em alguma carta o diziam que, no meio de sua desgraça, era
uma sorte que não estivesse então em Florença.
Na quinta-feira 16 de junho, a Congregação
do Santo Ofício tinha, a cada semana, sua reunião
com o Papa. Nesta ocasião celebrou-se no palácio do
Quirinal. Estavam presentes 6 dos 10 Cardeais da Inquisição,
além do Comissário e do Assessor (nos interrogatórios
e, em geral, em todas as sessões que foram mencionadas até
agora,não estavam presentes os Cardeais: estavam os oficiais
do Santo Ofício que transmitiam as atas à Congregação
dos Cardeais, e estes, com o Papa, tomavam as decisões).
Esse dia o Papa decidiu que Galileu fosse examinado sobre sua intenção
com ameaça de tortura (neste caso tratava-se de uma ameaça
puramente formal, já que se sabia de antemão que não
se realizaria). Depois, Galileu devia abjurar da suspeita de heresia
perante a Congregação em pleno. Seria condenado a
prisão ao arbítrio da Congregação, seria
proibido que no futuro tratasse de qualquer modo o tema do movimento
da Terra, seria proibido o Diálogo, e seria enviado cópia
da sentença aos núncios inquisidores, sobretudo ao
de Florença, para que a lesse publicamente em uma reunião
na qual procuraria que se encontrassem os professores de matemática
e filosofia. O Papa comunicou esta decisão ao embaixador
Niccolini em 19 de junho. Niccolini pediu clemência, e o Papa,
manifestando algo que, como se apontou, estava já decidido
de antemão, lhe respondeu que, depois da sentença,
voltaria a ver o embaixador para ver como se poderia arrumar para
que Galileu não estivesse na prisão. De acordo com
o Papa, Niccolini comunicou a Galileu que a causa seria terminada
em seguida e o livro proibido sem dizer-lhe nada sobre o que tocava
a sua pessoa, para não causar-lhe mais aflição.
Desde a terça-feira 21 de junho até sexta-feira 24 de junho, Galileu esteve de novo no Santo Ofício. Na quarta-feira dia 22, Galileu foi levado ao convento de Santa Maria sopra Minerva; foi lida a sentença (assinada por 7 dos 10 Cardeais do Santo Ofício) e abjurou de sua opinião sobre o movimeto da Terra diante da Congregação. Foi, para Galileu, o mais desagradável de todo o processo, porque afetava diretamente a sua pessoa e se desenvolveu um público de modo humilhante. Na quinta-feira o Papa, com a Congregação do Santo Ofício reunida no Quirinal, concedeu a Galileu a prisão fosse comutada por arresto na Vila Médici, aonde se trastaladou na sexta-feira dia 24. Na quinta-feira dia 30 foi permitido a Galileu abandonar Roma e trasladar-se a Siena, na Toscana, ao palácio do arcebispo. Galileu deixou Roma na quarta-feira 6 de julho e chegou em Siena no sábado 9 de julho. Tinha acabado o pesadelo romano.
A sentença da Inquisição
começa com os nomes dos 10 cardeais da Inquisição,
e acaba com as assinaturas de 7 deles. O Papa, junto com a Congregação,
decidiu que Galileu fosse condenado e que abjurasse de sua opinião,
mas no texto da sentença não aparece em nenhm momento
citado o Papa; portanto, esse documento não pode ser considerado
como um ato de magistério pontifício, e menos ainda
como um ato de magistério infalível nem definitivo.
No texto da abjuração se lê - maldigo e detesto
os mencionados erros e heresias - ; mas não se trata de uma
doutrina definida como heresia pelo magistério da Igreja:
no texto da abjuração se diz, como assim é,
que essa doutrina foi declarada contrária à Sagrada
Escritura, e, como sabemos, esta declaração se fez
mediante um decreto da Congregação do Índex,
que não constituiu um ato de magistério infalível
nem definitivo.
O Arcebispo de Siena, Ascanio Piccolomini,
era um antigo discípulo, admirador e grande amigo de Galileu.
Tinha se oferecido várias vezes para se alojar em sua casa,
tendo em conta, além disso, que estava relativamente perto
de Florença e que em Florença ainda existiam vestígios
da peste. Em Siena, Galileu foi tratado esplendidamente e se recuperou
da tensão dos meses precedentes. A pedido do Grande Duque
de Toscana, o Papa, junto com o Santo Ofício, concedeu em
1 de dezembro de 1633 que Galileu pudesse voltar a sua casa nas
imediações de Florença, na Vila do Gioiello,
contanto que permanecesse como em prisão domiciliar, sem
sair daí nem ter uma vida social. Consta que em 17 de dezembro
Galileu já estava em sua casa, e ali continuou até
sua morte em 1642.
Em Arcetri Galileu continuou trabalhando. Ali acabou seus Discursos e demonstrações em torno de novas ciências, obra que publicou em 1638 na Holanda. Trata-se de sua obra mais importante, onde expõe os fundamentos da nova ciência da mecânica, que se desenvolverá neste século até alcançar 50 anos mais tarde, com os Princípios matemáticos da filosofia natural de Newton, obra publicada em 1687, a formulção que marca o nascimento definitivo da ciência experimental moderna.
Até aqui tentei expor os
dados básicos do processo de Galileu. A partir deste momento
me ocuparei da valorização deses dados. Dada a perspectiva
que adotei, somente aludirei brevemente a alguns aspectos que considero
especialmente interessantes.
Em primeiro lugar, podemos dizer que sabemos o fundamental so processo de Galileu?, é possível que existam dados importantes desconhecidos? A resposta é que os documentos que se conservam permitem reconstruir quase todos os aspectos do processo com grande confiabilidade. Possuímos os interrogatórios e declarações de Galileu em sua totalidade, assim como as decisões do Papa e da Congregação do Santo Ofício. Neste terreno, não é plausível que apareçam novos documentos que afetem substancialmente ao que já sabemos. Seguramente existem buracos, um deles, bastante importante, se refere aos acontecimentos do verão de 1632, desde que o Diálogo chegou Roma até que o Papa convocasse a congregação de teólogos para decidir o que fazer. Quem e como informou ao Papa? Galileu sempre considerou seu processo como conseqüência das informações tendenciosas de seus inimigos. É possível que existam documentos sobre esses acontecimentos, cujo conhecimento permitiria compreender melhor porque se desenrolaram do modo que o fizeram. Poderíamos saber, talvez, até que ponto as coisas poderiam ter acontecido de outra maneira. De todos os modos, isso não mudaria os fatos já conhecidos, entre os quais se conta que Galileu levou adiante, durante anos, seu programa copernicano, ainda que exteriormente perecesse ter renunciado a ele, e que Urbano VIII ficou muito afetado quando advertiu que seu admirado amigo estava, na realidade, fazendo um jogo diferente do que ele pensava.
Isto não significa que Galileu
mentisse deliberadamente. Mas não há dúvida
de que considerou o copernicanismo como uma teoria verdadeira, também
depois do processo. Em sua carta a Cristina de Lorena explicou amplamente
como se poderia solucionar a aparente contradição
entre o copernicanismo e a Bíblia; tinha razão e o
sabia: por este motivo podia admitir, com consciência tranqüila,
o copernicanismo, inclusive depois das condenações
de 1616 e 1633. O mesmo acontecia com seus amigos e com outras pessoas
suficientemene informadas. O que nos leva a perguntar por que as
autoridades eclesiásticas condenaram uma teoria que, se bem
não estava completamente demonstrada naquele momento, podia
demonstrar-se e, de fato, recebeu novas confirmações
nos anos seguintes.
Para responder a essa pergunta devemos
advertir que a ciência experimental moderna, tal como conhecemos
agora, estava nascendo e se encontrava ainda em um estado embrionário.
Precisamente foi Galileu um de seus pais fundadores. Mas o Galileu
que viam as autoridades era muito diferente do que vemos agora,
à luz do desenvolvimento da física durante quase quatro
séculos. Galileu havia realizado descobrimentos astronômicos
importantes e tinha sido reconhecido. Mas não podia provar
o movimento da Terra. A ciência moderna praticamente não
existia: as contribuições mais importantes de Galileu
a essa ciência foram publicadas, nos Discursos, depois do
processo. Os eclesiásticos (Belarmino, Urbano VIII e muitos
outros), igualmente à maioria dos professores universitários,
pensavam que o movimento da Terra era um absurdo, porque contradiz
muitas experiências certas e, se existisse, deveria ter conseqüências
que de fato não se observavam. Não era fácil
levar a sério o copernicanismo. Os teólogos que valorizaram
em 1616 a quietude do Sol e o movimento da Terra disseram, em primeiro
lugar, que ambos eram absurdos de filsofia, além disso pareciam
contrários à Bíblia. Belarmino, e outros eclesiásticos,
advertiram que se chegasse a demonstrar o movimento da Terra, deveria-se
interpretar uma série de passagens bíblicas de modo
não literal; sabiam que isso poderia se fazer, mas pensavam
que o movimento da Terra nunca seria demonstrado e que era absurdo.
Isto não justifica toda sua atuação, mas permite
situá-la em seu contexto histórico real e torná-la
compreensível.
O processo de Galileu não
deveria ser entendido como um enfrentamento entre ciência
e religião. Galileu sempre se considerou católico
e tentou mostrar que o copernicanismo não se opunha à
doutrina católica. Por sua vez, os eclesiásticos não
se opunham ao progresso da ciência; durante sua viagem a Roma
em 1611, foi tributado a Galileu uma grande homenagem pública
em um ato celebrado no Colégio Romano dos jesuítas,
por suas descobertas astronômicas. O problema é que
não consideravam que o movimento da Terra fosse uma verdade
científica, e inclusive alguns (entre eles, o Papa Urbano
VIII) estavam convencidos de que nunca poderia ser demonstrado.
Os inimigos de Galileu desempenharam,
provavelmente, um papel importante para desencadear o processo.
O termperamento muito vivo de Galileu não contribuía
para apaziguar as numerosas disputas que originou seu trabalho desde
1610. Além disso, ele mesmo procurou inimizades de modo desnecessário,
de tal modo que, quando o Diálogo foi publicado em 1632,
é fácil imaginar que seus inimigos em Roma puderam
apresentar ao Papa as coisas de tal maneira que, tendo em conta
as difíceis circunstâncias pelas que atravessava UrbanoVIII,
este se considerou ofendido por Galileu e viu ser necessário
intervir com força. O temperamento de Urbano VIII também
desempenhou um papel: tinha um caráter forte e pensou que
Galileu tinha traído sua amizade sincera; repetiu várias
vezes ao embaixador Niccolini que Galileu havia caçoado dele.
Consta que, ao falar deste tema com Niccolini, Urbano VIII se encolerizava.
Galileu certamente não pretendeu, de modo algum, caçoar
do Papa, mas é provável que os inimigos de Galileu,
no verão de 1632 convenceram ao Papa do contrário,
e que isto influira seriamente no desenvolvimento dos acontecimentos.
Não se deve pensar somente
em inimigos pessoais de Galileu. O movimento da Terra podia facilmente
ser visto como causa de dificuldades importantes para o cristianismo.
Se a Terra se transformasse em um planeta a mais, e se existissem
muitas mais estrelas das que se vêem a olho nu, não
poderia isto ser interpretado na linha de Giordano Bruno, quem afirmou
que existem muitos mundos como o nosso, com suas estrelas e planetas
habitados? Nesse caso, que significado teria a Encarnação
e a Redenção de Jesus Cristo?, o que aconteceria com
a salvação de possíveis seres inteligentes
que poderiam viver em outros lugares do universo? São perguntas
que, na atualidade, se propõem ainda com mais força
do que então, frente a possibilidade, remota mas real, de
que se chegue a saber que existe vida em outros lugares do universo.
Em realidade, não é difícil advertir que a
revelação cristã se refere diretamente ao que
acontece conosco e, portanto, não há dificuldade em
princípio para integrar dentro dela outros seres inteligentes.
Além disso, a Igreja ensina que os frutos da Redenção
se aplicam também a pessoas que viveram antes da Encarnação,
ou que vivem depois dela e não conhecem, sem culpa sua, a
verdade do cristianismo. Mas se compreende que estes problemas puderam
influir naquele momento. A associação do copernicanismo
com Bruno não podia favorecer a Galileu. Pode-se recordar
que duas pessoas chaves na condenação do copernicanismo
em 1616 foram o Papa Paulo V e o cardeal Belarmino; ambos eram Cardeais
da Inquisição quando, em 1600, o processo de Bruno
chegou a seu fim, e pode se supor que, ao pensar em copernicanismo,
o veriam, por assim dizer, associados aos erros teológicos
de Bruno.
O movimento da Terra parecia afetar
ao cristianismo desde outro ponto de vista. O Diálogo de
Galileu continha críticas muito fortes contra a filosofia
de Aristóteles, que se vinha usando, ao menos desde o século
XIII, como ajuda para a teologia. Nesta filosofia se admitia, por
exemplo, que no mundo existe finalidade, e que as qualidades sensíveis
existem objetivamente e são base do conhecimento humano.
Estas idéias pareciam se arruinar com a nova filosofia matemática
e mecanicista de Galileu. A nova ciência nascia em polêmica
com a filosifia natural antiga, e não parecia poder preencher
o buraco que esta deixava. Ainda que as críticas de Galileu
ao aristotelismo se reduzissem a aspectos concretos da física
que, certamente, deviam ser abandonados, parecia que a nova ciência
pretendia jogar fora, como se costuma dizer, a criança junto
com a banheira. Este problema segue sendo atual. Inclusive pode-se
dizer que o progresso científico dos últimos séculos
o tornou cada vez mais agudo. São muitas as vozes que pedem
um sério esforço para integrar o progresso científico
dentro de uma visão mais ampla que inclua as dimensões
metafísicas e éticas da vida humana. Neste sentido,
os que viam na nova ciência uma fonte de dificuldades não
estava completamente errados. Obviamente, o problema não
é a ciência em si mesma, de cuja legitimidade seria
absurdo duvidar. O progresso científico é ambivalente
e o fato de que possa se utilizar mal não significa que deva
castigar a ciência simplesmente tento sublinhar que, no fundo
do caso Galileu, encontram-se alguns problemas que são reais,
continuam sendo atuais, e ainda esperam uma solução.
Qual será o alcance do conhecimento científico é
um desses problemas.
Consta que houve uma tentativa de
denunciar a Galileu perante a Santa Sede por sua filosofia atomista,
exposta brevemente em sua obra, de 1623, Il Saggiatore, argumentando
que Galileu negava a objetividade das qualidades sensíveis
(cores, odores, sabores) e que isto contradiz a doutrina do Concílio
Trento sobre a Eucaristia, segundo a qual, depois da consagração,
encontram-se as epécies sacramentais (acidentes do pão,
como por exemplo as qualidades sensíveis) sem seu sujeito
natural. Chegou-se a dizer que o motivo mais profundo da acusação
contra Galileu em 1632 era este, e que o Papa conseguiu que o processo
se centrasse em torno ao movimento da Terra, porque em outro caso
as conseqüências teriam sido muito piores. A denúncia
mencionada existiu, mas parece exagerada demais centrar aí
os problemas de Galileu. Esta questão põe de manifesto,
entretanto, que a nova física vinha acompanhada por uma filosofia
mecanicista que, em parte, chocava com a filosofia e a teologia
geralmente admitidas, e é certo que este problema continuou
vivo durante muito tempo e inclusive continua vivo, em parte, na
atualidade.
O caso de Galileu não afetou
seriamente o progresso da ciência. A semente que Galileu plantou
deu fruto imediatamente, também na Itália. Ao cabo
de poucas décadas, Newton levou a física moderna até
seu nascimento definitivo, e o trabalho de Galileu ficou bem assentado.
Por fim, é interessante assinalar
que não existiu nenhum outro caso semelhante ao de Galileu.
O caso de Galileu não é um caso entro outros do mesmo
tipo. O caso mais semelhante é o do evolucionismo, mas a
teoria da evolução, dentro de seu âmbito científico,
nunca foi condenada por nenhum organismo da Igreja. Se se tenta
colocar no mesmo nível que o caso de Galileu assuntos como
o aborto, a eutanásia, a bioética, etc., deve-se advertir
que, se bem esses problemas incluem componentes relacionados com
a ciência, não são problemas propriamente científicos,
mas, no máximo, de aplicação dos conhecimentos
científicos. Mas isto exigiria uma reflexão específica
que vai além dos objetivos a que me propus.
REFERÊNCIAS:
Os dados deste artigo estão retirados, em sua maioria, da
Edição Nacional das obras de Galileu, preparada por
Antonio Favaro: Le Opere di Galileo Galilei, 20 volumes, reimpressão,
G. Barbèra Editore, Firenze 1968. Os documentos do processo
se encontram no tomo XIX, pp. 272-421, e também foram editados
por Sérgio Pagano: I documenti del processo di Galileo Galilei,
Pontifícia Academia Scientiarum, Cidade do Vaticano 1984.
Mariano Artigas
Retirado de www.arvo.net.
















