O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) aceitou julgar o bispo de Frederico Westphalen (RS), dom Antônio Carlos Rossi Keller, denunciado por suposto estupro de vulnerável. A denúncia havia sido rejeitada em primeira instância, mas na quinta-feira, 3 de fevereiro, os desembargadores da 7ª Câmara Criminal acolheram por unanimidade o recurso do Ministério Público. O processo tramita em segredo de Justiça.

Dom Antônio Carlos Rossi Keller é acusado de estupro de vulnerável contra Lucas Faligurski. O crime teria acontecido entre 2008 e 2010, época em que o Faligurski era menor de idade e coroinha da catedral. Lucas hoje se identifica como mulher, adotou o nome Tainá e é mãe-de-santo em Frederico Westphalen.

Em 2017, um grupo de sete padres e cinco leigos assinou uma carta com denúncias contra dom Keller, entre as quais diziam haver “pedofilia no interior do clero e do clero com seminaristas”. A carta foi enviada à Nunciatura Apostólica, em Brasília (DF), à arquidiocese de Passo Fundo (RS), da qual a diocese de Frederico Westphalen é sufragânea, e ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.

Segundo dom Keller, por trás das denúncias há “interesses financeiros, políticos, religiosos e ideológicos”.

Em um vídeo, dom Antônio Keller afirmou que a acusação é “grave e falsa”.

“A verdade é a seguinte: na esfera canônica, fui absolvido e alguns dos meus acusadores já foram responsabilizados e, a seu tempo, outros também o serão. Na esfera civil, todas as imputações foram rejeitadas e os acusadores serão devidamente responsabilizados. Na esfera penal, a acusação foi arquivada e corre em segredo de justiça, em grau recursal, apesar de todos esses vazamentos”, diz dom Keller no vídeo. É esse recurso que o TJ decidiu julgar agora.

Segundo o bispo, as acusações surgiram quando cobrou “de alguns padres que cumprissem com as obrigações do seu estado sacerdotal e que, entre outras coisas, não permitissem o predomínio de ideologias político-partidárias dentro da Igreja”.

Fontes locais ouvidas por ACI Digital dizem que o Rio Grande do Sul sempre teve predominância de adeptos extremos da Teologia da Libertação entre o clero. Com isso, teria ocorrido uma espécie de secularização do clero, a partir da ideia de que o padre só é padre quando está no altar celebrando missa. Fora disso, seria um homem comum, com todas as prerrogativas de um homem comum.

Quando dom Keller tomou posse de seu cargo, em 2008, começaram mudanças na diocese, como a orientação para os padres usarem veste clerical, revitalizar as igrejas, não falar de política nas homilias, e não ir a comícios políticos. As mudanças teriam desagradado a uma parte do clero de Frederico Westphalen.

Os acusadores que dom Keller diz já terem sido responsabilizados são o padre Silvério Klassen, que se afastou da diocese de Frederico Westphalen, e Claudir Miguel Zuchi, que foi demitido do estado clerical. “Isso não foi determinado por mim, mas pelo papa Francisco, tamanho era o seu desvio de procedimento e o abandono de suas obrigações eclesiais”, diz dom Keller no vídeo sem citar o nome de Zucchi.

Zuchi e Klassen são clientes do advogado Evans de Mello. Segundo o advogado, ambos “foram severamente punidos por terem tomado uma atitude dentro da legalidade e uma atitude cristã, no caso, informar as autoridades eclesiásticas sobre o que estava acontecendo”.

ACI Digital teve acesso à advertência canônica enviada ao padre Klassen, assinada pelo bispo, por padres do colégio de consultores e pelo próprio Silvério Klassen, datada de 26 de dezembro de 2017. Nela, dom Keller diz ter recebido relatos de “condutas indignas” por parte de padre Klassen entre as quais alcoolismo, agressividade com paroquianos, desrespeito ao bispo, assédio a jovens e mulheres, uso da homilia para atacar pessoas da sociedade local, descaso com a vida da diocese, ausência sem justificativa da paróquia, desobediência e indisciplina religiosa.

Dom Keller, então, determinou que o padre renunciasse “ao ofício de pároco da Paróquia Santa Catarina de Braga”, que morasse “num território fora da diocese” e continuasse “recebendo a côngrua por parte da diocese”.

“O padre Silvério foi praticamente expulso daqui da região. Existe um documento determinando que ele não venha para cá morar aqui e, se ocasionalmente vier, não pode morar nas paróquias onde ele atuou”, disse à ACI Digital o advogado Mello. Segundo ele, o padre “se sentiu extremamente coagido, foi embora, não recebeu também mais os seus direitos”.

Fontes locais disseram à ACI Digital que o padre Klassen foi diagnosticado como bipolar e esquizofrênico e fez tratamento em uma comunidade terapêutica em Curitiba (PR). Nessa comunidade, padre Klassen foi diagnosticado como alcoólatra e posto numa paróquia onde há uma Fazenda da Esperança, instituição católica para tratamento de dependentes de álcool ou drogas. Em 2017, Klassen teria sido afastado da paróquia e foi para o Rio de Janeiro (RJ).

Lá teria chegado a receber o uso de ordens na arquidiocese pelo arcebispo dom Orani cardeal Tempesta. O uso de ordens foi retirado dele em 2020 por problemas semelhantes aos ocorridos em Frederico Westphalen.

O advogado de Klassen afirmou à ACI Digital que seu cliente não pretende mais dar entrevistas sobre o assunto. “A princípio, ele estaria ligado à diocese daqui [Frederico Westphalen], mas não está recebendo e está sofrendo uma espécie de banimento. Ele também ficou extremamente abalado”, disse.

Claudir Miguel Zuchi foi demitido do estado clerical. Em nota da Câmara Eclesiástica de Frederico Westphalen publicada no site da diocese, é comunicada “a resposta da Congregação para o Clero em que o Santo Padre Papa Francisco no dia 11 de setembro de 2021, conforme o rescrito Prot. N. 2021 1948/F (Congregação para o Clero- Cidade do Vaticano) demitiu do estado clerical o sr. Claudir Miguel Zuchi, com suprema e inapelável decisão, contra a qual não é possível qualquer recurso”.

O advogado de Zuchi afirmou que “até o momento” o seu cliente “não foi comunicado dessa decisão”. “Presumo que seja uma perseguição porque ele fez essa denúncia e também por todo um contexto do suposto processo, porque não existe um processo específico. A legislação canônica trata de um procedimento que não foi respeitado em momento algum por parte do bispo e das pessoas que ele indicou para fazer esse procedimento”, disse.

Segundo Evans de Mello, Zuchi “não teve o mínimo de possibilidade de exercer o contraditório perante as acusações” e “nem às acusações nós temos acesso, porque não dizem o que ele fez, quais artigos do Código de Direito Canônico ele violou”.

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Em uma nota de esclarecimento, Zuchi afirmou que sua “suspensão e, possível expulsão, foi justificada pela prática de suposta desobediência ao bispo e a seus sucessores em proveito de eventuais interesses pessoais, justificativa feita por Antônio Carlos, mas que não foi provada”.

O advogado Evans de Mello disse que entraram com um “requerimento judicial para que fosse anulada a demissão, ou seja, que a Igreja Católica revisasse os atos do bispo e anulasse a demissão e, se fosse necessário, instalasse o procedimento canônico dentro das regras, o que não foi feito”.

“O juiz entendeu que o Estado é laico e não pode se manifestar e nós estamos com um recurso no STJ [Superior Tribunal de Justiça] para que a ação seja aceita”, disse Evans de Mello.

“O Zuchi tem 27 anos de atividade religiosa, era um líder na região, muito querido por várias pessoas. Infelizmente, ele sofreu com essa questão e isso abalou profundamente a fé dele”, disse o advogado.

Em Frederico Westphalen, Zuchi “sempre se dedicou muito à docência e o tempo que sobrava ele dedicava à igreja, nunca deu prioridade ao ministério de padre”, disse à ACI Digital uma fonte que pediu para não ser identificada. O então padre era professor na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI).

“Se não me engano em outubro de 2018, ele foi lotado na paróquia de Rodeio Bonito (RS)”, disse Evans de Mello sobre Zuchi. O advogado diz que ele “ia com seu próprio veículo”, recebendo cerca de R$ 2 mil. “Ou seja, recebeu abaixo de uma côngrua, que seriam dois salários mínimos. Não tendo solucionada sua demanda, ele parou de atuar na paróquia. Foi comunicado, tem documentos. Ele foi admoestado pelo bispo e explicou o que estava acontecendo. Foi então, que houve a decisão do bispo de aplicar uma sanção a ele”, disse o advogado.

Segundo fontes da ACI Digital em Frederico Westphalen, o bispo e o conselho de presbíteros decidiram que, se Zuchi voltasse a trabalhar em uma paróquia, receberia tudo aquilo a que tinha direito. Zuchi teria respondido que não tinha tempo e só iria se dedicar à paróquia uma vez por semana. Por isso receberia menos do que uma côngrua.

Zuchi teria ido à paróquia algumas vezes e depois teria avisado que que não iria mais.

Um dos documentos enviado pelo advogado de Zuchi a dom Keller solicitava que fossem juntados todos os documentos do caso e remetidos à Congregação para o Clero, da Santa Sé. Lá teria tido origem a ordem de processar o padre e demiti-lo do estado clerical.

Diante da acusação de que dom Keller estava perseguindo os padres pelas denúncias de estupro, o bispo pediu para a arquidiocese de Passo Fundo, que é isenta, instruir o processo penal. A sentença foi enviada para a Santa Sé e assinada pelo papa Francisco.

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