Thiago e Rafaela de Jesus têm sete filhos entre 1 e 11 anos de idade. Nenhum deles vai à escola. Há três anos o casal decidiu aderir ao homeschooling, o ensino em casa. “Hoje a escola tende a formar profissionais”, explica Thiago. “Claro, queremos que nossos filhos sejam bons cidadãos, escolham uma profissão e sejam muito bons naquilo que vão fazer, mas que eles pensem em amar a Deus e servir ao próximo. E isso a escola esqueceu”.

Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), 7,5 mil famílias praticam homeschooling no Brasil atualmente, com um total de 15 mil estudantes entre 4 e 17 anos. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que esta modalidade de ensino é constitucional, mas precisa ser regulamentada por lei para poder ser adotada no país.

“As famílias estão numa espécie de limbo jurídico, aguardando a regulamentação da modalidade no país”, disse à ACI Digital Rick Dias, presidente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). “Muitas são denunciadas, processadas, perseguidas pelo judiciário, esse é o risco maior, mas ainda assim o movimento só cresce no Brasil”, disse Dias. Segundo os dados da Aned, a taxa de crescimento da educação domiciliar no Brasil é de 55% ao ano.

Na quinta-feira 10 de junho, o Congresso deu um passo na direção de diminuir o limbo jurídico em que vive o homeschooling brasileiro. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 3262/19, pelo qual o homeschooling deixa de configurar crime de abandono intelectual. O texto de autoria das deputadas Chris Tonietto (PSL-RJ), Bia Kicis (PSL-DF) e Caroline de Toni (PSL-SC) altera o artigo 246 do Código Penal, que prevê detenção de quinze dias a um mês, ou multa para quem “deixar sem justa causa, prover à instrução primária de filho em idade escolar”.

A proposta aprovada na CCJ acrescenta ao artigo um parágrafo: “os pais ou responsáveis que ofertarem a modalidade de educação domiciliar (homeschooling) não incorrem no crime previsto neste artigo”. A mudança proposta no Código Penal ainda tem que ser votada pelo plenário da Câmara dos Deputados para se tornar lei.

Prisão e multa, porém, não são os únicos problemas para quem decide educar em casa. Elisa de Oliveira Flemer foi aprovada aos 17 anos em Engenharia Civil na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), mas a Justiça a proibiu de iniciar a faculdade em 2021. Elisa fez o ensino médio em casa porque aprende rápido e se entediava com o ritmo das aulas na escola. Aprovada por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), Elisa não pôde fazer matrícula por não ter diploma do segundo grau. O documento com sanção estatal foi considerado mais importante do que a capacidade intelectual demonstrada pela estudante para decidir se ela pode ou não se tornar engenheira.

Isso ocorre porque, no Brasil “a instituição escolar é soberana”, disse à ACI Digital Édson Prado de Andrade, professor de direito, advogado, gestor da Associação Brasileira de Defesa e Promoção da Educação Familiar (ABDPEF) e autor de uma tese sobre homeschooling pela USP. A educação domiciliar “é vista como um subsistema de um sistema escolar”.

 

Andrade esteve no dia 3 de maio último na Câmara dos Deputados em Brasília para um debate sobre os projetos de regulamentação do homeschooling que tramitam na casa. “O reducionismo da educação à escola que se fez no Brasil e no mundo ‘civilizado’ deve-se à busca de instruir e educar as massas populacionais no bojo de certos ideais e ideologias”, disse Andrade.

Por isso mesmo, Thiago de Jesus e sua mulher Rafaela adotaram a educação domiciliar. “A pureza das crianças está sendo muito atacada nas escolas. A própria Igreja está sendo atacada de forma intensa. E a família”, disseram. A escola “perdeu um pouco a identidade daquilo que deveria ser”.

Em sua casa, a rotina do homeschooling inclui os estudos pela manhã, mas durante todo o dia as crianças fazem perguntas, tiram dúvidas. “Tem o horário formal, mas é realmente o dia a dia de estudos, de perguntas”, contou Rafaela. E, além das matérias formais, como Português, Matemática, Geografia, História e Ciências, “damos também moral, civilidade”.

Outro ponto importante na educação dos filhos para Thiago e Rafaela é a Sagrada Escritura e o Catecismo, “o que não é pouca coisa, pois aqui em casa acaba tomando mais tempo”. Afinal, eles adotaram a educação domiciliar “por Deus também”.

A rotina do casal espelha exatamente a definição que Rick Dias, da Aned, dá de homeschooling: ele “ocorre quando os pais assumem o controle do processo global de educação dos filhos, ou seja, além do ensino de valores, hábitos, costumes e crenças, se responsabilizam também pela instrução formal dos filhos que, normalmente, fica a cargo da escola”.

Para que a educação domiciliar aconteça “de fato”, Rick Dias aponta pelo menos três características necessárias: “a educação deve ser integral”; “deve ocorrer o tempo todo e em qualquer lugar, não apenas dentro do lar”; e “deve conduzir os filhos à autonomia no processo de aprendizado”.

Há “vários formatos” dessa modalidade de ensino, diz Felipe Nery, presidente do Observatório Interamericano de Biopolítica. “Temos pais que fizeram cooperativas e cada um desses pais se reveza na educação das crianças; há pais que contratam pessoas específicas para algumas áreas; existem aqueles que os próprios pais estão cuidando de todo o processo formativo de seus filhos”.

As famílias católicas que optaram pelo homeschooling no Brasil têm se organizado e há várias “iniciativas católicas que acabam colaborando”, por exemplo, “para a produção e tradução de materiais” a serem usados com as crianças, uma vez que este conteúdo ainda é algo raro no Brasil, diz Nery. “São utilizadas obras de valor que às vezes são desprezadas nas escolas, pois só ficam com aquele material didático”.

O processo é benéfico para todos, garante Nery. “Esses pais estão lendo muito, estudando também”.

Geralmente os pais optam pela educação domiciliar por “desejo de oferecer uma educação de qualidade para os filhos, explorando ao máximo o potencial das crianças”; para “oferecer uma socialização mais ampla, qual seja, com indivíduos de todas as idades”; pela “insatisfação com o ambiente escolar, motivado por eventos de violência, bullying, pressões sociais inadequadas, insegurança e exposição dos filhos a amizades indesejadas pelos próprios pais”; devido à “má qualidade da educação escolar”; e por causa da “doutrinação ideológica nas escolas”, diz Rick Dias, da Aned.

Curiosamente, esses motivos são exatamente o que os principais críticos do homeschooling apontam como problemas: falta de socialização das crianças, a qualidade do ensino e o risco de abusos no lar.

“As pessoas pensam que, por estudar em casa, a criança fica só em casa. Mas não, ela sai, vai ao mercado, vai ao parque, tem outros familiares, amigos”, disse Rafaela de Jesus. “É uma pergunta que sempre se faz, mas, na verdade, não existe socialização só na escola. Reduzir a escola à socialização é diminuir muito a função da escola”, afirmou.

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Em relação à qualidade do ensino, Rick Dias afirma que, no Brasil, “é uma crítica injusta, pois é desprovida de quaisquer embasamentos ou provas, sejam empíricas ou científicas”. Estudos e pesquisas realizados em outros países atestam a eficácia do método. “Estudantes educados em casa possuem resultados acadêmicos de 15% a 30% superiores aos dos estudantes de escolas convencionais”, disse Dias.

Quanto ao risco de abusos contra as crianças, Nery é taxativo: “não temos esse problema”, pois os pais vão estar muito atentos. “O abuso, como vemos acontecer, é por parte justamente de pais que não têm essa consciência educativa”, sublinhou. Nas famílias que adotam a educação domiciliar, os pais precisam “reorganizar toda a sua vida familiar, de trabalho, para estar muito presentes” com os filhos, disse.

Há mais de um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados para regulamentar o homeschooling. O PL 3179/12, de autoria do deputado Lincoln Portela (PL-MG), que tramita em regime de prioridade, tem como relatora a deputada Luisa Canziani (PTB-PR).

À ACI Digital, Canziani disse que seu relatório “vai fazer duas coisas: resguardar o direito das crianças e regulamentar o dever das famílias”. Segundo ela, haverá “uma menção explícita para que se siga a Base Nacional Comum Curricular” e também a “previsão de avaliações aos estudantes”.

Outro ponto será “a questão de formação para os pais”. De acordo com a relatora, “um dos responsáveis precisa ter, no mínimo, o ensino superior completo”. Além disso, o texto estabelecerá que “os alunos em homeschooling terão vínculo com escolas, públicas ou privadas, e quem vai determinar as diretrizes gerais será o Conselho Nacional de Educação”.

Canziani quer ver o projeto aprovado ainda este ano, mas ele está longe do princípio que Andrade, da ABDPEF, apresentou aos deputados no debate de que participou. “As instituições de ensino têm seu papel, seu background, sua estrutura, suas grades, seus programas. As famílias devem trabalhar com projeto pedagógico amplo, mas não devem ser enquadradas dentro da caixa escolar”, disse ele na Câmara.

Para Prado de Andrade, “essa caixa escolar precisa ser revista” e, se “não resolvermos no Brasil o problema das famílias que procuram se ocultar, nós continuaremos com esta questão e uma violação das liberdades da criança de aprender a partir do seu próprio tempo, dos seus interesses e da sua própria inteligência”.

Mais do que um método de ensino, um direito das famílias, Thiago e Rafaela de Jesus veem o homeschooling como uma vocação. É preciso “dar o coração, a alma, tudo”, pois se não fizer isso, perde-se “a constância, a perseverança, a atenção que você tem que dar”.

Daí a importância da oração. “Rezar mesmo, rezar pela vocação dos filhos, para que Deus providencie todas as coisas, e ter coragem, porque a coragem te impulsiona para realidades novas”, pois somente na prática é que se vê “que não é um bicho de sete cabeças, pelo contrário, o pai e a mãe têm uma perspicácia natural para educar e isso vem de Deus; não somos pedagogos, mas somos pais e com certeza Deus ajuda”, conclui Thiago.

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