O papa emérito Bento XVI, que morreu hoje (31), aos 95 anos, visitou o Brasil entre 9 e 14 de maio de 2007. Na ocasião, canonizou o primeiro santo brasileiro, santo Antônio de Sant’Anna Galvão. A visita também foi marcada pela abertura da 5º Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, pelo encontro com cerca de 40 mil jovens, além de outros eventos. Em seus discursos e homilias, Bento XVI defendeu os valores cristãos, a vida e a família.

Logo em sua chegada, Bento XVI deixou claro alguns temas que seriam abordados em sua visita. Ao desembarcar no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos (SP), e ser recepcionado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e autoridades civis e eclesiásticas, o papa afirmou que os brasileiros e os latino-americanos conservam “valores radicalmente cristãos que jamais serão cancelados”.

“E estou certo que em Aparecida, durante a Conferência Geral do Episcopado, será reforçada tal identidade, ao promover o respeito pela vida, desde a sua concepção até o seu natural declínio, como exigência própria da natureza humana”, disse. Segundo ele, a Igreja queria “apenas indicar os valores morais de cada situação e formar os cidadãos para que possam decidir consciente e livremente”.

“Neste sentido, não deixará de insistir no empenho que deverá ser dado para assegurar o fortalecimento da família - como célula mãe da sociedade; da juventude - cuja formação constitui um fator decisivo para o futuro de uma Nação - e, finalmente, mas não por último, defendendo e promovendo os valores subjacentes em todos os segmentos da sociedade”, disse.

Um dos principais eventos dessa viagem de Bento XVI aconteceu no Santuário Nacional de Aparecida, em Aparecida (SP). Foi a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho. Na ocasião, o papa celebrou a missa de abertura da conferência e a sessão inaugural, em 13 de maio. Em seu discurso, lançou um olhar sobre a Igreja na América Latina e alertou que se observa “certa debilitação da vida cristã no conjunto da sociedade e da própria pertença à Igreja Católica devido ao secularismo, hedonismo, indiferentismo e proselitismo de numerosas seitas, de religiões animistas e de novas expressões pseudo-religiosas”.

“Os problemas da América Latina e do Caribe, assim como do mundo de hoje, são múltiplos e complexos, e não podem ser enfrentados com programas generalizados. Todavia, a questão fundamental sobre o modo como a Igreja, iluminada pela fé em Cristo, deva agir diante desses desafios, são concernentes a todos nós”, disse o papa.

Bento XVI afirmou que “tanto o capitalismo como o marxismo prometeram encontrar o caminho para a criação de estruturas justas e afirmaram que estas, uma vez estabelecidas, funcionariam por si mesmas; afirmaram que não só não teriam tido necessidade de uma precedente moralidade individual, mas também que fomentariam a moralidade comum. E esta promessa ideológica demonstrou-se falsa”.

Declarou ainda que, “se a Igreja começar a se transformar diretamente em sujeito político, não faria mais pelos pobres e pela justiça, ao contrário, faria menos porque perderia a sua independência e a sua autoridade moral, identificando-se com uma única via política e com posições parciais opináveis. A Igreja é advogada da justiça e dos pobres, exatamente por não se identificar com os políticos nem com os interesses de partido”.

Bento XVI também abordou outros temas, como as vocações e a família, “patrimônio da humanidade”. Observou que, na atualidade, a família “sofre situações adversas provocadas pelo secularismo e pelo relativismo ético, pelos diversos fluxos migratórios internos e externos, pela pobreza, pela instabilidade social e pelas legislações civis contrárias ao matrimônio que, ao favorecer os anticoncepcionais e o aborto, ameaçam o futuro dos povos”.

Outro momento marcante da visita de Bento XVI ao Brasil foi a missa de canonização do primeiro santo brasileiro, frei Galvão, no Campo de Marte, em São Paulo (SP), em 11 de maio. Em sua homilia, falou sobre a castidade e citou o santo franciscano como um exemplo a ser seguido. “Como soam atuais para nós, que vivemos numa época tão cheia de hedonismo, as palavras que aparecem na Cédula de consagração da sua castidade: ‘tirai-me antes a vida que ofender o vosso bendito Filho, meu Senhor’”.

Segundo Bento XVI, essas “são palavras fortes, de uma alma apaixonada, que deveriam fazer parte da vida normal de cada cristão, seja ele consagrado ou não, e que despertam desejos de fidelidade a Deus dentro ou fora do matrimônio”. “O mundo precisa de vidas limpas, de almas claras, de inteligências simples que rejeitem ser consideradas criaturas objeto de prazer. É preciso dizer não àqueles meios de comunicação social que ridicularizam a santidade do matrimônio e a virgindade antes do casamento”, declarou.

O mesmo tema foi abordado no dia anterior, em um encontro com cera de 40 mil jovens no estádio Pacaembu, em São Paulo. “Deus vos chama a respeitar-vos também no namoro e no noivado, pois a vida conjugal que, por disposição divina, está destinada aos casados é somente fonte de felicidade e de paz na medida em que souberdes fazer da castidade, dentro e fora do matrimônio, um baluarte das vossas esperanças futuras”, disse, ao pedir também “grande respeito” pelo matrimônio e destacar a importância da “fidelidade entre os esposos”.

“Sede homens e mulheres livres e responsáveis; fazei da família um foco irradiador de paz e de alegria; sede promotores da vida, do início ao seu natural declínio; amparai os anciãos, pois eles merecem respeito e admiração pelo bem que vos fizeram”, pediu Bento XVI.

Também no dia 11 de maio, Bento XVI teve um encontro e celebração das vésperas com bispos brasileiros, na catedral de São Paulo. Na ocasião, lembrou que a missão confiada aos bispos “consiste em recordar”, como dizia são Paulo, “que o nosso Salvador ‘quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2, 4-6). Esta é a finalidade, e não outra, a finalidade da Igreja, a salvação das almas, uma a uma”.

Por isso, classificou como “realidades fundamentais” a “obrigação de pregar a verdade da fé, a urgência da vida sacramental, a promessa da contínua assistência de Cristo à sua Igreja”. “Onde Deus e a sua vontade não são conhecidos, onde não existe a fé em Jesus Cristo e nem a sua presença nas celebrações sacramentais, falta o essencial também para a solução dos urgentes problemas sociais e políticos”, disse.

“É verdade que os tempos de hoje são difíceis para a Igreja e muitos dos seus filhos estão atribulados. A vida social está atravessando momentos de confusão desnorteadora. Ataca-se impunemente a santidade do matrimônio e da família, iniciando-se por fazer concessões diante de pressões capazes de incidir negativamente sobre os processos legislativos; justificam-se alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade individual; atenta-se contra a dignidade do ser humano; alastra-se a ferida do divórcio e das uniões livres. Ainda mais: no seio da Igreja, quando o valor do compromisso sacerdotal é questionado como entrega total a Deus através do celibato apostólico e como disponibilidade total para servir às almas, dando-se preferência às questões ideológicas e políticas, inclusive partidárias, a estrutura da consagração total a Deus começa a perder o seu significado mais profundo. Como não sentir tristeza em nossa alma? Mas tende confiança: a Igreja é santa e incorruptível”, afirmou.

Durante a viagem ao Brasil, Bento XVI também visitou a Fazenda da Esperança, em Guaratinguetá (SP), e teve um encontro com sacerdotes, religiosos, religiosas, seminaristas e diáconos no santuário de Aparecida, com os quais rezou o santo rosário.

Acordo Brasil-Santa Sé

Foi também durante o pontificado de Bento XVI que foi assinado o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil.

Conhecido como Acordo Brasil-Santa Sé, o documento tem 20 artigos que versam sobre temas diversos como liberdade religiosa, ensino religioso, sigilo de confissão, casamento religioso com efeito civil, espaços religiosos, bens culturais da Igreja, entre outros.

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O acordo foi assinado em 13 de novembro de 2008, durante uma visita do então presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva ao Vaticano. Na ocasião, Lula teve uma audiência privada com Bento XVI. A Sala de Imprensa da Santa Sé informou, à época, que o papa tinha recebido o presidente do Brasil com um “muito obrigado” pela assinatura do acordo.

Em 2019, o acordo foi aprovado no Congresso Nacional. O texto foi sancionado pelo presidente Lula e entrou em vigor em 11 de fevereiro de 2010.

O cardeal Ratzinger e a Teologia da Libertação

Antes de se tornar o papa Bento XVI e ainda como prefeito da então Congregação para a Doutrina da Fé (atual dicastério para a Doutrina da Fé), o cardeal Joseph Ratzinger esteve no Brasil em 1990. Anteriormente, havia publicado o documento que condenava a teologia marxista da libertação, que tem como um de seus representantes o teólogo brasileiro Leonardo Boff.

O então cardeal Joseph Ratzinger foi nomeado pelo papa são João Paulo II, em 1981, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e presidente da Comissão Teológica Internacional. Foi um grande defensor da doutrina católica e teve o papel de investigar trabalhos de alguns teólogos que propunham ensinamentos errados.

Em 1984, publicou a “Instrução sobre alguns Aspectos da Teologia da Libertação”, em que condenava a abordagem marxista da teologia, então muito em voga em toda a América Latina. No texto, afirmou que a instrução tinha como objetivo “chamar a atenção dos Pastores, dos teólogos e de todos os fiéis para os desvios e perigos de desvios, prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas da teologia da libertação que usam, de maneira insuficientemente crítica, conceitos assumidos de diversas correntes do pensamento marxista”.

“Na verdade, diante da urgência dos problemas, alguns são levados a acentuar unilateralmente a libertação das escravidões de ordem terrena e temporal, dando a impressão de relegar ao segundo plano a libertação do pecado e, portanto, de não atribuir-lhe praticamente a importância primordial que lhe compete. A apresentação dos problemas por eles proposta torna-se, por isso, confusa e ambígua. Outros, com a intenção de chegar a um conhecimento mais exato das causas das escravidões que desejam eliminar, servem-se, sem a suficiente precaução crítica, de instrumentos de pensamento que é difícil, e até mesmo impossível, purificar de uma inspiração ideológica incompatível com a fé cristã e com as exigências éticas que dela derivam”, disse na Instrução.

No Brasil, um dos principais nomes ligados à Teologia da Libertação é o teólogo e ex-padre franciscano Leonardo Boff. Na década de 1980, ele sofreu um processo junto à Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida pelo cardeal Ratzinger. Em 1985, foi condenado a um “silêncio obsequioso”, por causa do livro “Igreja: Carisma e Poder”. Depois, esse silêncio foi suspenso. Diante de uma possível nova punição, em 1992, Boff se desligou da Ordem Franciscana dos Frades Menores e pediu dispensa do sacerdócio.

Após a renúncia de Bento XVI, em 2013, Boff declarou à AFP que Ratzinger “carrega um fardo negativo muito grande na história da teologia cristã” e que entraria “para a história como um papa inimigo da inteligência dos pobres e de seus aliados”.

Em 1990, o cardeal Joseph Ratzinger esteve no Rio de Janeiro (RJ) a convite do então arcebispo, cardeal Eugênio Sales, para uma conferência com cerca de cem bispos brasileiros. Foi o primeiro curso para bispos realizado pela arquidiocese do Rio. O curso acontece até hoje anualmente.

Na época, em entrevista à Folha de S. Paulo, o cardeal Ratzinger disse que era real a possibilidade de uma ruptura na Igreja causada pelo conflito com progressistas, como os adeptos da Teologia da Libertação. “A força do pensamento teológico não brota do número de adesões e sim da veracidade de seus argumentos. Introduzir na teologia o sistema partidário não ajuda o trabalho teológico”, disse.

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