28 de out de 2025 às 16:28
Uma pequena delegação do Cazaquistão levou ao Vaticano duas caixas lacradas com cerca de 13 kg de documentos, testemunhos e relatos de milagres para a causa da serva de Deus Gertrude Detzel — leiga que manteve viva a fé católica por décadas de perseguição soviética. Os materiais, entregues ao Dicastério para as Causas dos Santos na semana passada marcam o início da fase romana da causa da primeira leiga da Ásia central a chegar a Roma.
"Foi uma recepção muito calorosa", disse o bispo auxiliar de Karaganda, Cazaquistão, Yevgeny Zinkovskiy, que acompanhou o dossiê a Roma como notário do processo diocesano. "Em meio a tantas causas, foi comovente ver como nossa história distante do Cazaquistão foi recebida de braços abertos. A Igreja universal agora acolheu Gertrude — nós a colocamos em suas mãos".
Detzel, nascida em 1903 numa família de etnia alemã na região do Cáucaso, na Rússia, foi deportada para o Cazaquistão no regime de Joseph Stalin. Ela suportou campos de trabalhos forçados — enviada para lá por causa de sua etnia —, mas seria presa novamente mais tarde por outro motivo: seu zelo missionário na disseminação da fé.
“Mesmo na prisão, ela não conseguia parar de falar sobre Deus”, disse o bispo Joseph Werth, que nasceu em Karaganda e conheceu Detzel pessoalmente antes de ser bispo de Novosibirsk, Rússia. “Quando Stalin morreu e chegou a hora de libertar os prisioneiros, os guardas teriam dito: Deixem-na ir primeiro — senão ela converterá todos aqui. Essa foi a impressão que ela deixou — ela não conseguia deixar de evangelizar”.
Depois de cerca de uma década de trabalhos forçados e prisão — com quatro anos numa prisão soviética por sua fé — Detzel se estabeleceu em Karaganda em 1956, atraída pela forte comunidade católica da cidade. "Ela não pensava em onde poderia viver melhor", disse o bispo Adelio Dell'Oro, que supervisionou a fase diocesana de sua causa em Karaganda. "Ela pensava em onde poderia servir — ela queria estar onde houvesse uma comunidade católica".
Mesmo quando criança, a vida de Detzel girava em torno da fé. Werth disse: “Quando pequena, Gertrude ficou triste por ter nascido menina e não poder se tornar padre. O padre lhe disse: Um dia você entenderá. E, de fato, graças a ela, a chama da fé permaneceu viva nos campos e, mais tarde, em Karaganda”.
Já adulta, Detzel tornou-se catequista e líder entre fiéis — batizando crianças, preparando-as para os sacramentos e liderando orações na ausência dos padres. Cada reunião trazia riscos; a descoberta podia significar outra prisão.
“Ela formou toda uma geração de fiéis — não só leigos, mas também padres e consagrados”, disse Werth. “Eu mesmo aprendi a fé com ela”.
Para Dell'Oro, a história de Detzel traz uma mensagem que vai além do Cazaquistão.
“No regime soviético, as pessoas eram forçadas a viver como se Deus não existisse”, disse ele. “Hoje, ninguém nos proíbe de crer — mas muitas vezes vivemos como se Deus não importasse. Gertrude nos lembra que a fé deve voltar a ser o centro da vida — na perseguição ou na liberdade”.
O interesse pela santidade de Detzel surgiu pela primeira vez na visita "ad limina" dos bispos da Ásia central a Roma em 2019, quando o papa Francisco os incentivou a preservar a memória daqueles que mantiveram a fé viva "no silêncio e no sofrimento". Sua causa foi aberta em Saratov, Rússia, em janeiro de 2020, sob o bispo Clemens Pickel, e transferida para Karaganda em agosto de 2021, 50 anos depois de sua morte em 1971.
O inquérito diocesano foi concluído no início deste ano depois de coletar depoimentos do Cazaquistão, Rússia e Alemanha.
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Muitas testemunhas já eram idosas, o que tornava a coleta de provas confiáveis uma corrida contra o tempo. Mesmo assim, cerca de 25 depoimentos foram registrados — como os de Werth e de vários religiosos e leigos que conheceram Detzel pessoalmente.
Dell'Oro disse que a equipe de pesquisa até teve acesso ao arquivo presidencial em Almaty, Cazaquistão, onde localizou e fotografou o arquivo pessoal de Detzel, confirmando os anos de prisão que ela suportou por sua fé.
“Cada documento parecia uma pequena ressurreição da memória”, disse ele. “Era como se a verdade sobre a vida dela finalmente pudesse falar”.
Embora não existissem comunidades religiosas no Cazaquistão na época, Detzel viveu sua vocação como leiga consagrada. Antes de sua deportação, acredita-se que ela tenha feito votos privados, ingressando posteriormente na Ordem Terceira Franciscana sob o comando do bispo servo de Deus Alexander Chira — o bispo clandestino que também foi exilado em Karaganda. Quando seus restos mortais foram exumados, um anel e uma coroa de flores foram encontrados — sinais de uma consagração oculta e de uma vida inteiramente dedicada a Deus como virgem consagrada.
Segundo Werth, Detzel liderava as liturgias da Palavra dominicais quando padres estavam ausentes — proclamando as Escrituras, fazendo breves reflexões e preparando crianças e adultos para os sacramentos. Quando os padres podiam passar secretamente, disse Dell'Oro, eles confiavam a ela a Eucaristia para levar a fiéis que não podiam ser contatados publicamente.
A casa dela tornou-se um refúgio para os fiéis — um lugar de oração e catequese. Só como leiga ela poderia ter entrado em lares e sustentado famílias na fé, quando padres não podiam.
"Ela não tentou substituir os padres", disse Dell'Oro. "Mas quando eles estavam ausentes, ela fazia o que era necessário".
“Gertrude formou consciências”, disse Werth. “Ela nos ensinou que a santidade começa com a fidelidade nas pequenas coisas — e daí, todo o resto flui”.
O fruto espiritual do testemunho de Detzel continua crescendo na Igreja — entre padres, religiosos e leigos cujas vocações foram moldadas pelo exemplo dela.
Em 22 de dezembro de 1989, a Suprema Corte da República Socialista Soviética do Cazaquistão a reabilitou oficialmente, reconhecendo que ela não havia cometido nenhum crime. Pouco tempo depois, o sistema soviético que tentou silenciar a fé entrou em colapso, e o Cazaquistão declarou sua soberania em 25 de outubro de 1990 — momento que passou a ser comemorado anualmente como o Dia da República. Este ano, 2025, marca 35 anos desde essa declaração.
A causa de Detzel está agora em Roma sob a tutela do padre Zdzisław Kijas, OFM Conv., que orientou causas importantes, como as do cardeal Stefan Wyszyński e da família Ulma.





