O papa emérito Bento XVI pediu pessoalmente desculpas aos sobreviventes de abuso sexual por parte de clérigos, em uma carta em resposta a um relatório que criticava sua gestão de casos de abuso durante seu mandato como arcebispo de Munique de 1977 a 1982.

Em uma carta de quase mil palavras divulgada hoje, 8 de fevereiro, o papa aposentado de 94 anos disse que sua dor era ainda maior porque ele “assumiu uma grande responsabilidade na Igreja Católica”.

A carta foi acompanhada por três páginas de refutação das críticas contidas no relatório de abuso de Munique. Quatro conselheiros do papa emérito reiteraram que ele não tinha “conhecimento de abuso sexual cometido ou suspeita de abuso sexual cometido por padres” em nenhum dos casos mencionados no relatório.

Eles também disseram que ele “não mentiu nem conscientemente fez uma declaração falsa” sobre sua presença em uma reunião em 1980 sobre a transferência de um padre acusado de abuso para a arquidiocese de Munique.

Um ‘pedido sincero de perdão’

Em sua carta, Bento XVI observou que a celebração da missa começa com um ato penitencial no qual os católicos pedem perdão a Deus, confessando que pecaram muito “por minha culpa, por minha culpa, por minha tão grande culpa”.

“Em todos os meus encontros com vítimas de abuso sexual por padres, especialmente durante minhas muitas viagens apostólicas, vi em primeira mão os efeitos de uma falta muito grave”, escreveu ele na carta.

“E eu vim a entender que nós mesmos somos atraídos para essa falha grave sempre que a negligenciamos ou deixamos de enfrentá-la com a determinação e a responsabilidade necessárias, como muitas vezes aconteceu e continua a acontecer”, escreveu Bento XVI. “Como nessas reuniões, mais uma vez só posso expressar a todas as vítimas de abuso sexual minha profunda vergonha, minha profunda tristeza e meu sincero pedido de perdão”.

“Tive grandes responsabilidades na Igreja Católica”, escreveu o papa emérito. “Maior é a minha dor pelos abusos e erros que ocorreram nesses diferentes lugares durante o tempo do meu mandato. Cada caso individual de abuso sexual é terrível e irreparável. As vítimas de abuso sexual têm minha mais profunda simpatia e sinto grande tristeza por cada caso individual”.

Acusações de má conduta

O “Relatório sobre abuso sexual de menores e adultos vulneráveis ​​por clérigos, e funcionários, na arquidiocese de Munique e Freising de 1945 a 2019”, foi divulgado em uma entrevista coletiva em Munique, Alemanha, em 20 de janeiro.

O relatório de mais de mil páginas, feito pelo escritório de advocacia de Munique Westpfahl Spilker Wastl, identificou pelo menos 497 vítimas de abuso, e 235 supostos perpetradores, entre os quais 173 padres.

Bento XVI entregou uma declaração de 82 páginas aos pesquisadores que compilaram o relatório.

Falando na conferência de imprensa, o advogado Martin Pusch, um dos responsáveis pelo relatório, disse que o então arcebispo de Munique Joseph Ratzinger, depois papa Bento XVI, “pode ser acusado de má conduta” em quatro casos.

Segundo Puch, em dois dos casos, os clérigos cometeram abusos enquanto Ratzinger estava no cargo e, embora tivessem sido punidos pela Justiça comum, continuaram a desempenhar deveres pastorais e nenhuma ação de direito canônico foi tomada contra eles.

Em um terceiro caso, um clérigo condenado por um tribunal fora da Alemanha trabalhava na arquidiocese de Munique. Pusch insinuou que Ratzinger conhecia a história do padre.

O quarto caso está relacionado a um padre chamado padre Peter Hullermann, acusado de abusar de pelo menos 23 meninos de oito a 16 anos entre 1973 e 1996.

O caso foi revelado pela imprensa em 2010, quando Bento XVI era papa.

A declaração assinada pelo papa emérito dizia que ele não esteve presente em uma reunião em 1980, na qual foi discutida a transferência do padre Hullermann da diocese de Essen para a arquidiocese de Munique.

No dia 24 de janeiro, Bento XVI reconheceu que havia participado da reunião e que a primeira declaração foi resultado de um erro de edição.

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A correção provocou polêmica na Alemanha, com críticos de Bento XVI acusando-o de tentar esconder sua presença na reunião e apoiadores alegando que sua presença estava registrada e já era de conhecimento.

Líderes da Igreja na Alemanha, como o bispo de Limbourg, Georg Bätzing, presidente da conferência dos bispos alemães, exigiram que o papa emérito respondesse às críticas do estudo de Munique.

Apoio do Papa Francisco

Em sua carta, Bento XVI disse que foi profundamente afetado pela reação ao “descuido”, que ele disse ter sido “explorado para lançar dúvidas sobre minha veracidade, até mesmo para me retratar como um mentiroso”.

Ele disse ter recebido muitas mensagens de apoio e que ficou “particularmente grato pela confiança, apoio e oração que o papa Francisco me expressou pessoalmente”.

Ele reiterou sua confiança nos conselheiros que o ajudaram a preparar a declaração de 82 páginas.

“Além de responder às perguntas do escritório de advocacia, isso também exigiu a leitura e análise de quase 8 mil páginas de documentos em formato digital”, disse.

 

“Esses assistentes me ajudaram a estudar e analisar as quase 2 mil páginas de opiniões de especialistas. Os resultados serão publicados posteriormente como um apêndice à minha carta.”

Segundo o papa emérito, o erro relativo à sua presença na reunião não “prejudicou o cuidado e a diligência que, para aqueles amigos, eram e continuam a ser um imperativo evidente e absoluto”.

Resposta às críticas do relatório de Munique

Em sua análise de 1,3 mil palavras do relatório sobre abuso de Munique, os conselheiros de Bento XVI defenderam seus atos nos quatro casos destacados pelo estudo.

Eles reiteraram que, na época da reunião de 1980, o futuro papa não estava ciente de que Hullermann, identificado apenas como padre X, fosse um abusador nem que seria admitido em “atividade pastoral” na arquidiocese de Munique.

“Tratava-se exclusivamente da acomodação do jovem padre X em Munique, porque ele tinha que fazer terapia lá. Esse pedido foi atendido. Durante a reunião não foi mencionado o motivo da terapia. Portanto, não foi decidido na reunião envolver o agressor no trabalho pastoral”, escreveram eles.

Os assessores sublinharam que Bento XVI “não mentiu nem conscientemente fez uma declaração falsa” sobre o encontro e disseram que o erro foi resultado de um “erro de transcrição”.

“Não se pode imputar este erro de transcrição a Bento XVI como uma declaração falsa consciente ou ‘mentira'”, insistiram os assessores.

Eles também negaram que o futuro papa soubesse na época que os padres dos outros três casos eram abusadores.

“Em nenhum dos casos analisados ​​pelo laudo pericial Joseph Ratzinger tinha conhecimento de abuso sexual cometido ou suspeita de abuso sexual cometido por padres”, escreveram.

Eles também responderam às críticas generalizadas de que o papa emérito minimizou o “comportamento exibicionista” de um padre em um caso.

“No memorando, de fato, Bento XVI diz com a maior clareza que os abusos, incluindo o exibicionismo, são ‘terríveis’, ‘pecaminosos’, ‘moralmente repreensíveis’ e ‘irreparáveis’”, observaram.

“Na avaliação canônica do evento, inserida no memorando por nós colaboradores e expressa conforme nosso julgamento, houve apenas o desejo de lembrar que, segundo a lei canônica então vigente, o exibicionismo não era crime em sentido restrito, porque a norma penal pertinente não incluiu no caso em questão comportamento desse tipo.”

A história de Bento XVI como papa

Joseph Ratzinger deixou a arquidiocese de Munique em 1982, para ser prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé da Santa Sé. Em 2005 foi eleito papa.

 

Durante seu pontificado de quase oito anos, ele demitiu centenas de agressores sexuais do estado clerical, conheceu sobreviventes de abuso durante suas viagens e abordou a crise de abuso na Irlanda em uma carta pastoral de 2010.

Bento XVI renunciou em 2013 e desde então vive em relativa reclusão no Vaticano.

A Santa Sé publicou um editorial sobre o relatório de abuso de Munique em 26 de janeiro, destacando o papel de Bento XVI no combate ao abuso clerical.

O editorial, assinado por Andrea Tornielli, diretor editorial do Dicastério para a Comunicação do Vaticano, condenou “a busca de bodes expiatórios fáceis e julgamentos sumários”.

 “Foi Bento XVI, mesmo contra a opinião de muitos autodenominados 'ratzingerianos', quem manteve, em meio à tempestade de escândalos na Irlanda e na Alemanha, o rosto de uma Igreja penitente, que se humilha ao pedir para o perdão, que sente desânimo, remorso, dor, compaixão e proximidade”, escreveu Tornielli.

Em um segundo editorial publicado na terça-feira, Tornielli descreveu a carta de Bento XVI como “breve e sincera”.

“As palavras de Bento XVI na carta são as de um velho indefeso, que agora sente a proximidade do encontro com Deus cujo nome é misericórdia. São as palavras de um ‘humilde trabalhador na vinha do Senhor’, que pede perdão com sinceridade, sem fugir da concretude dos problemas, e convida toda a Igreja a sentir como sua a ferida sangrenta do abuso”, escreveu ele citando a primeira frase dita por Bento XVI sobre si mesmo ao ser eleito papa.

A “hora do julgamento”

Concluindo sua carta, Bento, que completa 95 anos em 16 de abril, antecipa seu julgamento diante de Deus.

“Em breve, estarei diante do juiz final da minha vida. Ainda que, olhando para trás, para minha longa vida, possa ter grandes motivos para temor e tremor, não obstante, tenho bom ânimo, pois confio firmemente que o Senhor não é apenas o justo juiz, mas também o amigo e irmão que já sofreu Ele mesmo por minhas deficiências e, portanto, também é meu advogado, meu 'Paráclito'. À luz da hora do julgamento, a graça de ser cristão se torna ainda mais clara para mim. Dá-me conhecimento e, na verdade, amizade com o juiz da minha vida, e assim me permite passar com confiança pela porta escura da morte,” escreveu Bento XVI.

“A este respeito, lembro-me constantemente do que João nos diz no início do Apocalipse: ele vê o Filho do Homem em toda a sua grandeza e cai a seus pés como morto. No entanto, Ele, colocando a mão direita sobre ele, diz-lhe: ‘Não tenhas medo! Sou eu…”

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