Com uma mochila nas costas, Rafael Lúcio da Silva saiu a pé na terça-feira, 3 de janeiro de 2023, de Monte Sião (MG) rumo ao Santuário Nacional de Aparecida, em Aparecida (SP), um percurso de 286 km. Durante nove dias, Silva percorreu a rota do Caminho da Fé. Por cinco dias caminhou debaixo de chuva. “Foi uma experiência de fé totalmente diferente do que já tinha vivido. Sozinho, eu vivi um retiro espiritual de nove dias, com oração, foi um reencontro com Deus”, disse.

Rafael Lúcio, 37 anos, é católico, servidor público, casado e pai de dois filhos. Ele é uma das milhares de pessoas que a cada ano fazem o Caminho da Fé, uma rota de peregrinação de mais de 3,5 mil quilômetros de trilha sinalizada entre Minas Gerais e São Paulo, composta por 72 municípios. Há diversos trajetos com saídas partindo de diferentes cidades.

O Caminho da Fé completa neste ano 20 anos e foi inspirado no Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Por isso, seu destino final é o maior santuário católico do Brasil, o de Aparecida.

“A peregrinação religiosa rumo a um santuário é uma metáfora da nossa peregrinação na terra rumo ao céu”, disse à ACI Digital o coordenador nacional da Pastoral do Turismo, padre Manoel de Oliveira Filho. “Toda vez que alguém se dirige a um santuário conscientemente, sabendo que não está só fazendo um passeio, ali acontece a peregrinação. O essencial é a consciência de que estou vivendo um momento forte de fé”.

Segundo a gestora executiva da Associação dos Amigos do Caminho da Fé, Camila Bassi, “mais de 80 mil peregrinações já acontecerem” no Caminho da Fé, que “temos previamente computadas”. “Sabemos que tem um valor de 40% em cima disse que não temos base de cadastro”, disse.

Bassi contou que entre os milhares de peregrinos que já cruzaram o Caminho, há “muitas” histórias marcantes. “É difícil falar que tem uma, porque cada caminho é especial para quem faz. Mas, temos histórias de superação, de atletas, de portadores de necessidades especiais, de milagres, de casamentos, de graças, histórias de tudo”, disse.

Para Rafael Lúcio, a sua peregrinação foi uma “história de fé”. “Sai de Monte Sião, com 286 km até Aparecida”, contou à ACI Digital. No trajeto, enfrentou dias de fortes chuvas. “Eu me apeguei nas intenções que levei, fui rezando pela cura de amigos que estão sofrendo com câncer, agradecendo pela minha família, por meus filhos. Tudo isso me ajudou a ter uma base para viver esses nove dias sozinho”, disse, destacando que “duas orações foram muito importantes” e o acompanharam por todo o trajeto: “o terço da divina providência e a oração de são Bento”.

Ele também recordou alguns momentos da peregrinação que foram marcantes. O primeiro deles foi em Estiva (MG), onde há uma capelinha de são Bento. “Ali foi um momento forte. Eu recebi uma medalhinha de são Bento que está comigo até hoje”, disse. “Outro trecho marcante foi um muito difícil, para chegar a Paraisópolis (MG), no final encontrei uma capelinha que tinha a imagem de Nossa Senhora das Graças, que é a padroeira da minha cidade”, contou.

Mas, para este peregrino, “um dos momentos mais fortes”, além da chegada ao santuário de Aparecida, “foi no trecho antes da última pousada, em Guaratinguetá (SP)”. “Eu parei em uma lanchonete descendo de Campos do Jordão (SP), por volta do meio-dia. A moça da lanchonete me disse: ‘Você está cansado. Vem aqui que vou te dar um presente’. Ela me deu um binóculo e passou as coordenadas. Quando olhei, vi a basílica de Aparecida. Ela disse que eu estava a 35 quilômetros da basílica. Ali, eu desmontei, não tem como segurar a emoção. Foi o primeiro momento que vi a basílica, andando já há oito dias”, contou.

Ao chegar ao santuário de Aparecida em 11 de janeiro, Rafael foi recebido por sua mulher e pela filha, com direito a um cartaz de boas-vindas: “A sua fé te trouxe até aqui. Te amamos”, dizia a mensagem.

Segundo o coordenador da Pastoral do Turismo, é a “clareza de fé” que ajuda uma pessoa a manter o foco no sentido religioso da peregrinação.

Assim como “a nossa peregrinação rumo ao céu tem dificuldades, a peregrinação rumo ao santuário também tem dificuldades, obstáculos”, disse ele. “É preciso preparar o corpo para suportar as dificuldades do caminho, a inteligência para perceber o que Deus fala nessa peregrinação, e o espírito para, de fato, fazer dessa peregrinação uma metáfora da peregrinação ao céu”.

Essa preparação e a vivência da peregrinação envolvem “a confissão, as paradas, a reflexão, a participação nos sacramentos, até chegar ao santuário, onde também se deve receber a graça do sacramento da confissão, participar da missa, comungar, rezar nas intenções do papa”, disse o padre.

Por sua experiência, Rafael Lúcio concorda. “Para mim, não existe preparo físico que dê conta de uma peregrinação. É preciso um preparo espiritual e mental. Somos motivados pela fé”, disse.

O padre Manoel Filho disse ainda que a peregrinação não termina ao se chegar ao santuário. Segundo ele, “na volta, também é preciso distribuir os frutos recebidos. Se os frutos são recebidos, graças, bênçãos, eles precisam ser partilhados”.

Para Rafael Lúcio, o principal fruto que recebeu desta peregrinação foi a convicção da sua “missão como católico”. “Voltei convencido de que o primeiro lugar em que tenho que colocar minha vocação de cristão é na minha família, melhorando, sendo um bom pai, bom filho, bom marido, bom amigo, é um primeiro passo para eu poder querer fazer algo maior”, disse.

Além do Caminho da Fé, no Brasil há várias outras rotas de peregrinação de Norte a Sul. O padre Manoel Filho contou que ainda não existe um levantamento da Pastoral do Turismo sobre todas essas rotas. Mas, citou que há rotas em diferentes formatos, voltadas para todos os públicos, como “os Passos de Santa Dulce, em Salvador (BA), um caminho urbano, que andando, percorre os lugares que santa Dulce passou na cidade”. “Há muitos outros, como o Caminho Religioso da Estrada Real (CRER), que vai da Serra da Piedade, em Minas Gerais, até Aparecida; temos os Passos de Anchieta, entre Vitória (ES) e Anchieta (ES)”.

Esse último percorre um caminho que, durante muitos anos, são José de Anchieta percorreu.

Nascido em 19 de março de 1534 em San Cristóbal de La Laguna, Tenerife, José de Anchieta ingressou na Companhia de Jesus, os jesuítas, e veio como missionário para o Brasil. Colaborou na fundação de importantes cidades, como São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Guarapari (ES), além de seu trabalho incansável na catequese dos índios. Foi beatificado em 22 de junho de 1980 e canonizado em 3 de abril de 2014.

“No século XVI, são José de Anchieta fazia esse trajeto a cada 15 dias. Ele escolheu para morar nos seus últimos dez anos de vida a cidade de Reritiba (hoje Anchieta). Ele vinha de Anchieta, até Vitória, para dar aula no colégio ao lado da catedral”, contou o coordenador do projeto Passos de Anchieta, Carlos Magno de Queiroz, o Liliko.

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O caminho dos Passos de Anchieta tem 100 km e costuma ser feito em quatro dias. Segundo Liliko, “é o pioneiro do Brasil”, tendo começado em 1998. “Mais de 250 mil pessoas já passaram por aqui”, disse.

Embora seja um “caminho perene”, isto é, “qualquer época do ano a pessoa pode andar”, os Passos de Anchieta têm um diferencial que é um grande evento que acontece todos os anos na solenidade de Corpus Christi. Pessoas de várias partes do Brasil se reúnem para fazer o caminho nesta data. “Eu desconheço um caminho que tenha um evento tipo o nosso, que é o maior encontro de andarilhos e peregrinos do mundo”, disse Liliko.

No percurso, o peregrino tem contato com a natureza e com a cultura capixaba. Mas, para Liliko, “a religiosidade é fundamental”. “Quando começamos o projeto, José de Anchieta ainda não era santo. Hoje ele é um santo que passou por nossas terras”, disse.

Para que os peregrinos possam viver bem a peregrinação do ponto de vista religioso, a Pastoral do Turismo está “organizando e possivelmente este ano deve lançar um manual brasileiro do peregrino”, contou o padre Manoel Filho. O objetivo, disse, é “ajudar as pessoas que fazem uma peregrinação a fazer uma preparação antecipada e também bem viver os momentos: o antes, o durante e o depois”.

Todos os demais suportes, como roteiro, alojamentos, locais para alimentação, informações em geral “cabem ao próprio caminho” fornecer. Por isso, disse Camila Bassi, as associações responsáveis por essas rotas de peregrinação têm uma trabalho muito voltado “para a estrutura necessária para garantir que essa viagem seja feita de forma adequada e o peregrino consiga vivenciar, sentir aquilo que busca. Ele não pode ter preocupação com as coisas práticas, disso nós cuidamos”.

Para atender às necessidades dos peregrinos e trocar experiências, as rotas de peregrinação existentes no Brasil buscam “congregar relacionamento”. “Precisamos nos falar e entender nossas necessidades comuns e o que podemos fazer juntos”, disse Bassi.

Outras rotas de peregrinação conhecidas no Brasil são: o Caminho dos Santos Mártires do Brasil, no Rio Grande do Norte, que passa por locais relacionados aos Protomártires do Brasil, também chamados mártires de Cunhaú e Uruaçu; Caminhos de Nossa Senhora, que liga o Rio de Janeiro ao santuário de Aparecida, e Caminhos para Cristo, que faz o mesmo trajeto mas em sentido contrário, do santuário de Aparecida até o santuário do Cristo Redentor.

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