“Não vejo como é possível dizer que se reconhece a validade do Concílio, embora me surpreenda que um católico possa presumir não fazê-lo, e ao mesmo tempo não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum concilium”, escreve o papa Francisco em carta apostólica sobre a liturgia que publicou hoje (29). O documento retoma o assunto quase um ano depois do motu proprio Traditionis custodes, com o qual o papa restringiu severamente a celebração da Missa Tradicional anterior à reforma do Concílio Vaticano II, autorizada por são João Paulo II e Bento XVI.

Nas 15 páginas da carta apostólica Desiderio desideravi, publlicada apenas em alemão, inglês, francês, espanhol e italiano, mas não em latim, o papa diz querer “convidar toda a Igreja a redescobrir, salvaguardar e viver a verdade e o poder da celebração cristã”.

“Quero que a beleza da celebração cristã e suas consequências necessárias para a vida da Igreja não sejam prejudicadas por uma compreensão superficial ou reduzida de seu valor ou, pior ainda, por serem exploradas a serviço de alguma visão ideológica, não importa qual de que matiz”, disse ele no documento, publicado na Solenidade de São Pedro e São Paulo.

O título da carta é tirado do texto latino de Lucas 22:15: “Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar”: “Desejei ardentementen comer esta Páscoa convosco antes de sofrer”.

O papa Francisco disse que, depois de escrever uma carta aos bispos para acompanhar Traditionis custodes, quis dirigir-se a todos os católicos com algumas reflexões sobre a formação litúrgica, a importância teológica da missa e a aceitação dos documentos litúrgicos do Concílio Vaticano II.

“Devemos ao Concílio – e ao movimento litúrgico que o precedeu – a redescoberta de uma compreensão teológica da Liturgia e de sua importância na vida da Igreja”, disse Francisco. “Abandonemos nossas polêmicas para ouvirmos juntos o que o Espírito está dizendo à Igreja. Cuidemos da nossa comunhão. Continuemos maravilhados com a beleza da liturgia”.

Ele disse que os princípios declarados na Sacrosanctum concilium, a constituição do Vaticano II sobre a sagrada liturgia, foram fundamentais para a reforma da liturgia e continuam sendo fundamentais para a promoção de sua “celebração plena, consciente, ativa e frutífera”.

“A não aceitação da reforma litúrgica, como também uma compreensão superficial dela, nos desvia da obrigação de encontrar respostas para a pergunta que volto a repetir: como podemos crescer em nossa capacidade de viver plenamente a ação litúrgica? Como continuamos a nos deixar maravilhar com o que acontece na celebração sob nossos olhos?”

“Precisamos de uma formação litúrgica séria e dinâmica”, escreveu o papa. “Seria simplista ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre gostos diferentes sobre uma determinada forma ritual”.

Por isso, alega o papa na carta, sentiu a necessidade de publicar Traditionis custodes, para afirmar que os livros litúrgicos promulgados pelos papas são Paulo VI e são João Paulo II após o Concílio Vaticano II são a “expressão única da lex orandi [a lei da oração] do Rito Romano".

Na carta de hoje, o papa diz que a formação litúrgica tem que ser acessível a todos os católicos, além do ambiente acadêmico, a fim de reviver um sentimento de admiração pelo mistério do sacrifício da Missa.

“A plena extensão da nossa formação é a nossa conformação a Cristo”, explicou. “Repito: não tem a ver com um processo mental abstrato, mas com tornar-se Ele. Este é o propósito para o qual o Espírito é dado, cuja ação é sempre e somente para confeccionar o Corpo de Cristo”.

O papa também falou sobre a importância de uma ars celebrandi, a “arte de celebrar” a Missa.

“Sejamos claros aqui: todos os aspectos da celebração devem ser cuidadosamente cuidados (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestimentas, canto, música...) e todas as rubricas devem ser observadas”, disse. “Tal atenção bastaria para evitar que se roube da assembléia o que lhe é devido; ou seja, o mistério pascal celebrado de acordo com o ritual que a Igreja estabelece”.

“Mas”, continuou ele, “mesmo que a qualidade e a ação adequada da celebração estivessem garantidas, isso não seria suficiente para tornar nossa participação plena”.

A formação litúrgica deve ensinar as pessoas a ler e entender os símbolos, disse ele, referindo-se a Romano Guardini, padre e intelectual católico alemão do século XX.

O papa comenta: “Tendo perdido a capacidade de compreender o valor simbólico do corpo e de cada criatura torna a linguagem simbólica da Liturgia quase inacessível ao homem moderno. No entanto, não se trata de renunciar a esta linguagem: não é possível renunciar a ela, porque é o que a Santíssima Trindade escolheu para se juntar a nós na carne da Palavra. Pelo contrário, trata-se de recuperar a capacidade de colocar e de compreender os símbolos da liturgia. Não devemos nos desesperar, porque no homem esta dimensão, como acabei de dizer, é constitutiva e, apesar dos males do materialismo e do espiritualismo - ambos negação da unidade do corpo e da alma - está sempre pronta para ressurgir, como qualquer verdade”.

Francisco disse ter notado que a maneira de uma comunidade católica viver a celebração da Missa é condicionada pela maneira como o pastor a celebra, e quando a maneira de celebração é inadequada, a “raiz comum” é “um personalismo acentuado do estilo de celebração que às vezes expressa uma mania mal disfarçada de ser o centro das atenções”.

“Muitas vezes isso fica mais evidente quando nossas celebrações são transmitidas online, algo nem sempre oportuno e que precisa de mais reflexão”, observou.

“A ação da celebração” da Missa, disse ele, “é o lugar no qual, por meio do memorial, o mistério pascal se torna presente para que os batizados, por meio de sua participação, possam experimentá-lo em suas próprias vidas”.

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“Sem esse entendimento, a celebração cai facilmente numa preocupação com o exterior (mais ou menos refinada) ou numa preocupação apenas por rubricas (mais ou menos rígidas)”, disse.

“A fé cristã ou é um encontro com Ele vivo, ou não existe”, disse o papa. “A liturgia nos garante a possibilidade de tal encontro. Para nós, uma vaga lembrança da Última Ceia não adiantaria. Precisamos estar presentes nessa Ceia, para poder ouvir a sua voz, comer o seu Corpo e beber o seu Sangue. Precisamos Dele.”

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