Em março de 2020, o Arquivo Apostólico Vaticano abriu aos pesquisadores os documentos do pontificado de Pio XII (1939-1958). O brasileiro Jair Santos, doutorando em História na Scuola Normale Superiore di Pisa, na Itália, teve acesso a esta documentação para sua tese de doutorado sobre as relações entre Brasil e Santa Sé entre 1889 e 1945. Santos publicou na última edição da Revista de História da USP artigo sobre uma parte desta pesquisa que fala sobre a diplomacia pontifícia na concessão de vistos para judeus migrarem para o Brasil de 1939 a 1941.

“A questão do Brasil nessa história toda já era conhecida. Eu não sou o primeiro que trata desse tema. Mas, a abertura dos arquivos de Pio XII abriu um novo leque de possibilidades e de novas perguntas. A intenção era, primeiro, chamar atenção, porque há pouquíssimos pesquisadores e historiadores brasileiros que trabalham com a documentação do Vaticano e, no entanto, é um acervo riquíssimo para a história de nosso país”, disse Santos.

Em entrevista à ACI Digital, o pesquisador falou sobre a importância das medidas da Santa Sé que põe à disposição a documentação do pontificado de Pio XII e como esses arquivos podem colaborar para os estudos sobre a história do Brasil.

ACI Digital - Após ter aberto os arquivos de Pio XII em março de 2020, a Santa Sé informou em junho deste ano a publicação on-line da série “Judeus” do Arquivo Histórico da Secretaria de Estado, com documentos relacionados ao pontificado de Pio XII sobre a ajuda oferecida aos judeus diante da perseguição nazista e fascista. Para você, o que esta medida representa do ponto de vista histórico?

Jair Santos - Primeiramente, é bom ressaltar que esses arquivos foram abertos não porque a Santa Sé não tinha mais interesse em manter essa documentação escondida. É natural não só nos arquivos vaticanos, mas nos do Brasil, que exista um intervalo relativamente longo de tempo entre o momento em que uma documentação é produzida e o momento em que é disponibilizada nos arquivos para os pesquisadores. No geral, passam-se cerca de 60 anos, no Arquivo Apostólico Vaticano. Hoje, os pesquisadores têm acesso à documentação até 1958. Se quiser fazer pesquisa nos arquivos da Santa Sé dos anos 1960, 1970, esses arquivos ainda não estão disponíveis. Isso faz parte do funcionamento de qualquer arquivo.

Por outro lado, esse fundo arquivístico acabou virando notícia porque é um tema polêmico e acabou chamando muito a atenção não só da comunidade científica, mas também da opinião pública, dos jornalistas, porque existe muita expectativa – talvez um pouco excessiva –, muita polêmica em relação a esta documentação porque trata de um período fundamental. O pontificado de Pio XII foi um período muito longo, de 1939 a 1958, então muita coisa importante aconteceu nesse período não só na história da Igreja, da Itália, mas do mundo.

A decisão recente da Santa Sé de publicar uma parte dos arquivos de maneira on-line é uma decisão nova, não existe nenhum outro fundo arquivístico disponibilizado on-line pelo Arquivo Vaticano. Essa documentação é uma seção muito específica de documentos da Secretaria de Estado. Dentro desse fundo arquivístico estão documentos de judeus, a maior parte deles convertidos ao catolicismo, que escreviam para a Santa Sé pedindo alguma forma de assistência e, a maior parte das vezes, pedindo para emigrar. Então, por se tratar de uma documentação muito relevante e uma documentação que gera muita polêmica, a Secretaria de Estado do Vaticano decidiu disponibilizar – por enquanto não toda a documentação, iniciaram com 70% – de modo a facilitar o acesso a esses documentos. Até então, o único modo de consultar a documentação do Vaticano era vindo a Roma e pedindo autorização. É uma decisão importante e que facilita a atuação dos pesquisadores e ajuda a aprofundar os estudos.

ACI Digital - E a figura de Pio XII especificamente, que iniciou seu pontificado no ano em começou a Segunda Guerra Mundial?

Santos - A figura de Pio XII hoje é interpretada segundo duas visões: por um lado uma visão mais apologista que tenta apresentá-lo como um grande defensor não só dos católicos, das populações que sofreram com as consequências da guerra, mas também dos judeus, e tentam apontar essa assistência do Vaticano como uma prova indiscutível de que Pio XII era um defensor dos judeus; por outro lado, há uma visão mais critica que sugere certa condescendência de Pio XII com os regimes totalitários, em particular o nazismo e fascismo. É claro que as duas posições são muito extremas e são exageradas.

ACI Digital - Mas por que a opinião se divide nesses extremos?

Santos - Por vários elementos que, digamos, agora podem ser melhor aprofundados com essa documentação. Por um lado, no magistério público de Pio XII nunca se faz referência à palavra antissemitismo. Aparece em referências muito genéricas e muito vagas a respeito de discriminações de raça. Mas a palavra antissemitismo não aparece nem durante a guerra nem depois. Isso acabou alimentando essa visão mais hostil em relação à figura de Pio XII. Por outro lado, existe também a questão dos refugiados, como mostro no meu artigo. A mobilização da Santa Sé foi muito intensa, mas privilegiava a assistência àqueles judeus que eram convertidos ao catolicismo. Então, poderíamos levantar a questão, afinal eram católicos. Mas, as coisas se complicam, porque existe todo um debate sobre qual era o critério para dizer que era judeu, se critério genético, de religião. Essas dificuldades, detalhes, minúcias acabaram alimentando esses debates e polêmicas.

ACI Digital - Qual é o principal interesse desses arquivos sobre a Santa Sé na época da guerra?

Santos - É justamente tirar o foco apenas da figura do papa e mostrar que existe uma gama muito grande de agentes, de pessoas que estão trabalhando, decidindo, cooperando. E meu artigo dá um exemplo muito significativo disso, pois são vários núncios apostólicos, de diferentes locais da Europa, que se colocam em contato para tentar responder a uma situação concreta. Por outro lado, você tem o governo brasileiro, extremamente complexo, com vários agentes, diplomatas, instâncias. Tudo isso buscando dar resposta a um problema e uma resposta que nem sempre é muito bem coordenada porque, quando estamos tratando de um assunto tão complicado, que envolve tantos países e pessoas, é natural que as coisas fiquem muito ramificadas. Então, do ponto de vista histórico não é prudente concentrar toda atenção na figura do presidente da República, Getúlio Vargas, ou do ministro das Relações Exteriores, ou na figura do papa, ou de seu secretário de Estado. É preciso amplificar a visão e tentar entender o que está acontecendo nos bastidores, nas igrejas locais, nos bispados, nas comunidades, nas associações. Tudo é muito mais complicado do que parece e do que essas visões simplistas que tentam apontar o papa como o defensor dos judeus ou como o “papa de Hitler”, como já foi dito em alguns livros.

ACI Digital - Como foi a sua experiência de acesso aos arquivos do pontificado de Pio XII e o processo de pesquisa com os dados aos quais teve acesso?

Santos - Na verdade, os arquivos vaticanos são abertos a todos os pesquisadores. O arquivo se chamava Arquivo Secreto do Vaticano e agora se chama Arquivo Apostólico, uma mudança recente feito pelo papa Francisco para afastar uma ideia errônea de que o adjetivo ‘secreto’ significava o desejo de esconder alguma coisa, quando na verdade significava apenas ‘privado’. Esse arquivo reúne a documentação de todos os órgãos da cúria romana. Eu trabalho especificamente com a documentação da nunciatura apostólica no Brasil, porque não me concentro só no pontificado de Pio XII. Eu investigo também a correspondência diplomática de pontificados anteriores. É um acervo riquíssimo e, no caso do Brasil, interessa muito, porque o Brasil tem um representante da Santa Sé desde o século XIX. Então, a documentação da nunciatura apostólica é muito rica e ajuda muito na compreensão na história da Igreja no Brasil.

Eu tenho feito pesquisa neste arquivo desde 2019. Dentro da Cidade do Vaticano, existem dois grandes arquivos: o Arquivo Apostólico Vaticano e o Arquivo da Secretaria de Estado. O arquivo da Secretaria de Estado se concentra nas questões políticas. Tenho desenvolvido pesquisa nesses dois arquivos.

ACI Digital - Em seu artigo ‘A diplomacia pontifícia e os refugiados judeus no Brasil (1939-1941): Uma investigação preliminar nos arquivos de Pio XII’, você afirma que já se sabia anteriormente que “uma das principais metas de emigração” dos “católicos não arianos” era o Brasil, por causa da “negociação entre o papa e o governo brasileiro para a concessão de vistos”. O que os arquivos de Pio XII trazem de novidade sobre esta negociação e a vinda de judeus para o Brasil?

Santos - A novidade é conhecer a trajetória dessas pessoas, porque nós já sabíamos que havia uma mobilização da Secretaria de Estado da Santa Sé no sentido de dialogar com o governo brasileiro para tentar obter alguns vistos. O que não se sabia eram as trajetórias, quem eram essas pessoas, porque queriam ir para o Brasil, como conseguiram, qual era o percurso. No geral, esses refugiados vinham da Alemanha, após a promulgação das leis raciais. A maior parte era alemães ou italianos, mas não só, também havia pessoas dos países da Europa do Leste. Essas pessoas pediam alguma forma de assistência e, muitas vezes, eram encaminhadas por associações como a Cáritas, que agia sobretudo na Suíça, ou associações diocesanas.

Eu cito dois exemplos no artigo, mas são apenas dois de muitos outros casos. Por enquanto, não sabemos quantos. Sabemos, por um documento do Itamaraty, que foram concedidos 959 vistos, mas não sabemos quantas dessas 959 pessoas efetivamente viajaram e conseguiram chegar ao Brasil.

ACI Digital – Quais são esses casos que seu artigo cita?

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Santos - Um dos casos que cito é da jovem alemã Franziska Goldmann, que saiu da Alemanha e foi para a Áustria. Quando a Áustria foi invadida pelos nazistas, ela fugiu de novo e foi para a Suíça, onde entrou em contato com uma dessas associações que cuidavam dos refugiados e soube da medida do governo brasileiro oferecendo 3 mil vistos. Ela escreveu ao Vaticano, por intermédio do núncio apostólico na Suíça, e no final das contas conseguiu o visto. Então, há toda essa articulação desde que ela saiu da Alemanha, foi para Áustria, depois Suíça, onde entrou em contato com as associações, que, por sua vez, entraram em contato com as autoridades consulares do Brasil, as quais entraram em contato com a embaixada do Brasil na Santa Sé... Existe uma rede muito complexa que agora podemos conhecer melhor por causa dessa documentação.

Nós sabíamos que os vistos tinham sido concedidos, mas não sabíamos a história dessas pessoas e como isso funcionou na prática. Então, essa documentação agora permite contar a história dessas pessoas. A Franziska morreu no Brasil na década de 1960. A história para ela acabou bem, mas não é o caso de todos. Agora será possível investigar e conhecer a história desses católicos não arianos.

ACI Digital - Você também aborda em seu artigo a política migratória mais restritiva do governo Vargas e um “antissemitismo que circulava entre alguns membros da administração, sobretudo no Ministério das Relações Exteriores”. Como os arquivos de Pio XII contribuíram para sua pesquisa em relação essas questões da política brasileira?

Santos - A questão do antissemitismo nas políticas migratórias brasileira é antiga dentro do debate historiográfico, é discutida desde a década de 1980, graças à professora [Maria Luiza] Tucci Carneiro, que fez uma tese sobre a circulação do antissemitismo no Itamaraty na Era Vargas. A questão do antissemitismo é muito complexa porque, de fato, existiam membros do corpo diplomático brasileiro que eram antissemitas e que se opunham à migração de judeus para o Brasil. Mas, naturalmente, a questão no que diz respeito aos ‘católicos não arianos’ fica um pouco mais complicada e paradoxal porque, por um lado, eram judeus convertidos ao catolicismo, então, eram católicos. Mas, por outro lado, existiam discussões dentro do ministério sobre a validade dessa conversão. Então, existia uma discussão sobre a data do certificado de batismo, se tinha que ser de antes de 1933, ou de 1935, porque 1935 é quando começam as Leis de Nuremberg na Alemanha, quando o antissemitismo se torna uma política de Estado e as perseguições começam a tomar proporções muito maiores. Toda essa discussão, naturalmente, acaba sendo afetada pelo antissemitismo de alguns membros. Por exemplo, o caso do antissemitismo do embaixador do Brasil em Berlim [Cyro de Freitas Valle, embaixador do Brasil em Berlim de 1939 a 1942]. Nenhum dos 959 vistos que foram efetivamente outorgados partiu da embaixada em Berlim. Isso, de certo modo, corrobora aquilo que já sabíamos, que havia certa resistência por parte de alguns diplomatas, mas obviamente é preciso aprofundar mais a discussão.

ACI Digital - Após ter tido acesso aos arquivos do pontificado de Pio XI e de toda pesquisa que já realizou até hoje com esta documentação, para você, como esses documentos podem contribuir para o estudo da História do Brasil deste período?

Santos - Contribui, por exemplo, no estudo da compreensão das relações ente Brasil e Vaticano, esse é um primeiro elemento que tentei realçar. Por que o Vaticano entra em contato com o Brasil para conceder esses vistos e não com a Argentina, com a Colômbia? Porque as relações entre Brasil e Vaticano eram antigas e muito próximas. Em segundo lugar, o Vaticano conhecia o histórico do Brasil com relação à imigração, sabia que o Brasil era um país de imigração e continuava sendo um país de imigração e continuava precisando de migrantes. Em terceiro lugar, Pio XII conhecia Getúlio Vargas. Pio XII esteve no Brasil em 1934 [antes, portanto, do início de seu pontificado em 1939], retornando do Congresso Eucarístico em Buenos Aires. Ele passou dois dias no Rio de Janeiro, teve contato com as autoridades brasileiras. Essa década de 1930 é uma década em que as relações entre a Igreja e o Estado se estreitam muito, existe certa aliança entre a hierarquia eclesiástica brasileira e o governo de Getúlio Vargas no início dos anos 1930. Todos esses fatores estão conectados. Por um lado existe um renascimento do catolicismo brasileiro, por outro, há a ligação profunda com a Santa Sé. Tudo isso trabalha junto para, digamos assim, tentar estabelecer uma relação ainda mais produtiva e uma forma de cooperação ainda mais estreita.

O catolicismo brasileiro não se desenvolve de maneira autônoma. A Santa Sé participa ativamente do que acontece na vida da Igreja no Brasil, através dos núncios, através das visitas, através das intervenções de diferentes órgãos da cúria.

Então, por um lado, [esses arquivos] ajudam a compreender melhor como as relações entre Brasil e Vaticano se desenrolavam na prática, como se estreitavam durante este período. Por outro lado, abrem novas perspectivas do ponto de vista da Igreja para entender como o Vaticano olhava para essa parte do mundo, como o Vaticano olhava para a América Latina e via o potencial da América Latina não só no que diz respeito ao desenvolvimento do catolicismo, mas do potencial humanitário. Depois de 1945, quando terminou a guerra, a Europa estava em uma situação terrível, vários países em extrema pobreza, com grande destruição e populações que precisavam partir para outros lugares. Muitas delas vão para a América Latina, para o Brasil, Argentina, Chile, enfim. Depois que acaba a guerra, a Santa Sé olha para a América Latina como uma via de fuga, uma possibilidade de uma nova vida para essa população europeia que sofreu tanto com a guerra.

Então, é uma documentação relevante também para isso, não só para entender o que aconteceu antes ou durante a guerra, mas para entender o que aconteceu depois, porque o pontificado de Pio XII não acaba em 1945, acaba em 1958 e muita coisa aconteceu. Essa documentação do pontificado acaba abrindo novas perspectivas para examinar também isso, como a Santa Sé olhava para esta parte do mundo, quais eram os interesses geopolíticos que ela começa a deslumbrar em relação a esses países. Todas essas questões podem ser esclarecidas, pelo menos em parte, por esta documentação.

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