Em uma decisão sem precedentes na história da Igreja no Brasil, a Congregação para o Clero promulgou a demissão do estado clerical "com suprema e irrevogável decisão e sem possibilidade de recurso" de oito sacerdotes ex-agostinianos que atuavam no país.

A informação foi divulgada inicialmente pela Província Agostiniana do Brasil, em nota publicada no dia 23 de agosto, na qual afirma que “os comportamentos contrários à justiça e coerência com a vida religiosa” dos ex-padres “levaram até essa resolução no processo canônico”.

Segundo a Província, o processo canônico se deu após estes ex-agostinianos terem modificado os estatutos da Sociedade Agostiniana de Educação e Assistência (SAEA), razão social criada para administrar “obras agostinianas assistenciais, religiosas e educacionais”, retirando do documento “todas as referências à Ordem de Santo Agostinho e ao Direito Canônico da Igreja”.

“Essa alteração dos estatutos da SAEA ocorreu em contrariedade ao estabelecido pela Ordem de Santo Agostinho e, posteriormente, ao decidido pelas Congregações da Vida Religiosa e do Clero”, diz a Província em sua nota.

Além disso, afirma que “foram inúmeras as tentativas por parte da Ordem de Santo Agostinho, dos bispos e da Cúria Romana de buscar uma solução satisfatória para todos, todavia, sem êxito, infelizmente”.

Dessa forma, relata que ocorreu uma investigação canônica “pela Santa Sé, através da Ordem de Santo Agostinho, Congregação dos Institutos da Vida Consagrada e Sociedades da Vida Apostólica e a Congregação do Clero”.

Por fim, em 2015, “nove padres foram demitidos da Ordem de Santo Agostinho em Roma, justamente por não agirem de acordo com os valores da vida religiosa”. E, mais recentemente, em agosto de 2019, “com o decreto assinado pelo Cardeal (Beniamino) Stella (prefeito da Congregação para o Clero), promulgou-se a demissão do estado clerical ‘com suprema e irrevogável decisão e sem possibilidade de recurso’”.

Em recente reportagem de ‘Folha de S. Paulo’, um dos ex-padres, o espanhol José Florencio Blanco Melon, contou que os clérigos demitidos receberam “a decisão com surpresa e perplexidade”.

“A Congregação do Clero nos tinha dado um tempo para nos defender, mas a punição veio antes do prazo. Diante da gravidade da punição, pensávamos que seria um processo feito com diálogo, mas isso não aconteceu”, afirmou.

Por sua vez, o Prior da Província do Brasil, Frei Claudio de Camargo, relatou a ACI Digital que “a Congregação do Clero tinha dado um prazo para eles se defenderem, então os advogados deles enviaram uma proposta em italiano dia 19 de julho de 2019 para a Congregação. Essa proposta foi recusada e por mais uma vez eles desejarem manter as mudanças estatutárias na SAEA, então a Congregação do Clero concluiu processo eclesiástico e os padres foram demitidos do estado clerical”.

“O decreto também afirma que os padres demitidos não podem ensinar a Religião Católica nem ocupar posições de direção ou de ensino em instituições católicas. O decreto de demissão foi entregue para os ex-padres no dia 9 de agosto de 2019”, completou.

Blanco Melon afirmou também à ‘Folha’ que “tem o recurso ao Santo Padre. Nós já fizemos esse pedido ao Papa e estamos à espera de uma solução. Nesse sentido estão dirigidos nossos esforços e orações”.

Por outro lado, segundo o Prior da Província do Brasil, os ex-padres “enviaram uma carta pedindo clemência, porém a demissão do estado clerical foi aprovada pelo Papa Francisco. O decreto da demissão do estado clerical foi emitido ‘com suprema e irrevogável decisão e sem possibilidade de recurso’”.

Sociedade Agostiniana de Educação e Assistência

A SAEA, segundo nota publicada pela Província no último dia 15 de setembro, foi criada em 1934, um ano após a chegada ao Brasil de um grupo de missionários agostinianos pertencentes à Província de Castela (Espanha).

Entretanto, “depois de anos de estudo e diálogo, os agostinianos de três grupos distintos no Brasil, pediram ao Capítulo Geral da Ordem em Roma a criação de uma Província Agostiniana única, a fim de reunir os esforços e ampliar ainda mais os serviços assistenciais, religiosos e educacionais, convergentes com o carisma de unidade”. Dentre esses grupos estão o Vicariato de Castela, o Vicariato do Santíssimo Nome de Jesus do Brasil e a Delegação de Malta.

“Em 2013, a Ordem de Santo Agostinho aprovou a proposta e, por fim, os agostinianos brasileiros, incluindo os ex-padres, assinaram os documentos da criação da Província do Brasil”.

Porém, afirma a nota, “após a criação da Província do Brasil, dando continuidade ao que foi acordado previamente, foi eleito um novo Prior Provincial do Brasil e um novo Conselho Provincial. Nesta ocasião os ex-padres se valeram do fato de ocuparem cargos de diretoria e da possibilidade de compor maioria na SAEA e alteraram os estatutos da associação”, retirando do mesmo as referências à Ordem de Santo Agostinho e ao Código de Direito Canônico.

A Sociedade Agostiniana de Educação e Assistência (SAEA) é responsável por três colégios – Agostiniano Mendel e Agostiniano São José, em São Paulo (SP), e Nossa Senhora de Fátima, em Goiânia (GO). Além disso, cuida de ações sociais, creches, chácaras, um clube, um centro de convenções e uma fazenda.

Devido à demissão do estado clerical dos oito ex-agostinianos, foi lançada uma petição online por “fiéis da SAEA”, que pede a revogação da decisão, a qual conta até o momento com 5.464 assinaturas.

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Além disso, no último dia 12 de setembro, foram realizadas vigílias de oração em creches e colégios da SAEA em São Paulo e Goiânia, em defesa dos ex-sacerdotes.

À reportagem de ‘Folha de S. Paulo’, Eduardo Flauzino Mendes, que também foi demitido do estado clerical e é administrador dos três colégios da SAEA, defendeu “a mudança no estatuto justamente para que os colégios continuem com as mesmas diretrizes, sem interferência externa”.

Por sua vez, o Prior da Província do Brasil, Frei Claudio de Camargo, disse à ACI Digital que “a SAEA é uma das sociedades civis da Ordem de Santo Agostinho no Brasil, inclui várias iniciativas religiosas, assistenciais e educacionais que foram criadas e desenvolvidas pela Ordem de Santo Agostinho”.

“Os colégios são apenas uma parte das obras e também foram criados por outros padres agostinianos, o que torna essa afirmação de interferência externa inconsistente, ainda mais lembrando que as pessoas mudam, mas não devem interromper a Missão. O que nós desejamos apenas é que as obras religiosas, assistenciais e educacionais da SAEA tenham continuidade e sejam fiéis à Ordem Agostiniana, essa continuidade deve ser continuidade da Ordem de Santo Agostinho”.

Além disso, sublinhou, “reiteramos que a SAEA é a razão social (CNPJ) criada e administrada pela Ordem de Santo Agostinho”.

O Código de Direito Canônico

O Prior da Província Agostiniana do Brasil, Frei Claudio de Camargo, explicou à ACI Digital que a decisão foi tomada “tendo em conta os atos produzidos pelos ex-padres na representação da Sociedade Agostiniana de Educação e Assistência (SAEA)” e também a “excessiva procrastinação, dado o uso de inúmeras manobras jurídicas, as quais trazem um gravíssimo dano para a Ordem e para a Igreja”.

Além disso, a demissão do estado clerical se deu após “cumpridas ulteriores tentativas pastorais”, de acordo com o cânon 1341 do Código de Direito Canônico, “e postos nestas, todos os procedimentos canônicos para dissuadir o sujeito dos comportamentos errôneos e fazê-lo retroceder de tais pertinazes comportamentos”.

Segundo o cânon 1341 do Código de Direito Canônico, “o Ordinário somente cuide de promover o processo judicial ou administrativo para aplicar ou declarar penas, quando tiver verificado que nem a correção fraterna nem a repreensão nem outros meios da solicitude pastoral são suficientes para reparar o escândalo, restabelecer a justiça, e emendar o réu”.

O religioso citou ainda outros trechos do Código de Direito Canônico, entre os quais o cânon 696, segundo o qual cita algumas causas que podem levar à demissão do religioso. “contanto que sejam graves, externas, imputáveis e juridicamente comprovadas, como são: desprezo habitual das obrigações da vida consagrada; violações reiteradas dos vínculos sagrados; desobediência pertinaz às legítimas prescrições dos Superiores em matéria grave; escândalo grave procedente de modo culpável de agir do religioso; pertinaz defesa ou difusão de doutrinas condenadas pelo magistério da Igreja; adesão pública a ideologias infeccionadas de materialismo e ateísmo; ausência ilegítima referida no cân. 665, § 2, prolongada por seis meses; e outras causas de semelhante gravidade, porventura determinadas pelo próprio direito do instituto”.

Diante da demissão dos oito ex-agostinianos, a Arquidiocese de São Paulo emitiu uma nota datada de 18 de setembro, na qual “lamenta não ter sido possível evitar essa medida extrema, cujo objetivo é salvaguardar os princípios basilares da Vida Religiosa Consagrada, aos quais todos os religiosos e religiosas estão obrigados, e salvaguardar, também, a dignidade do sacerdócio ministerial na Igreja, que deve ser exercido em conformidade com os princípios da fé e da moral, em comunhão com a Autoridade Eclesiástica competente e de acordo com as normas canônicas”.

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