O papa Francisco nomeou dom Víctor Manuel Fernández prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé.

O até agora arcebispo de La Plata é tido como “teólogo do papa Francisco” e o “ghost writer” por trás de vários escritos do papa Francisco.

Tucho, como é chamado o arcebispo, formou-se em teologia com especialização bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e depois obteve o doutorado em teologia na Faculdade de Teologia de Buenos Aires.

Ele foi instrutor de seminário, diretor de ecumenismo e diretor de catecismo. Em 2007 participou da V Conferência do Episcopado Latino-Americano em Aparecida como sacerdote representante da Argentina e depois como membro do grupo de redação do documento final.

Em novembro de 2014, o arcebispo argentino concedeu uma entrevista à revista Vida Nueva, no contexto do Sínodo sobre a Família celebrado em outubro.

Respondendo a uma pergunta sobre sua opinião sobre o que o cardeal americano Raymond Burke disse que o Sínodo teria sido manipulado, dom Fernández exortou a não ser “rígido” e a aceitar “o que Deus quer trazer à Igreja através do papa Francisco”.

“De outra forma, em vez da fé no carisma do sucessor de Pedro e da fidelidade ao Espírito que age na Igreja, o que há é a defesa violenta de uma ideologia filosófica. Se o papa tem essa ideologia, eu o adoro, mas se ele coloca outros acentos, ele se converte em um latino-americano ignorante e perigoso que é preciso tentar limitar”, acrescentou.

Nessa entrevista, Fernández expôs também a sua opinião sobre como se dá o desenvolvimento da doutrina católica, cuja ortodoxia em todo o mundo estará sob a sua vigilância a partir de setembro.

“A Igreja sempre pode aprofundar sua doutrina. Se não fosse assim, ainda aprovaria a escravidão ou a pena de morte, recomendaria a monarquia como a forma mais perfeita de governo, ou rejeitaria que um não católico pudesse ser salvo ou seguir sua consciência, etc. Quando se diz que a doutrina é imutável, deve-se dizer também que a compreensão que a Igreja tem dessa doutrina não é igualmente imutável, mas cresce e amadurece”, disse.

O arcebispo também falou sobre a Comunhão para os divorciados em uma nova união, debate que foi aberto algum tempo depois com a exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, publicada em 2016.

“Uma segunda união de muitos anos, que teve filhos e reconhece o mal objetivo do ocorrido, vive na fidelidade e na generosidade cristã essa união que não poderia ser rompida sem gerar novas culpas. Dado que neste caso o casal tem um forte condicionamento que torna muito difícil uma decisão diferente, entende-se que a responsabilidade e a culpa estão mitigadas e isso poderia abrir caminho para um discernimento pastoral que abra o caminho para a Eucaristia em algumas ocasiões”, disse ele naquele momento.

Amoris laetitia

A exortação sobre o amor na família foi publicada em 19 de março de 2016. Em 25 de maio, o vaticanista italiano Sandro Magister trouxe à tona um artigo no qual diz que o texto “tem um autor nas sombras. Chama-se Víctor Manuel Fernández”.

Magister diz que algumas formulações da exortação "têm uma pré-história argentina, copiadas literalmente de alguns artigos de 2005 e 2006 de Víctor Manuel Fernández, já então —e ainda hoje— um dos principais pensadores do papa Francisco e escritor à sombra de seus principais textos”.

“Esses dois artigos também foram a causa de a Congregação para a Educação Católica bloquear a candidatura de Fernández como reitor da Universidade Católica Argentina, para se curvar anos depois, em 2009, ao então arcebispo de Buenos Aires Jorge Mario Bergoglio, que fez o impossível para obter o nihil obstat para promover o seu pupilo”, diz o vaticanista italiano.

Os artigos eram uma reação a um congresso realizado na universidade em 2004 sobre a encíclica Veritatis splendor, na qual o papa são João Paulo II defende a verdade do Evangelho e a existência do mal moral, incluindo ações que são intrinsecamente más e que nunca podem ser boas, em nenhuma circunstância.

Um dos exemplos dados por Magister tem a ver com o número 305 da exortação e a nota 351 a ela anexa, provavelmente a passagem que suscitou mais polêmica desde a sua publicação.

O vaticanista encontrou importantes semelhanças quando se fala da “situação objetiva do pecado” entre Amoris laetitia e um texto escrito dez anos antes pelo novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, intitulado “A dimensão trinitária da moral. II. Aprofundamento do aspecto ético à luz de 'Deus caritas est'”.

Tanto na exortação apostólica como no texto de Fernández se diz que pode haver situações em que a pessoa “não é subjetivamente culpada”.

O número 301 da exortação apostólica diz que “os limites não dependem simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender ‘os valores inerentes à norma’ [339] ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa”.

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O texto de 2006 do bispo Fernández diz que “quando o sujeito histórico não está em condição subjetiva de agir de outra forma ou de entender 'os valores inerentes à norma' (cf. FC 33c), ou quando 'um sincero compromisso com uma regra particular pode não levar imediatamente ao cumprimento bem-sucedido de tal regra'...”.

As feministas e "o sonho da verdadeira igualdade"

Em outubro de 2019, antes do "Encontro Nacional de Mulheres Autoconvocadas" em La Plata e que geralmente termina com feministas atacando as igrejas católicas, dom Fernández pediu aos católicos que evitem "ações que, com a desculpa de proteger as igrejas, podem ser interpretadas como uma 'resistência' cristã”.

No artigo intitulado "Encontro Nacional de Mulheres", dom Fernández argumentou que muitos veem o grande evento feminista, caracterizado por sua violência contra a propriedade pública e privada, "como se uma horda sedenta de vingança e destruição estivesse chegando", mas que na verdade "são mulheres, de várias cores, com diferentes formas de defender seus direitos, e também com diferenças entre elas".

“O sonho da verdadeira igualdade as une, e a raiva é compreendida quando a história é lembrada, séculos de opressão, humilhação, dominação machista, violência”, acrescenta.

“Às vezes a raiva se concentra contra a Igreja, que precisa de uma autocrítica sobre esse assunto”, disse dom Fernández, que no artigo tenta fazer uma síntese histórica das posições em que a Igreja errou e precisa ser corrigida com base em alguns bons exemplos.

“Aborto: quem é mais medieval?”

Um mês depois, o arcebispo questionou o presidente Alberto Fernández por oferecer a apresentação de um projeto para legalizar o aborto na Argentina.

“Se eu pudesse falar com Alberto”, disse, eu lhe perguntaria se vale a pena começar o seu mandato com um tema que tanto divide os argentinos e tem causado tanta tensão”, escreveu Fernández na sua conta do Facebook.

Em novembro de 2020, o arcebispo publicou no Infobae a coluna “Aborto: quem é mais medieval?”, na qual disse que a proteção da vida é uma “defesa até o fundo dos grandes direitos humanos”.

“A mera suspeita de que um embrião é um ser humano já seria suficiente para sua defesa, ainda que esteja em estágio de desenvolvimento. De fato, a Convenção sobre os direitos da criança entende por criança 'todo ser humano desde o momento da concepção'”, lembrou.

A lei do aborto na Argentina foi finalmente aprovada em dezembro de 2020.

No dia 1º de julho, ao saber de sua nomeação, dom Víctor Fernández fez uma publicação em sua conta no Facebook na qual disse que em várias ocasiões se recusou a aceitar o cargo no Vaticano porque, entre outras coisas, "a tarefa inclui a questão dos abusos de menores e não me sinto preparado, nem fui formado para esses assuntos.”

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“No entanto, quando ele estava no hospital, ele me pediu a mesma coisa de novo. Vocês podem imaginar que era impossível dizer a ele que não. Mas ele me explicou que o tema dos abusos está agora em uma seção bastante autônoma, com profissionais que sabem muito sobre o tema e trabalham com muita seriedade", acrescentou.

O arcebispo argentino disse que sua missão será outra coisa com a qual o papa Francisco está muito preocupado neste momento “incentivar a reflexão sobre a fé, o aprofundamento da Teologia, promover um pensamento que saiba dialogar com o que as pessoas vivem, encorajar um pensamento cristão livre, criativo e com profundidade”.

“Finalmente aceitei com alegria, porque o que me pede é um desafio maravilhoso, embora eu tenha muitos contras: há pessoas que preferem um pensamento mais rígido, estruturado, em guerra com o mundo”, continuou.

Depois de dizer que neste pontificado se dá maior importância ao Dicastério para a Evangelização, dom Fernández disse que "em outros tempos o Dicastério para a Doutrina da Fé se chamava Santo Ofício, e se dedicava a perseguir os hereges, que faziam erros doutrinais, e o papa reconhece que usou métodos imorais como a tortura”.

“Ele me diz que está me pedindo algo muito diferente, porque os erros não se corrigem perseguindo ou controlando, mas fazendo crescer a fé e a sabedoria. Essa é a melhor forma de preservar a doutrina”, concluiu.

Dentro do Dicastério da Doutrina da Fé, que dom Fernández presidirá a partir de 15 de setembro deste ano, está a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores, cujo presidente é o arcebispo de Boston, EUA, cardeal Seàn O'Malley. Essa comissão não depende formalmente no Dicastério da Doutrina da Fé.

Dom Fernández também se tornará presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e da Comissão Teológica Internacional, organismo cuja missão é ajudar a Santa Sé na análise dos temas doutrinais de maior importância e atualidade.

O arcebispo assumirá o mesmo cargo no qual Joseph Ratzinger (papa Bento XVI) serviu por 25 anos durante o pontificado de são João Paulo II, e que também foi ocupado pelos cardeais William Joseph Levada (EUA), Gerhardt Müller (Alemanha) e Luis Ladaria (Espanha).

Uma decisão “desconcertante e preocupante”

O grupo americano BishopAccountability.org, que mantém um banco de dados online de abusos cometidos por membros da Igreja Católica, publicou um comunicado no qual denuncia que em 2019 o bispo Víctor Fernández se recusou a acreditar nas supostas vítimas do padre Eduardo Lorenzo, da arquidiocese de La Plata.

O Papa Francisco "tomou uma decisão desconcertante e preocupante", disse o grupo em um comunicado, referindo-se ao caso. “Na sua resposta às acusações, apoiou veementemente o padre acusado e se recusou a acreditar nas vítimas”, acrescentou a instituição, segundo a Associated Press (AP).

Para o grupo americano, Fernández “deveria ter sido investigado, não promovido a um dos cargos mais altos da Igreja global”.

A AP diz que o arcebispo argentino permitiu que o padre continuasse trabalhando, embora ele tenha sido demitido por "motivos de saúde".

O padre cometeu suicídio em 16 de dezembro de 2019, depois que um juiz emitiu um mandado de prisão, acusado de abuso sexual.

“Nada em seu desempenho sugere que ele esteja apto para liderar a batalha do papa contra o abuso e o acobertamento”, lamentou BishopAccountability.org em relação a dom Fernández.

Sua nomeação como arcebispo

Pouco depois de iniciar seu pontificado em março de 2013, o papa Francisco nomeou o arcebispo Víctor Fernández em 13 de maio, sem atribuir-lhe uma jurisdição responsável. Até então, ele já atuava desde 2011 como reitor da Pontifícia Universidade Católica Argentina Santa Maria de Buenos Aires (UCA).

Cinco anos depois, em 2 de junho de 2018, foi nomeado arcebispo de La Plata, cargo no qual sucedeu a dom Héctor Aguer, que nove dias antes, em 24 de maio, havia completado 75 anos, idade de aposentadoria dos bispos.

Sobre "A Arte de Beijar"

Em 1995, quando já tinha cerca de dez anos de sacerdote, o padre Víctor Fernández publicou na Argentina com a editora Lumen o livro “Cura-me com tua Boca: a Arte de Beija”, ​​que não consta na lista de obras que a Santa Sé divulgou no sábado ao anunciar sua nomeação como prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé.

“Deixo claro que este livro não é escrito tanto a partir da minha existência, mas da vida das pessoas que se beijam”, disse o padre Fernández na apresentação, e manifesta o seu desejo de que as páginas do texto “ajudem a beijar melhor, que te motivem a liberar o melhor de si em um beijo”.

O livro, que tem várias imagens sugestivas, fala sobre o que dizem sobre o tema as pessoas na rua, poetas e santos.

Na página 21 do livro está a seguinte frase: "Um casal com muito sexo, muita satisfação sexual, mas poucos beijos como pessoas, ou com beijos que não dizem nada, está cavando, a cada união sexual, a sepultura do amor, está criando rotina, cansaço e tédio, até que um dos dois encontre algo mais humano”.

“Os beijos e a mística têm muito a ver. Aliás, se o beijo perde o seu fundo místico, a profundidade que está por trás dos lábios, torna-se apenas um jogo chato ou um costume que deve ser cumprido”, lê-se na página 51.

Sob o subtítulo "O beijo supermístico", o então padre Fernández diz que "o beijo é muito mais que um desejo da carne porque o beijo dos lábios é a expressão sensível de um 'beijo espiritual', de uma união muito íntima dos dois, que por um instante sentem como se todas as barreiras que existem entre eles tivessem caído”.

“Por isso, também podemos beijar a Deus. E quando Ele nos beija, esse beijo atinge o mais profundo do nosso ser. Os grandes místicos chamavam isso de 'casamento espiritual'”, acrescenta.

Em carta publicada em 1º de julho, a comissão executiva do episcopado argentino manifestou a sua alegria pela nomeação e destacou algumas qualidades do novo prefeito.

“Valorizamos sua sabedoria, seus dons, sua experiência pastoral e confiamos que, com a ajuda do Espírito Santo, você poderá, como o próprio Santo Padre expressou: ‘apresentar de forma convincente um Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as chama ao serviço fraterno'”, disseram-lhe.

Os bispos da presidência do CELAM disseram que com a experiência de dom Fernández "a Igreja poderá contar com um guia seguro para abrir caminhos de diálogo e reflexão para que o depósito da fé seja uma fonte da qual Povo de Deus se nutra para continuar anunciando Cristo com alegria e entusiasmo”.

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