“Quem arrisca a vida no mar não invade, procura acolhimento e vida”, disse o papa Francisco hoje (23) na conclusão da terceira edição dos Encontros do Mediterrâneo, onde convidou a refletir sobre o sofrimento dos imigrantes que perdem a vida no mar.

O principal motivo da visita do papa a Marselha foi este encontro, que visa “analisar os desafios da região mediterrânica”, entre os quais a pobreza extrema, a diversidade religiosa, as questões ambientais ou a situação dos imigrantes.

À chegada ao Palais du Pharo, onde aconteceu este evento, o papa Francisco foi recebido pelo presidente da França, Emmanuel Macron.

Depois da saudação de boas-vindas do cardeal Jean-Marc Aveline, arcebispo de Marselha, foi transmitido um vídeo onde se podiam ver diversas imagens da população de Marselha com as palavras do papa ao fundo. Mais tarde, uma jovem que ajuda os migrantes contou o seu testemunho e também um bispo de Tirana, Albânia, falou da sua infância sob o comunismo.

No seu discurso, o papa Francisco definiu a cidade de Marselha como “o sorriso do Mediterrâneo” e refletiu sobre 3 realidades que caracterizam a cidade: o mar, o porto e o farol.

O mar

Em relação ao mar, Francisco disse que “Uma maré de povos fez desta cidade um mosaico de esperança, com a sua grande tradição multiétnica e multicultural, representada pelos mais de 60 Consulados presentes no seu território”.

“O mare nostrum é espaço de encontro: entre as religiões abraâmicas, entre o pensamento grego, latino e árabe, entre a ciência, a filosofia e o direito, e entre muitas outras realidades”, continuou.

Francisco renovou o seu convite “a alargar as fronteiras do coração, superando barreiras étnicas e culturais” e disse que no Mediterrâneo “estão concentrados os desafios do mundo inteiro”.

Para o papa Francisco, este lugar “é uma primeira linha de desafios que afetam a todos: pensemos no desafio climático, com o Mediterrâneo a representar um ponto crítico onde as mudanças se notam mais rapidamente”.

“Este mar, ambiente que oferece uma abordagem única da complexidade, é «espelho do mundo»” e carrega em si uma vocação global à fraternidade, única via para prevenir e superar a conflitualidade”, disse.

Segundo o papa, este encontro deverá ajudar a reconhecer o valor da contribuição do Mediterrâneo. Será mais uma vez “um laboratório de paz”.

“O Mediterrâneo exprime um pensamento que não é uniforme e ideológico, mas poliédrico e aderente à realidade; um pensamento vital, aberto e conciliador: um pensamento comunitário”, disse.

“Com as armas, se faz a guerra, não a paz; e com a ganância de poder volta-se ao passado, não se constrói o futuro”, continuou.

Reiterou que os imigrantes mediterrânicos “são rostos” e não “números” e apelou a “tratá-los como irmãos, cujas histórias devemos conhecer, e não como problemas molestos; consiste em acolhê-los, não em escondê-los; em integrá-los, não em desembaraçar-se deles; em dar-lhes dignidade”.

“Hoje o mar da convivência humana está poluído pela precariedade, que fere também esta esplêndida Marselha. E onde há precariedade, há criminalidade: onde há pobreza material, educativa, laboral, cultural e religiosa, encontram terreno propício as máfias e os tráficos ilícitos”.

Para o papa Francisco, “o mero empenho das instituições não basta; é preciso um sobressalto de consciência para dizer «não» à ilegalidade e «sim» à solidariedade, que não é uma gota no mar, mas o elemento indispensável para purificar as suas águas”.

Francisco fez as seguintes perguntas: “Hoje, quem se faz próximo dos jovens abandonados a si mesmos, presa fácil da criminalidade e da prostituição? Quem se faz próximo das pessoas escravizadas por um trabalho que deveria torná-las mais livres? Quem cuida das famílias amedrontadas, com medo do futuro e de trazer ao mundo novas criaturas? Quem presta ouvidos ao gemido dos idosos abandonados que, em vez de ser valorizados, acabam estacionados, com a perspectiva falsamente dignificante duma morte doce, quando na realidade é mais salgada que as águas do mar?”

“Quem pensa nos bebês não nascidos, recusados em nome dum falso direito ao progresso, que é, ao contrário, um retrocesso nas necessidades do indivíduo?” “Quem olha com compaixão para além da própria margem a fim de ouvir os gritos de dor que se levantam do Norte de África e do Médio Oriente?” perguntou o papa.

Ele fez um apelo por um compromisso real “para que quantos fazem parte da sociedade possam tornar-se cidadãos de pleno direito”.

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O papa disse que “há um grito de dor que ressoa mais do que qualquer outro e está a transformar o mare nostrum em mare mortuum, a mudar o Mediterrâneo de berço da civilização em túmulo da dignidade. É o grito sufocado dos irmãos e irmãs migrantes”.

O porto

O papa Francisco lamentou que “ressoaram duas palavras, alimentando os temores das pessoas: ‘invasão’ e ‘emergência’”. Defendeu que quem “quem arrisca a vida no mar não invade, procura acolhimento”.

“Quanto à emergência, o fenômeno migratório não é tanto uma emergência momentânea, sempre boa para difundir propaganda alarmista, como sobretudo um dado real dos nossos tempos, um processo que envolve em torno do Mediterrâneo três continentes e que deve ser governado com sábia clarividência: com uma responsabilidade europeia capaz de enfrentar as dificuldades objetivas”.

“A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão”.

Para o papa, o imigrante deve ser “acolhido, acompanhado, promovido e integrado” e disse que “a assimilação, que não tem em conta as diferenças e permanece rígida nos próprios paradigmas, faz com que a ideia prevaleça sobre a realidade e compromete o futuro, aumentando as distâncias e gerando a formação de guetos, que fazem crescer hostilidades e impaciências".

“Precisamos de fraternidade como do pão”, disse Francisco, ao afirmar que “o porto de Marselha é também uma ‘porta da fé’”.

Francisco fez um chamado à caridade e disse que os cristãos são “chamados a dar testemunho”. “Que seja porto de restabelecimento, onde as pessoas se sintam encorajadas a fazerem-se ao largo na vida com a força incomparável da alegria de Cristo”, pediu o papa.

O farol

Em terceiro lugar, o papa Francisco refletiu sobre a imagem do “farol”. Ele considerou a possibilidade de criar uma “Conferência Episcopal Mediterrânea”, que permitiria “mais possibilidades de intercâmbio e daria maior representação eclesiástica à região”.

“E pensando ainda no porto e na questão migratória, poderia ser proveitoso trabalhar em prol duma pastoral específica ainda mais conectada, de modo que as dioceses mais expostas pudessem assegurar melhor assistência espiritual e humana às irmãs e aos irmãos que chegam necessitados de tudo”, disse ele.

Depois, dirigiu-se aos jovens, que para o papa são "a luz que indica a rota futura" e pediu "que as universidades mediterrânicas sejam laboratórios de sonhos e estaleiros de construção de futuro, onde os jovens amadureçam encontrando-se, conhecendo-se e descobrindo culturas e contextos simultaneamente vizinhos e diversos".

Ele disse que “já desde criança, «misturando-se» com as outras, podem-se superar muitas barreiras e preconceitos, desenvolvendo a própria identidade no contexto dum enriquecimento mútuo”.

Afirmou ainda que “outro é o desafio duma teologia mediterrânica, que desenvolva um pensamento aderente à realidade, «casa» do humano e não apenas do dado técnico, capaz de unir as gerações ligando memória e futuro, e de promover com originalidade o caminho ecuménico entre os cristãos e o diálogo entre crentes de diferentes religiões”.

“E é preciso também refletir sobre o mistério de Deus, que ninguém pode pretender possuir ou dominar, antes deve ser subtraído a todo o uso violento e instrumental, cientes de que a confissão da sua grandeza pressupõe em nós a humildade dos indagadores”.

Concluindo, pediu aos presentes que sejam “um mar de bem, para fazer frente às pobrezas de hoje com uma sinergia solidária; sede porto acolhedor, para abraçar quem procura um futuro melhor; sede farol de paz, para atravessar, através da cultura do encontro, os tenebrosos abismos da violência e da guerra”.

No final do seu discurso, uma jovem imigrante cantou a Ave-Maria em siríaco.