Segunda Parte: Desígnio de Deus sobre a Realidade da América Latina

162. A Igreja na AL sente-se íntima e realmente solidária com todo o povo do Continente . Esteve, durante quase cinco séculos, a seu lado e em seu coração. Não pode não estar, agora, nesta encruzilhada da história.

163. Depois de termos olhado, como pastores, com os olhos da fé e do coração, a realidade do nosso povo, perguntamo-nos neste momento: Qual será o desígnio de salvação que Deus dispôs para a AL? Quais os caminhos de libertação que ele nos apresenta?
Sua Santidade João Paulo II deu-nos a resposta: a Verdade a respeito de Cristo, da Igreja e do Homem.

Meditamos sobre ela, tendo como pano de fundo as aspirações e sofrimentos de nossos irmãos latino-americanos.

164. Evangelizados pelo Senhor em seu Espírito, somos, enviados para levar a Boa Nova a todos os irmãos especialmente aos mais pobres e esquecidos. Esta empresa evangelizadora nos conduz à plena conversão e comunhão com Cristo, na Igreja; ela impregnará nossa cultura; levar-nos-á à autêntica promoção de nossas comunidades e a uma presença crítica e orientadora diante das ideologias e políticas que condicionem a sorte de nossas nações.

CONTEÚDO

Capítulo I. Conteúdo da evangelização

Capítulo II. O que é evangelizar?

Capítulo I
CONTEÚDO DA EVANGELIZAÇÃO

165. Queremos agora iluminar a nossa angústia pastoral com a luz da verdade que nos torna livres . Não é uma verdade que possuamos como de próprio. Ela vem de Deus. Diante do seca esplendor, fazemos a experiência da nossa pobreza.

166. Propomos agora anunciar as verdades centrais da evangelização: Cristo, nossa esperança, está no meio de nós, como enviado do Pai, animando com seu Espírito a Igreja e oferecendo sua palavra e sua vida ao homem de hoje, para levá-lo à sua libertação integral.

167. A Igreja, mistério de comunhão, povo de Deus a serviço dos homens, continua sendo evangelizada através dos tempos e levando a todos a Boa Nova.

168. Maria é, para a Igreja, motivo de alegria e fonte de inspiração por ser a estrela da Evangelização e a Mãe dos povos da AL.

169. O Homem, por sua dignidade de imagem de Deus, merece nosso compromisso em favor de sua libertação e realização total em Cristo Jesus. Só em Cristo se revela a verdadeira grandeza e só n'Ele é que se conhece, em plenitude, a realidade mais profunda do homem. Por isso, nós, pastores, falamos ao homem e lhe anunciamos a alegria de se ver assumido e enaltecido pelo próprio Filho de Deus, o qual quis participar com este próprio homem das alegrias, dos trabalhos e sofrimentos desta vida e da herança de uma vida eterna.

1. A VERDADE A RESPEITO DE CRISTO, O SALVADOR QUE ANUNCIAMOS

1.1. Introdução

170. A pergunta fundamental do Senhor: "E vós quem dizeis que sou?" (Mt 16, 15), dirige-se permanentemente ao homem latino-americano. Hoje, como ontem, poderiam registrar-se diversas respostas. Nós, que somos membros da Igreja, só temos uma, a de Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16, 16).

171. Profundamente religioso ainda antes de ser evangelizado, o povo latino-americano, na sua grande maioria, crê em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

172. Entre outras, são expressão desta fé os múltiplos atributos de poder, salvação ou consolo que o povo lhe atribui; os títulos de juiz e de rei que lhe dá; as invocações que o vinculam a lugares e regiões; a devoção ao Cristo padecente, ao seu nascimento no presépio e à sua morte na cruz; a devoção ao Senhor ressuscitado; e, mais ainda, a piedade para com o Sagrado Coração e sua presença real na eucaristia, manifestada nas primeiras comunhões, na adoração noturna, na procissão do Corpo de Deus e nos Congressos Eucarísticos.

173. Estamos conscientes de nossa insuficiente proclamação do Evangelho e das carências do nosso povo em sua vida de fé. No entanto, herdeiros de quase 500 anos de história evangelizadora e dos esforços realizados principalmente depois de Medellin, vemos com prazer que o abnegado trabalho do clero e das congregações religiosas, o desenvolvimento das instituições católicas e dos movimentos apostólicos dos leigos, dos grupos de jovens e das comunidades eclesiais de base têm produzido, em numerosos setores do povo de Deus, uma aproximação maior ao Evangelho e a busca da face sempre nova de Cristo, que cumula seus legítimos anseios de libertação integral.

174. Isto não se realiza sem problemas. Colocados entre os esforços para apresentar Cristo como força motora da nossa história e inspiradora da verdadeira mudança social e as tentativas de limitá-lo ao campo da consciência individual, cremos necessário esclarecer o seguinte:

175. É dever nosso anunciar claramente, sem deixar dúvidas ou equívocos, o mistério da Encarnação: tanto a divindade de Jesus Cristo, tal como professa a fé da Igreja, quanto a realidade e a força de sua dimensão humana, e histórica.

176. Devemos apresentar Jesus de Nazaré compartilhando a vida, as esperanças e as angústias do seu povo e mostrar que ele é o Cristo, crido, proclamado e celebrado pela Igreja.

177. A Jesus de Nazaré, consciente de sua missão: anunciador e realizador do Reino e fundador de sua Igreja, a qual tem Pedro como alicerce visível Jesus Cristo vivo, presente e atuante na, Igreja e na história.

178. Não podemos desfigurar, parcializar ou ideologizar a pessoa de Jesus Cristo, nem fazendo d'Ele um político, um líder, um revolucionário ou um simples profeta, nem reduzindo ao campo do meramente privado Aquele que é o Senhor da história.

179. Fazendo eco ao discurso do Santo Padre ao inaugurar nossa Conferência, afirmamos: "Qualquer silêncio, esquecimento, mutilação ou inadequada acentuação da integridade do mistério de Cristo que se aparte da fé da Igreja, não pode ser conteúdo válido da evangelização". Uma coisa são as "releituras do Evangelho, resultado de especulações teóricas" e "as hipóteses, talvez brilhantes porém frágeis e inconsistentes que delas derivam" e outra a "afirmação da fé da Igreja: Jesus Cristo Verbo e Filho de Deus, se faz homem para aproximar-se do homem e presenteá-lo, pela força de seu mistério, com a salvação, grande dom de Deus" (João Paulo II, Discurso Inaugural I, 4. I, 5 - AAS, LXXI, p. 190, 191).

180. Vamos falar de Jesus Cristo. Vamos proclamar, uma vez mais a verdade da fé a respeito de Cristo. Pedimos a todos os fiéis que acolham esta doutrina libertadora. Seu próprio destino temporal e eterno está ligado ao conhecimento na fé e ao seguimento no amor d'Aquele que, pela efusão de seu Espírito, nos torna capazes de imitá-lo a Ele a quem chamamos e que é de fato o Senhor e o Salvador.

181. Solidários com os sofrimentos e as aspirações do nosso povo, sentimos a urgência de lhe dar o que é nosso especificamente: o mistério de Jesus de Nazaré, filho de Deus. Sentimos que esta é a "Força de Deus" (Rm 1, 16), capaz de transformar nossa realidade pessoal e social e de encaminhá-la para a liberdade e a fraternidade, para a manifestação plena do Reino de Deus.

1.2. O homem "criado maravilhosamente"

182. A Sagrada Escritura nos ensina que não somos nós, os homens, os que amamos primeiro. Foi Deus que primeiro nos amou. Ele planejou e criou o mundo em Jesus Cristo, sua própria imagem incriada . Ao fazer o mundo, Deus criou os homens para que participássemos desta comunidade divina de amor: o Pai com seu Filho Unigênito no Espírito Santo.

183. Este desígnio divino, que, para o bem dos homens e para a glória da imensidade de seu amor, o Pai concebeu no Filho antes da criação do mundo (Ef 1,9), Ele no-lo revelou, de acordo com o projeto misterioso que tivera de levar até à plenitude a história dos homens, realizando por meio de Jesus Cristo a unidade do universo, tanto terrestre quanto celeste.

184. O homem, eternamente idealizado e eternamente eleito em Jesus Cristo, devia realizar-se como imagem criada de Deus, refletindo em si mesmo e na convivência com seus irmãos, o mistério divino da comunhão, através de uma atuação que chegasse a transformar o mundo. Destarte devia ter na terra o lar de sua felicidade e não um campo de batalha, em que reinasse a violência, o ódio, a exploração e a escravidão.

1.3. Do Deus verdadeiro aos ídolos falsos: o pecado

185. O homem, porém, já desde o início rejeitou o amor de seu Deus. Não teve interesse pela comunhão com ele. Quis construir, prescindindo de Deus, um reino neste mundo. Em vez de adorar ao Deus verdadeiro adorou os ídolos, as obras de suas mãos, as realidades deste mundo; adorou-se a si próprio. Por isso o homem se dilacerou interiormente. Penetraram no mundo o mal, a morte e a violência, o ódio e o medo. Estava destruída a convivência fraterna.

186. Rompido assim pelo pecado o eixo primordial que submete o homem ao domínio amoroso do Pai, irromperam todas as escravidões. A realidade latino-americana faz-nos experimentar amargamente, até aos extremos limites, esta força do pecado que é a contradição flagrante do plano de Deus.

1.4. A promessa

187. No entanto Deus pai não abandonou o homem ao poder do seu pecado. Uma e outra vez reinicia com ele o diálogo. Convida homens concretos para uma aliança, a fim de construírem o mundo partindo da fé e da comunhão com Ele, aceitando ser os seus colaboradores no seu desígnio de salvação. A história de Abraão e a eleição do povo de Israel, a história de Moisés - libertação do povo da escravidão do Egito e a aliança do Sinai - a história de Davi e de seu reinado, o cativeiro de Babilônia e o retorno à Terra Prometida mostram-nos a mão poderosa de Deus Pai, que anuncia, promete e começa a realizar a libertação do pecado e de suas conseqüências em favor de todos os homens.

1.5. "O Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1, 14 ) : A Encarnação

188. E chegou "a plenitude dos tempos" (Gl 4, 4). Deus Pai enviou ao mundo seu Filho Jesus Cristo, Senhor nosso, Deus verdadeiro "nascido do Pai de todos os séculos" e homem verdadeiro nascido da Virgem Maria por obra do Espírito Santo. Em Cristo e por Cristo une-se aos homens Deus Pai. O Filho de Deus assume o humano e o criado e restabelece a comunhão entre seu Pai e os homens. O homem conquista uma dignidade altíssima e Deus irrompe na história do homem, isto é, no peregrinar humano rumo à liberdade e à fraternidade, que aparecem agora como caminho que leva à plenitude do encontro com Ele.

189. A Igreja da AL quer anunciar, portanto, a verdadeira face de Cristo, porque n'Ele resplandecem a glória e a bondade do Pai que tudo prevê e a força do Espírito Santo que anuncia a libertação verdadeira e integral de todos e de calda um dos homens do nosso povo.

1.6. Ditos e fatos: A vida de Jesus

190. Jesus de Nazaré nasceu e viveu pobre no meio do seu povo de Israel compadeceu-se das multidões e fez o bem a todos . Este povo, acabrunhado pelo pecado a pela dor, esperava a libertação que Ele lhes prometeu (Mt1, 21). No meio dele Jesus anuncia: "Completou-se o tempo; chegou o Reino de Deus. Convertei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1, 15). Ungido pelo Espírito Santo para anunciar o evangelho aos povos, para proclamar a liberdade dos cativos, a recuperação da vista dos cegos e a libertação dos oprimidos . Jesus nos entrega e confia, com as Bem-aventuranças e o Sermão da Montanha, a grande proclamação da Nova Lei do Reino de Deus.

191. As palavras Jesus juntou os fatos: ações prodigiosas e atitudes surpreendentes que mostram que o Reino anunciado já se tornou presente, que Ele é o sinal eficiente da nova presença do Pai na história, o portador do poder transformante de Deus, que sua presença desmascara o maligno, que o amor de Deus redime e mostra o alvorecer de um homem novo num mundo novo.

192. Entretanto as forças do mal rejeitam este serviço de amor: é a incredulidade do povo e de seus parentes, são as autoridades políticas e religiosas de seu tempo e a incompreensão de seus próprios discípulos. Acentuam-se então em Jesus os traços dolorosos do "Servo de Javé", de que se fala no livro do profeta Isaías (Is 53). Com amor e obediência, total ao Pai, expressão humana de seu eterno caráter de Filho, empreende seu caminho de doação abnegada, repelindo a tentação do poder político e todo recurso à violência. Agrupa em torno de si uns poucos homens tirados de diversas categorias sociais e políticas de seu tempo. Embora confusos e às vezes infiéis, move-os o amor e o poder que d'Ele irradiam: são constituídos fundamento de sua Igreja, atraídos pelo Pai e iniciam o caminho do seguimento de Jesus. Este caminho não é auto-afirmação arrogante do saber ou do poder do homem nem o ódio ou a violência, mas a doação desinteressada e sacrificada do amor. Amor que privilegia os pequenos, os fracos, os pobres. Amor que congrega e integra a todos em uma fraternidade que é capaz de abrir a rota de uma nova história.

193. Assim Jesus, de modo original, próprio, incomparável, exige um seguimento radical que abrange o homem todo e todos os homens, que envolve todo o mundo e o cosmo todo. Esta radicalidade faz que a conversão seja um processo nunca encerrado, tanto em nível pessoal quanto em nível social. Porque, se o Reino de Deus passa por realizações históricas, não se esgota nem se identifica com elas.

1.7. O mistério pascal: morte e vida

194. Cumprindo o mandato recebido de seu Pai, Jesus entregou-se livremente à morte na cruz, meta do caminho de sua existência. O portador da liberdade e do gozo do Reino de Deus quis ser a vítima decisiva da injustiça e do mal deste mundo. A dor da criação é assumida pelo Crucificado que oferece sua vida; em sacrifício por todos: Sumo Sacerdote que pode compartilhar as nossas fraquezas, Vítima Pascal que nos redime de nossos pecados, Filho obediente que encarna, perante a justiça salvadora de seu Pai, o clamor de libertação e de redenção de todos os homens.

195. Por isso o Pai ressuscita a seu Filho de entre os mortos: Eleva-o gloriosamente à sua destra. Cumula-o com a força vivificante do seu Espírito. Estabelece-o como Cabeça de seu Corpo que é a Igreja. Constitui-o Senhor do mundo e da história. Sua ressurreição é sinal e penhor da ressurreição a que todos estamos chamados e da transformação final do universo. Por Ele e n'Ele quis o Pai recriar o que havia antes criado.

196. Jesus Cristo, exaltado, não se apartou de nós. Vive no meio de sua Igreja, especialmente na Sagrada Eucaristia e na proclamação de sua palavra. Está presente no meio dos que se reúnem em seu nome e na pessoa dos pastores que envia ; e quis identificar-se, num gesto de ternura particular, com os mais fracos e os mais pobres.

197. No centro da história humana fica assim implantado o Reino de Deus, resplandecente na face de Jesus ressuscitado. A justiça de Deus triunfou da injustiça dos homens. Com Adão principiou a história velha. Com Jesus Cristo, o novo Adão, principia a história nova. Esta recebe o impulso indefectível que levará todos os homens, transformados em filhos de Deus pela eficácia do Espírito, a um domínio do mundo cada dia mais perfeito, a uma comunhão entre os irmãos cada dia melhor realizada, à plenitude da comunhão e participação que constituem a própria vida de Deus. Assim proclamamos a Boa Nova da pessoa de Jesus Cristo aos homens da América Latina, chamados a serem homens novos pela novidade do batismo e da vida segundo o Evangelho, para sustentarem seu esforço e revigorarem sua esperança.

1.8. Jesus envia seu Espírito de filiação

198. Cristo ressuscitado e exaltado à direita do Pai infunde seu Espírito Santo sobre os apóstolos no dia de Pentecostes e depois sobre todos os que foram chamados.

199. A aliança nova que Ele estabeleceu com seu Pai interioriza-se pelo Espírito Santo, que nos dá a lei da graça e da liberdade que Ele próprio escreveu em nossos corações. Por isso a renovação dos homens e conseqüentemente a da sociedade vai depender, em primeiro lugar, da ação do Espírito de Deus. As leis e estruturas deverão ser animadas pelo Espírito que vivifica os homens e faz com que o Evangelho se encarne na história.

200. A América Latina, que desde as origens da evangelização selou esta aliança com o Senhor, tem de renová-la agora e vivê-la pela graça do Espírito em todas as suas exigências de amor, de entrega e de justiça.

201. O Espírito que encheu o mundo assumiu também o que havia de bom nas culturas pré-colombianas. Ele próprio as ajudou a receber o Evangelho. Ele continua despertando, hoje, anseio de salvação libertadora no coração de nossos povos. Urge, por isso, descobrir sua presença autêntica na história deste Continente.

1.9. Espírito de verdade e de vida, de amor e liberdade

202. O Espírito Santo é chamado por Jesus de "Espírito de verdade" e é encarregado de nos conduzir à verdade total . Dentro de nós dá testemunho de que somos filhos de Deus e de que Jesus ressuscitou e é "o mesmo ontem, hoje e através dos séculos" (Hb 13,8) . Por isso é que Ele é o principal evangelizador, que anima a todos os evangelizadores e os assiste para que transmitam a verdade total, sem erros nem limitações.

203. O Espírito Santo é "doador de vida". É água viva que jorra da fonte, Cristo, que ressuscita aos que morreram pelo pecado e que nos faz odiar o pecado, sobretudo em um momento de tanta corrupção e desorientação como o atual.

204. Ele é Espírito de amor e liberdade. Ao enviar-nos o Espírito de seu Filho, o Pai "difunde seu amor em nossos corações" (Rom 5,5), convertendo-nos do pecado e concedendo-nos a liberdade de filhos. Esta liberdade vincula-se necessariamente à filiação e à fraternidade. Quem é livre segundo o Evangelho só se compromete com ações que sejam dignas de Deus seu Pai e dos homens seus irmãos.

1.10. O Espírito reúne na unidade e enriquece na diversidade

205. Jesus Cristo, Salvador dos homens, difunde seu Espírito sobre todos, sem acepção de pessoas. Quem, ao evangelizar, exclui de seu amor ainda que seja uma única, pessoa, não possui o Espírito de Cristo. Por isso a ação apostólica, tem de compreender a todos os homens, destinados a se tornarem filhos de Deus.

206. "O Espírito Santo unifica na comunhão e no ministério e provê sua Igreja com diversos dons hierárquicos e carismáticos através dos tempos, vivificando, como se fosse sua alma, as instituições eclesiásticas" (AG 4). Portanto, longe de serem um obstáculo para a evangelização, a hierarquia e as instituições são instrumentos do Espírito e da graça.

207. Os carismas nunca estiveram ausentes da Igreja. Paulo VI expressou sua complacência para com a renovação espiritual que aparece nos meios e lugares mais diversos e que leva à oração de alegria, à união íntima com Deus, à fidelidade ao Senhor e a uma profunda comunhão de almas. Do mesmo modo procederam várias Conferências Episcopais. Contudo esta renovação exige dos pastores bom senso, orientação e discernimento, para que se evitem exageros e desvios perigosos.

208. A ação do Espírito Santo chega também àqueles que não conhecem a Cristo, pois "o Senhor quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade" (1Tm 2,4).

1.11. Consumação da desígnio de Deus

209. A vida trinitária, de que Jesus Cristo nos faz participantes, somente na glória é que chegará à plenitude. A Igreja, peregrina enquanto instituição humana e terrena, reconhece com humildade seus erros e pecados que obscurecem a face de Deus em seus filhos . Mas está decidida a continuar sua atuação evangelizadora a fim de permanecer fiel à sua missão com a confiança posta na fidelidade de seu fundador e no poder do Espírito.

210. Jesus Cristo procurou sempre a glória do Pai e consumou sua entrega a Ele na cruz. Jesus é "o Primogênito entre muitos irmãos" (Rm 8,29). Ir ao Pai: nisto consistiu o caminhar terreno de Jesus Cristo. A partir de então, ir ao Pai é o caminhar terreno da Igreja, povo de irmãos. Somente no encontro com o Pai acharemos a plenitude que seria utópico procurar no tempo. Enquanto a Igreja espera a união consumada com seu esposo divino, "o Espírito e a Esposa dizem: vem Senhor Jesus" (Ap 22,17-20).

1.12. Comunhão e participação

211. Depois da proclamação de Cristo que nos revela o Pai e nos dá seu Espírito, chegamos a descobrir as raízes últimas de nossa comunhão e participação.

212. Revela-nos Cristo que a vida divina, é comunhão trinitária. Pai, Filho e Espírito vivem, em perfeita intercomunhão de amor, o mistério supremo da unidade. Daqui procede todo amor e toda comunhão, para a grandeza e dignidade da existência humana.

213. Por Cristo, único Mediador, participa a humanidade da vida trinitária. Cristo hoje sobretudo por sua atividade pascal, nos leva a participar do mistério de Deus. Por sua solidariedade conosco, nos torna capazes de vivificar pelo amor nossa atividade e transformar nosso trabalho e nossa história em gesto litúrgico, isto é, de sermos protagonistas com Ele da construção da convivência e das dinâmicas humanas que refletem o mistério de Deus e constituem sua glória que vive.

214. Por Cristo, com Ele e n'Ele, passamos a participar da comunhão de Deus. Não há outro caminho que leve até ao Pai. Vivendo em Cristo, chegamos a ser seu corpo místico, seu povo, povo de irmãos, unidos pelo amor que derrama em nossos corações o Espírito. Esta é a comunhão à qual chama o Pai por Cristo e por seu Espírito. Para ela se orienta toda a história da salvação e nela se consuma o desígnio amoroso do Pai que nos criou.

215. A comunhão que se há de construir entre os homens abrange-lhes todo o ser desde as raízes do amor, e há de se manifestar em toda a sua vida, até na sua dimensão econômica, social e política.. Produzida pelo Pai, o Filho e o Espírito é a comunicação de sua própria comunhão trinitária.

216. Esta é a comunhão que as multidões de nosso Continente procuram com ânsia, quando confiam na providência do Pai ou confessam a Cristo como Deus Salvador, quando buscam a graça do Espírito nos sacramentos da Igreja e até quando traçam sobre si o sinal da cruz "Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo".

217. "Nesta comunhão trinitária do povo e da família de Deus veneramos ao mesmo tempo e invocamos a intercessão da Virgem Maria e a de todos os Santos. Qualquer testemunho autêntico de amor que oferecemos aos bem-aventurados se dirige por sua própria natureza, a Cristo e, por Cristo, a Deus" ( LG 50 ).

218. A evangelização é um chamado à participação na comunhão trinitária. Qualquer outra comunhão, embora não constitua o destino último do homem, é, animada pela graça, primícias dela.

219. A evangelização leva-nos a participar dos gemidos do Espírito, que quer libertar a criação inteira. O Espírito que nos move para esta libertação abre-nos o caminho para a unidade de todos os homens entre si e de todos os homens com Deus, até que "em todos Deus seja tudo" (1Cor 15,28).

2. A VERDADE A RESPEITO DA IGREJA: O POVO DE DEUS SINAL E SERVIÇO DE COMUNHÃO

220. Cristo que sobe até o Pai e se oculta aos olhos da humanidade continua evangelizando visivelmente através da Igreja, sacramento de comunhão dos homens no único Povo de Deus, peregrino na história. A este povo Cristo envia seu Espírito, "que impele cada um a anunciar o Evangelho e que no fundo da consciência faz aceitar e compreender a palavra de salvação" (EN 75).

2.1. A Boa Nova de Jesus e a Igreja

Duas presenças inseparáveis

221. A presença viva de Cristo na história, na cultura e em toda a realidade da AL é manifesta. Tal presença, no sentir de nosso povo, está unida inseparavelmente à presença da Igreja, porque através dela é que o Evangelho de Cristo ressoou em nossas terras. Esta experiência contém, no seu íntimo, uma profunda intuição de fé acerca da natureza profunda, da Igreja.

A Igreja e Jesus Evangelizador

222. A Igreja é inseparável de Cristo, porque ele mesmo a fundou por um ato expresso de sua vontade, sobre os doze, cuja cabeça é Pedro , constituindo-a sacramento universal e necessário de salvação. A Igreja não é um "resultado" posterior nem uma simples conseqüência "desencadeada" pela ação evangelizadora de Jesus. Com certeza nasce desta ação, mas de modo direto, pois é o próprio Senhor que convoca seus discípulos e lhes comunica o poder de seu Espírito, dotando a comunidade nascente de todos os meios e elementos essenciais que o povo católico professa como de instituição divina.

223. Além disto, Jesus aponta sua Igreja como caminho normativo. Não fica, pois, à discrição do homem o aceitá-la ou não, sem conseqüências: "quem vos ouve a mim ouve; quem vos rejeita é a mim que rejeita" (Lc 10,16). Foi o que o Senhor disse aos seus apóstolos. Por isto mesmo aceitar a Cristo exige aceitar a sua Igreja (PO 40c). Esta é parte do Evangelho, do legado de Jesus e objeto de nossa fé, de nosso amor, de nossa lealdade. É isto que manifestamos ao rezar: "Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica".

224. Mas a Igreja é também depositária e transmissora do Evangelho. Prolonga na terra, fiel à lei da encarnação visível, a presença e a ação evangelizadora de Cristo. Como Ele, vive a Igreja para evangelizar. Esta ë sua felicidade e vocação peculiar (EN 14): proclamar aos homens a pessoa e a mensagem de Jesus.

225 Esta Igreja é uma só: a que foi edificada sobre Pedro e que o próprio Senhor denomina "minha Igreja" (Mt 16,18). Só na Igreja católica é que ocorre a plenitude dos meios de salvação (UR 36), legados por Jesus aos homens, mediante os apóstolos. Temos por isso, o dever de proclamar a excelência de nossa vocação à Igreja Católica (LG 14). Estai, vocação é ao mesmo tempo imensa graça e responsabilidade.

A Igreja e o Reino que anuncia Jesus

226 A mensagem de Jesus tem como centro a proclamação do Reino, que n'Ele mesmo se torna presente e chega, até nós. Este Reino, sem ser uma realidade separável da Igreja (LG 8a), transcende seus limites visíveis . Porque se realiza de certo modo onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescer até conseguir a grande comunhão que lhes é oferecida em Cristo. Esta ação Deus acontece também no coração dos homens que vivem fora do âmbito perceptível da Igreja . E isto não significa de modo nenhum que a pertença à Igreja seja diferente.

227 Por isso é que a Igreja recebeu por missão anunciar e instaurar o Reino em todos os povos. Ela é o sinal do Reino. Nela se manifesta de modo visível o que Deus está realizando silenciosamente, no mundo inteiro. É o lugar onde se concentra ao máximo a ação do Pai, que, na força do Espírito de amor, busca solícito os homens para partilhar com eles - em gesto de ternura inexprimível a sua própria vida trinitária. A Igreja é também o instrumento que introduz o Reino entre os homens, para conduzi-tos à sua meta definitiva.

228 "Ela constitui já na terra o germe e o princípio desse Reino" (LG 5). Este germe deve crescer na história sob o influxo do Espírito até o dia em que "em todos Deus seja tudo" (1Cor 15,28). Até então a Igreja permanecerá perfectível sob muitos aspectos, necessitada de permanente auto-evangelização, de maior conversão e purificação.

229 Não obstante o Reino já se encontra nela. A presença da Igreja em nosso Continente é uma Boa Nova, porque ela, se bem que apenas em germe, cumula plenamente as esperanças e os anseios mais profundos dos nossos povos.

230 Nisto é que está o "mistério" da Igreja: uma realidade humana feita de homens pobres e limitados, mas penetrada pela presença insondável e pela força do Deus trino que nela resplandece, apela e salva .

231 Mas a Igreja de hoje ainda não é aquilo que está chamada a ser. É importante ter isto em conta para se evitar uma falsa visão triunfalista. Mas, por outro lado, não se deve enfatizar demais o que lhe falta, pois nela já está presente e atuante, de modo eficaz, neste mundo, a força que operará o Reino definitivo.

2.2. A Igreja vive em mistério de comunhão como Povo de Deus

232 Nosso povo gosta de peregrinações. Nelas o cristão simples celebra a felicidade de se sentir imerso no meio de uma multidão de irmãos, que caminham juntos para Deus que os espera. Este gesto constitui um sinal e um sacramental esplêndido da grande visão da Igreja, oferecida pelo Concílio Vaticano II: a família de Deus concebida como Povo de Deus, peregrina ao longo da história, caminhando para o seu Senhor.

233 O Concílio realizou-se num momento difícil para nossos povos da AL. Foram anos de problemas, de busca ansiosa da própria identidade, anos marcados por um despertar das massas populares, por tentativas de integração da nossa América, anos precedidos pela fundação do CELAM (1955) . Este preparou o ambiente do povo católico, para abrir-se com certa facilidade a uma Igreja que também se apresenta como "povo" e povo universal, povo que penetra os outros povos, para ajuda-los a irmanar-se e a crescer, rumo a uma grande comunhão, como essa que a AL começava a vislumbrar. Medellin divulga esta nova visão tão antiga quanto a própria história bíblica.

234 Hoje, dez anos depois, a Igreja da AL encontra-se em Puebla em condições ainda melhores para reafirmar, cheia de alegria e de felicidade, sua realidade de Povo de Deus. Neste período após Medellin, nossos povos vivem momentos importantes de encontro consigo mesmos, reencontram o valor de sua história, das culturas indígenas e da religiosidade popular. No meio deste processo descobre-se a presença desse outro povo que acompanha com sua história os nossos povos naturais. Começa-se a apreciar a contribuição dele como fator unificante de nossa cultura que ele tão ricamente fecunda com a seiva do Evangelho. Foi uma fecundação recíproca, já que a Igreja consegue encarnar-se em nossos valores originais e desenvolver, assim, novas expressões da riqueza do Espírito.

235 A visão da Igreja, enquanto Povo de Deus, aparece além disto como necessária para completar o processo de transição que foi acentuado em Medellin: transição de um estilo individualista de se viver a fé para a grande consciência comunitária para a qual o Concílio nos abriu a todos.

236 O Povo de Deus é um povo universal. É a família de Deus na terra, povo santo, povo que peregrina na história, povo enviado.

237 A Igreja é um povo universal destinado a ser "luz das nações" (Is 49,6; Lc 2,32) . Não é constituído nem por raça nem por língua nem por qualquer particularidade humana. Nasce de Deus, pela fé em Jesus Cristo. Por isso não entra em litígio com nenhum outro povo e pode encarnar-se em todos eles, a fim de introduzir em suas histórias o Reino de Deus. Assim "fomenta e assume e, ao assumir, purifica, fortalece e eleva todas as capacidades, riquezas e costumes dos povos no que têm de bom" (LG 13 b).

Povo, Família de Deus

238 Nosso povo latino-americano chama espontaneamente o templo material de "casa de Deus" porque intui que ali se reúne a Igreja como "Família de Deus". É a mesma expressão que a Bíblia usa repetidamente e também o Concílio, para exprimir a realidade mais profunda e íntima do Povo de Deus (Sl 60,8; Dt 32,8s; Ef 2,19; Rm 8,29).

239 Esta visão da Igreja toca profundamente o homem da AL que tem em alta estima os valores da família e que procura com ânsia, em face da frieza crescente do mundo moderno, a maneira de salvá-los. Nota-se uma reação em muitos países tanto no despontar da pastoral familiar quanto na multiplicação das CEBs, onde se torna possível - a nível de experiência humana - uma intensa vivência da realidade da Igreja como família de Deus.

240 Muitas paróquias e dioceses acentuam também o aspecto familiar. Sabem que o latino-americano necessita de uma família e que a procura e que desta maneira encontrará na Igreja respostas para as suas necessidades. Não se trata aqui de uma tática psicológica, mas sim da fidelidade à própria identidade. Porque a Igreja não é o lugar em que os homens "se sentem" mas o lugar em que "se fazem" - real, profunda, ontologicamente - "família de Deus". Convertem-se verdadeiramente em filhos do Pai em Jesus Cristo , que os torna participantes de sua vida, pelo poder do Espírito mediante o batismo. Esta graça da filiação divina é o grande tesouro que a Igreja deve oferecer aos homens de nosso Continente.

241 Da filiação em Cristo nasce a fraternidade cristã. O homem moderno não tem conseguido construir uma fraternidade universal na terra, porque procura uma fraternidade descentrada e sem origem comum. Esqueceu que os homens só têm uma maneira de se tornarem irmãos: reconhecer que procedem do mesmo Pai.

242 A Igreja, família de Deus, é o lar onde cada filho e cada irmão é também senhor, destinado a participar do domínio de Cristo sobre a criação e da história. Este domínio deve ser aprendido e conquistado mediante um continuado processo de conservação e assimilação ao Senhor.

243 O fogo que dá vida à família de Deus é o Espírito Santo. É ele que suscita a comunhão de fé, esperança e caridade ou amor, que constitui como que sua alma invisível, sua dimensão mais profunda, a raiz do compartilhar cristão em outros níveis. E, uma vez que a Igreja é formada por homens dotados de corpo e alma, a comunhão interior deve exprimir-se visivelmente. A capacidade de compartilhar será sinal da profundidade da comunhão interior e de sua credibilidade para fora . Daí a gravidade e o escândalo de tudo que é desunião na Igreja. Na Igreja é que se julga a própria missão que Jesus confiou à Igreja: sua capacidade de ser sinal de que Deus quer por meio dela transformar os homens em família sua.

244 Os problemas que afetam a unidade da Igreja provêm da diversidade de seus membros. Esta multidão de irmãos que Cristo reuniu na Igreja não constitui uma realidade monolítica. Eles vivem sua unidade a partir da diversidade com que o Espírito presenteou cada um , diversidade que se deve entender como colaboração prestada à riqueza do todo.

245 Esta diversidade pode fundar-se simplesmente na maneira de ser de cada um, na função que a cada um corresponde no interior da Igreja e que distingue nitidamente o papel da hierarquia do papel do laicato. Ou em carismas mais especiais que o Espírito suscita como o da vida religiosa ou outros parecidos. Por isso a Igreja é como um corpo que, gerado constantemente, alimentado e renovado pelo Espírito, cresce na direção da plenitude de Cristo.

246 A força que assegura a coesão da família de Deus no meio das tensões e dos conflitos é em primeiro lugar a própria vitalidade de sua comunhão na fé e no amor. Isto supõe não só o desejo e a determinação da unidade, mas também a coincidência na verdade plena de Jesus Cristo. Também asseguram e constroem a unidade da Igreja os sacramentos. A Eucaristia significa nesta unidade a sua realidade mais profunda, pois congrega o povo de Deus como família que participa de uma única mesa onde a vida de Cristo, entregue sacrificalmente, se faz a única vida de todos.

247 A Eucaristia orienta-nos de modo imediato para a hierarquia sem a qual ela é impossível; porque foi aos apóstolos que o Senhor deu o mandato de celebrá-la "em minha memória" (Lc 22,19). Os pastores da Igreja, sucessores dos apóstolos, constituem por isso mesmo o centro visível onde se constrói, aqui na terra, a unidade da Igreja.

248 Segundo o Concílio o papel dos pastores é eminentemente paterno (LG 28; CD 16; PO 9). Torna-se então evidente que acontece na Igreja o que acontece em toda família: a unidade dos filhos se realiza - fundamentalmente - na direção do alto. Quando a comunicação com a Igreja se enfraquece e até se rompe, são também os pastores os ministros sacramentais da reconciliação.

249 Este caráter paterno não deixa que ninguém esqueça que os pastores estão no interior da família de Deus a serviço desta família. São irmãos chamados a cuidar da vida que o Espírito suscita, livremente, nos demais irmãos. É dever dos pastores respeitar esta vida, acolhê-la, orientá-la e promovê-la, ainda que tenha nascido independentemente da iniciativa deles. Por isso é necessário cuidado para "não extinguir o Espírito nem desprezar a profecia" (1Ts 5,19). Os pastores vivem para os outros. "Para que tenham a vida e a tenham em abundância" (Jo 10,10). Tarefa de unidade não significa exercício de poder arbitrário. Autoridade é serviço prestado à vida. Estes serviços dos pastores inclui o direito e o dever de corrigir e decidir, com a clareza e a firmeza que sejam necessárias.

Povo Santo

250 Povo de Deus, em que habita o Espírito, é também um Povo Santo. Mediante o batismo, o próprio Espírito o tornou participante da vida divina, o ungiu como povo messiânico e o revestiu da Santidade da vida divina recebida. Esta santidade recorda ao Povo de Deus a dimensão vertical e constituinte da sua comunhão. É um povo que não apenas nasce de Deus, mas também se orienta para Ele, como povo consagrado, para render-lhe culto a glória. O Povo de Deus aparece assim como o seu templo vivo, morada de sua presença entre os homens. Nele, nós cristãos somos pedras vivas.

251 Os cidadãos deste povo devem caminhar na terra mas como cidadãos do céu, com seu coração enraizado em Deus, através da oração e da contemplação. Esta atitude não significa fuga diante do terreno, mas sim condição para uma entrega fecunda aos homens. Porque quem não aprendeu a adorar a vontade do Pai no silêncio da oração, dificilmente conseguirá fazê-lo quando sua condição de irmão lhe pedir renúncia, dor ou humilhação.

252 O culto que Deus nos pede - expresso na oração e na liturgia - prolonga-se na vida cotidiana através do esforço que se faz para converter tudo em oferenda e oblação . Como membros de um povo já santificado pelo batismo, somos chamados, nós cristãos, a manifestar esta santidade. "Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5,48). Esta santidade exige o cultivo tanto das virtudes sociais como da moral pessoal. Tudo o que atenta contra a dignidade do corpo humano que é chamado a ser templo de Deus implica profanação e sacrilégio e entristece o Espírito . Vale isto para o homicídio e a tortura, mas também para a prostituição, para a pornografia, o adultério, o aborto e qualquer outro abuso sexual.

253 Neste mundo não conseguirá nunca a Igreja viver, em plenitude, sua vocação universal para a santidade. Permanecerá sempre composta de justos e pecadores . Mais: pelo coração de cada cristão passa a linha que divide a parte que temos de justos da que temos de pecadores.

Povo Peregrino

254 A Igreja, concebendo-se como povo, se define como uma realidade no seio da história que caminha para uma meta ainda não alcançada.

255 Por ser um povo histórico, a natureza da Igreja exige visibilidade em nível de estrutura social . O Povo de Deus considerado como "família" já tinha a conotação de uma realidade visível, porém num plano eminentemente vital. A acentuação do caráter histórico sublinha a necessidade que há de se exprimir tal realidade como instituição.

256 Este caráter social-institucional se manifesta na Igreja através de uma estrutura visível e clara que ordena a vida de seus membros, determina suas funções e relações, seus direitos e deveres.

257 A Igreja enquanto Povo de Deus reconhece apenas uma autoridade: Cristo. Ele é o pastor que a guia. Todavia os laços que a prendem a Ele são muito mais profundos do que os de um simples trabalho de direção. Cristo é a autoridade da Igreja no sentido mais profundo da palavra, porque é seu autor. Porque é fonte de sua, vida e unidade, sua cabeça. Esta capitalidade é a misteriosa relação vital que o vincula a todos os seus membros. Por isso a participação de sua autoridade aos Pastores ao longo da, história nasce e parte desta mesma realidade. É muito mais do que um simples poder jurídico. É verdadeira participação no mistério de sua capitalidade. E por isso é uma realidade de ordem sacramental.

258 Os Doze, presididos por Pedro, foram escolhidos por Jesus para participar dessa misteriosa relação que o prende à sua Igreja. Foram constituídos e consagrados por Ele como sacramentos vivos de sua presença, para torna-los presente e visível, como cabeça e pastor, no meio de seu povo. Desta comunhão profunda no mistério é que decorre como conseqüência o poder de "atar e desatar" . Considerado em sua, totalidade, o mistério hierárquico é uma realidade de ordem sacramental, vital e jurídica com a própria Igreja.

259 Este mistério foi confiado a Pedro e aos outros apóstolos, cujos sucessores são hoje em dia o Romano Pontífice e os bispos, a quem se unem como colaboradores os presbíteros e diáconos. Os pastores da Igreja não a guiam apenas em nome do Senhor: exercem também a função de mestres da verdade e presidem sacerdotalmente ao culto divino. O dever de obediência do Povo de Deus aos pastores que o conduzem funda-se menos em considerações jurídicas do que no respeito de quem crê que neles o Senhor tem uma presença sacramental. Esta é sua realidade objetiva de fé, independente de toda consideração pessoal.

260 Na América Latina, desde o Concílio e Medellin, percebe-se uma grande mudança na maneira de se exercer a autoridade dentro da Igreja. Acentuou-se o seu caráter de serviço e sacramento, como também a sua dimensão de afeto colegial. Esta encontrou sua expressão não apenas a nível do conselho presbiterial diocesano, mas também através das conferências episcopais e do CELAM.

261 Esta visão da Igreja, enquanto povo histórico e socialmente estruturado, é um marco ao qual obrigatoriamente deve referir-se também a reflexão teológica a respeito das CEBs de nosso Continente, pois introduz elementos que permitem complementar o acento que as referidas comunidades colocam no dinamismo vital das bases e na fé que é compartilhada com mais espontaneidade em comunidades pequenas. A Igreja como povo histórico institucional representa a estrutura mais ampla, universal e definida, dentro da qual se devem inscrever vitalmente as CEBs, para não correrem o risco de degenerar em anarquia organizativa, por um lado, ou em elitismo fechado e sectário, por outro.

262 Alguns dos aspectos do problema da "Igreja popular" ou dos "magistérios paralelos" se insinuam nesta linha: a seita tende sempre ao auto-abastecimento quer jurídico quer doutrinal; integradas na totalidade do Povo de Deus, as CEBs evitarão com certeza estes escolhos e corresponderão às esperanças que a Igreja da América Latina nelas deposita.

263 O problema da "Igreja popular", ou seja, a Igreja que nasce do povo, apresenta diversos aspectos. Se se entende Igreja popular como aquela que procura encarnar-se nos meios populares do nosso Continente e que, por isso mesmo, surge da resposta de fé que os grupos do povo dêem ao Senhor, evita-se o primeiro obstáculo: a negação aparente da verdade fundamental que ensina que a Igreja sempre nasce de uma primeira iniciativa que "vem do alto", isto é, do Espírito que a suscita e do Senhor que a convoca. Esta designação, porém, parece pouco feliz. Todavia, a "Igreja popular" aparece como distinta de "outra", identificada como a Igreja "oficial" ou "institucional", que é acusada de ser "alienante". Isto implicaria uma divisão no interior da Igreja e uma negação inaceitável da função da hierarquia. Tais posições, de acordo com João Paulo II, poderiam ser inspiradas por conhecidos condicionamentos ideológicos.

264 Outro problema candente na América Latina e relacionado com a condição histórica do Povo de Deus é o das mudanças na Igreja. Ao caminhar através da história, a Igreja muda necessariamente, mas apenas no exterior e acidentalmente. Não se pode falar, portanto, de uma contraposição entre a "Igreja nova" e a "Igreja velha", como alguns o pretendem (João Paulo II, Catedral do México). O problema das mudanças tem feito sofrer a muitos cristãos, que viram cair por terra uma forma de viver a Igreja que eles julgaram completamente imutável. É importante ajuda-los a distinguir os elementos divinos dos elementos humanos da Igreja. Cristo, enquanto Filho de Deus, permaneceu sempre idêntico a si mesmo, mas em seu aspecto humano foi mudando sem cessar: de estatura, de rosto, de aspecto. O mesmo acontece com a Igreja.

265 Em outro extremo estão os que quiseram viver uma mudança contínua. Não é este o sentido de ser peregrinos. Não estamos à procura de tudo. Existe algo que já possuímos na esperança, mas com segurança e do qual devemos dar testemunho. Somos peregrinos, mas também somos testemunhas. Nossa atitude é de tranqüilidade e de alegria por aquilo que já encontramos e de esperança pelo que ainda nos falta. Tampouco é certo que todo caminho se faz andando. O caminho pessoal, em suas circunstâncias concretas, sim, mas o largo caminho que é comum aos povos de Deus já está aberto, já foi percorrido por Cristo e pelos santos, e em especial pelos santos da América Latina: os que morreram defendendo a integridade da fé e a liberdade da Igreja, servindo aos pobres, servindo aos índios, servindo aos escravos. Foi percorrido igualmente pelos que alcançaram os mais altos cumes da contemplação. Eles caminham conosco. Ajudam-nos com sua intercessão.


266 Ser peregrino implica sempre uma cota inevitável de insegurança e de risco. Ela é acrescida pela consciência de nossa fraqueza e nosso pecado. É parte do morrer cotidiano em Cristo. A fé no-lo permite assumir com esperança pascal. Os últimos dez anos têm sido violentos em nosso Continente. Mas caminhamos na certeza de que o Senhor saberá transformar a dor, o sangue e a morte, que no caminho da história vão deixando os nossos povos e a nossa Igreja, em sementes de ressurreição para a América Latina. Reconforta-nos o Espírito Santo e a Mãe fiel, sempre presentes no caminhar do Povo de Deus.

Povo enviado por Deus

267 Na força da consagração messiânica do batismo, o Povo de Deus é enviado para servir ao crescimento do Reino nos demais povos. É enviado como povo profético que anuncia o Evangelho ou faz discernimento das vozes do Senhor no coração da história. Anuncia onde se manifesta a presença de seu Espírito. Denuncia onde opera o mistério da iniqüidade, mediante fatos e estruturas que impedem uma participação mais fraterna na construção da sociedade e no desfrutar dos bens que Deus criou para todos.

268 Nos últimos dez anos comprovamos a intensificação da função profética. Assumir tal função tem sido trabalho duro para os pastores. Temos procurado ser a voz dos que não têm voz e testemunhar a mesma predileção do Senhor com os pobres e os que sofrem. Cremos que nossos povos sentiram que estamos mais perto deles. Com certeza conseguimos iluminar e ajudar. Com certeza, também, poderíamos ter feito mais. Agora, colegialmente, tentaremos interpretar a passagem do Senhor pela América Latina.

269 Outra forma privilegiada de evangelizar é a celebração da fé na liturgia e nos sacramentos. Aí aparece o Povo de Deus como Povo Sacerdotal, investido de um sacerdócio universal do qual participam todos os batizados, mas que difere essencialmente do sacerdócio hierárquico.

2.3. O Povo de Deus a serviço da Comunhão

Um povo servidor

270 O Povo de Deus, como Sacramento universal de salvação, está inteiramente a serviço da comunhão dos homens com Deus e do gênero humano entre si . A Igreja é, portanto, um povo de servidores. Seu modo próprio de servir é evangelizar; é um serviço que só ela pode prestar. Determina sua identidade e a originalidade de sua contribuição. Este serviço evangelizador da Igreja se dirige a todos os homens, sem distinção. Mas nele sempre há de refletir a especial predileção de Jesus pelos mais pobres e sofredores.

271 Dentro do Povo de Deus, todos - hierarquia, leigos, religiosos são servidores do Evangelho. Cada qual segundo seu papel e carisma próprios. A Igreja, como servidora do Evangelho, serve ao mesmo tempo a Deus e aos homens; mas para conduzir estes ao Reino de seu Senhor, o único de quem ela, junto com a Virgem Maria, se proclama escrava e a quem subordina todo seu serviço humano.

A Igreja, sinal de comunhão

272 A Igreja evangeliza, em primeiro lugar, mediante o testemunho global de sua vida. Assim, na fidelidade à sua condição de sacramento, trata de ser mais e mais um sinal transparente ou modelo vivo da comunhão de amor em Cristo que anuncia e se esforça por realizar. A pedagogia da encarnação nos ensina que os homens necessitam de modelos preclaros que os guiem . A América Latina necessita igualmente de tais modelos.

273 Cada comunidade eclesial deveria esforçar-se por constituir para o Continente um exemplo de modo de convivência onde consigam unir-se a liberdade e a solidariedade, onde a autoridade se exerça com o espírito do Bom Pastor, onde se viva uma atitude diferente diante da riqueza, onde se ensaiem formas de organização e estruturas de participação, capazes de abrir caminho para um tipo mais humano de sociedade, e, sobretudo, onde inequivocamente se manifeste que, sem uma radical comunhão com Deus em Jesus Cristo, qualquer outra forma de comunhão puramente humana acaba se tornando incapaz de sustentar-se e termina fatalmente voltando-se contra o próprio homem.

A Igreja, escola de forjadores de história

274 Para os próprios cristãos, a Igreja deveria transformar-se num lugar em que aprendem a viver a fé experimentando-a e descobrindo-a encarnada nos outros. Do modo mais urgente, deveria ser a escola onde se eduquem homens capazes de fazer história, para levar eficazmente com Cristo a história de nossos povos até ao Reino.

275 Diante dos desafios históricos que enfrentam nossos povos, encontramos entre os cristãos dois tipos de reações extremas: os "passivistas", que crêem não poder e não dever intervir, esperando que só Deus atue e liberte; os "ativistas", que numa perspectiva secularizada, consideram Deus distante, como se houvesse entregue a completa responsabilidade da história aos homens, os quais, por essa razão, procuram angustiada e freneticamente levá-la para diante.

276 A atitude de Jesus foi outra. N'Ele culminou a sabedoria ensinada por Deus a Israel. Este havia encontrado Deus em meio de sua história. Deus o convidou a forjá-la juntos, em Aliança. Ele marcava o caminho e a meta e exigia a colaboração livre e confiante de seu Povo. Jesus aparece igualmente, atuando na história, pela mão de seu Pai. Sua atitude é, ao mesmo tempo, de total confiança e de máxima co-responsabilidade e compromisso. Porque sabe que tudo está nas mãos do Pai, que cuida das aves e dos lírios do campo . Mas sabe também que a ação do Pai procura passar através da sua.

277 Como o Pai é o protagonista principal, Jesus procura seguir seus caminhos e ritmos. Sua preocupação de cada instante consiste em sintonizar fiel e rigorosamente com a vontade do Pai. Não basta conhecer a meta e caminhar para ela. Importa conhecer e esperar a hora , que para cada passo o Pai assinalou, perscrutando os sinais de sua Providência. Dessa docilidade filial dependerá toda a fecundidade da obra.

278 Além disso, Jesus entende perfeitamente que não só se trata de libertar os homens do pecado e de suas dolorosas conseqüências. Ele sabe muito bem o que hoje tanto se cala na América Latina: que se deve libertar a dor pela dor, isto é, assumindo a Cruz e convertendo-a em fonte de vida pascal.

279 Para que a América Latina seja capaz de converter suas dores em crescimento para uma sociedade verdadeiramente participada e fraterna, precisa educar homens capazes de forjar a história segundo a "práxis" de Jesus, entendida como a explicitamos a partir da teologia bíblica da história. O Continente precisa de homens conscientes de que Deus os chama para atuar em aliança com Ele. Homens de coração dócil, capazes de tornar seus os caminhos e o ritmo que a Providência indique. Especialmente capazes de assumir sua própria dor e a de nossos povos e converte-los, com espírito pascal, em exigência de conversão pessoal, em fonte de solidariedade com todos os que compartilham este sofrimento e em desafio para a iniciativa e a imaginação criadoras.

A Igreja, instrumento de comunhão

280 Através da ação de cristãos evangelicamente comprometidos, a Igreja pode completar sua missão de Sacramento de salvação tornando-se instrumento do Senhor, que dinamize eficazmente em direção a Ele a história dos homens e dos povos.

281 A realização histórica desse serviço evangelizador será sempre árdua e dramática, porque o pecado, força de ruptura, há de impedir constantemente o crescimento no amor e a comunhão tanto a partir do coração dos homens, como a partir das diversas estruturas por eles criadas, nas quais o pecado de seus autores imprimiu sua marca destruidora. Neste sentido, a situação de miséria, marginalidade, injustiça e corrupção que fere nosso Continente, exige do Povo de Deus e de cada cristão um autêntico heroísmo em seu compromisso evangelizador, a fim de poder superar semelhantes obstáculos. Diante de tal desafio, a Igreja sabe que é limitada e pequena, mas se sente animada pelo Espírito e protegida por Maria. Sua poderosa intercessão lhe permitirá superar as "estruturas do pecado" na vida pessoal e social e lhe obterá a "verdadeira libertação", que vem de Cristo Jesus (João Paulo II, Zapopán 11).

2.4. Maria, Mãe e modelo da Igreja

282 Em nossos povos, o Evangelho tem sido anunciado, apresentando a Virgem Maria como sua realização mais alta. Desde os primórdios - em sua aparição e invocação de Guadalupe - Maria tornou-se o grande sinal, de rosto materno e misericordioso, da proximidade do Pai e de Cristo com quem ela nos convida a entrar em comunhão. Maria foi também a voz que deu impulso à união dos homens e dos povos. Como em Guadalupe, os outros santuários marianos do Continente são sinais do encontro da fé da Igreja com a história latino-americana.

283 Paulo VI afirmou que a devoção a Maria é um elemento "qualificador" e "intrínseco" da "genuína piedade da Igreja" e do "culto cristão" . Isto é uma experiência vital e histórica da América Latina. Esta experiência, reafirma-o João Paulo II, pertence à íntima, "identidade própria destes povos" (João Paulo II, Zapopán 2).

284 Sabe o povo que encontra Maria na Igreja Católica. A piedade mariana é com freqüência o vínculo resistente que mantém fiéis à Igreja setores que carecem de atenção pastoral adequada.

285 O povo fiel reconhece na Igreja a família que tem por mãe a mãe de Deus. A Igreja confirma o seu instinto evangélico segundo o qual Maria é o modelo perfeito do cristão, a imagem ideal da Igreja.

Maria, Mãe da Igreja

286 A Igreja "instruída pelo Espírito Santo venera" Maria "como mãe muito amada, com afeto de piedade filial" (LG 13). Foi nessa fé que o Papa Paulo VI quis proclamar Maria "Mãe da Igreja".

287 Foi-nos revelada a fecundidade maravilhosa de Maria. Ela torna-se Mãe de Deus, Mãe do Cristo histórico, no Fiat da anunciação, quando o Espírito Santo a cobre com sua sombra. É Mãe da Igreja porque é Mãe de Cristo, Cabeça do Corpo Místico. Além disso, é nossa Mãe "por ter cooperado com seu amor" (LG 53), no momento em que do coração traspassado de Cristo nascia a família dos redimidos; "por isso é nossa Mãe na ordem da graça" (LG 61). É a vida de Cristo que irrompe vitoriosa em Pentecostes, onde Maria implorou para a Igreja o Espírito Santo Vivificador.

288 A Igreja, pela evangelização, gera novos filhos hoje. Esse processo que consiste em "transformar a partir de dentro ", em "renovar a própria humanidade" (EN 18) é um verdadeiro renascimento. Neste parto, sempre renovado, Maria é nossa Mãe. Ela, gloriosa no céu, atua na terra. Participando do domínio do Cristo ressuscitado, "cuida com amor materno dos irmãos de seu filho, que ainda peregrinam" (LG 62); seu grande cuidado é este: que os cristãos "tenham vida abundante e cheguem à maturidade da plenitude de Cristo".

289 Maria não vela apenas pela Igreja. Tem um coração tão grande quanto o mundo e intercede ante o Senhor da história por todos os povos. Isto bem registra a fé popular que põe nas mãos de Maria, como rainha e mãe, o destino de nossas nações.

290 Enquanto peregrinamos, Maria será a mãe educadora da fé (LG 63). Ela cuida que o Evangelho nos penetre intimamente, plasme nossa vida de cada dia e produza em nós frutos de santidade. Ela precisa ser cada vez mais a pedagoga do Evangelho na América Latina.

291 Maria é verdadeiramente Mãe da Igreja. Marca o Povo de Deus. Paulo VI faz sua uma fórmula concisa da tradição: "Não se pode falar de Igreja sem que esteja presente Maria" (MC 28). Trata-se de uma presença feminina, que cria o ambiente de família, o desejo de acolhimento, o amor e o respeito à vida. É presença, sacramental dos traços maternais de Deus. É uma realidade tão profundamente humana e santa que desperta nos crentes as preces da ternura, da dor e da esperança.

Maria, Modelo da Igreja

Modelo em sua relação com Cristo

292 Segundo o plano de Deus em Maria, "tudo se refere a Cristo e tudo depende dele" (MC 25). Toda sua existência é uma plena comunhão com seu Filho. Ela deu seu sim a esse desígnio de amor. Aceitou-o livremente na anunciação e foi fiel à palavra dada até o martírio do Gólgota. Foi a fiel companheira do Senhor em todos os caminhos. A maternidade divina levou-a a uma entrega total. Foi uma doação generosa, cheia de lucidez e permanente, unida a uma história de amor a Cristo íntima e santa, uma história única que culmina na glória.

293 Maria, levada ao máximo na participação com Cristo, é íntima colaboradora de sua obra. Foi "algo inteiramente distinto de uma mulher passivamente remissiva ou de religiosidade alienante" (MC 37). Ela não é apenas o fruto admirável da redenção; é também sua cooperadora ativa. Em Maria se manifesta preclaramente que Cristo não anula a criatividade dos que o seguem. Ela, associada a Cristo, desenvolve todas as suas capacidades e responsabilidades humanas, até chegar a ser a nova Eva juntamente com o novo Adão. Maria, por sua livre cooperação na nova aliança de Cristo, é junto a ele protagonista da história. Por esta comunhão e participação, a Virgem Imaculada vive agora imersa no mistério da Trindade, louvando a glória de Deus e intercedendo pelos homens.

Modelo para a vida da Igreja e dos homens

294 Neste momento, em que nossa Igreja Latino-Americana quer dar um novo passo de fidelidade ao seu Senhor, olhamos para a figura viva de Maria. Ela nos ensina que a virgindade é uma entrega exclusiva a Jesus Cristo, em que a fé, a pobreza. e a obediência ao Senhor se tornam fecundas pela ação do Espírito. Assim, também a Igreja quer ser mãe de todos os homens, não à custa de seu amor a Cristo, afastando-se dele ou postergando-o, mas precisamente pela sua comunhão íntima e total com Ele. A virgindade materna de Maria conjuga, no mistério da Igreja, essas duas realidades: toda de Cristo e com ele, toda servidora dos homens. Silêncio, contemplação e adoração que dão origem à mais generosa resposta à missão, à mais fecunda evangelização dos povos.

295 Maria, Mãe, desperta o coração do filho adormecido em cada. homem. Assim, nos leva a desenvolver a vida do batismo pela qual nos tornamos filhos. Ao mesmo tempo esse carisma materno faz crescer em nós a fraternidade e assim Maria faz com que a Igreja se sinta uma família.

296 Maria "é reconhecida como modelo extraordinário da Igreja na ordem da fé" . É aquela que crê, pois nela resplandece a fé como dom, abertura, resposta e fidelidade. É a discípula perfeita que se abre à palavra e se deixa penetrar por seu dinamismo. Quando não a compreende e fica surpresa, não a repele, ou põe de lado; medita-a e conserva-a . E quando a palavra lhe soa dura aos ouvidos, persiste confiantemente no diálogo de fé com Deus que lhe fala; assim na cena do encontro com Jesus no templo, assim em Caná, quando seu filho a princípio rejeita sua súplica . Fé que leva a subir ao Calvário e a associar-se à cruz, como a única árvore da vida. Pela sua fé é a Virgem fiel em quem se cumpre a bem-aventurança maior: "feliz aquela que acreditou" (Lc 1,45) .

297 O Magnificat é espelho da alma de Maria. Neste poema conquista o seu cume a espiritualidade dos pobres de Javé e o profetismo da Antiga Aliança. É o cântico que anuncia o novo Evangelho de Cristo. É o prelúdio do Sermão da Montanha. Aí Maria se nos manifesta vazia de si própria e depositando toda sua confiança na misericórdia do Pai. No Magnificat manifesta-se como modelo "para os que não aceitam passivamente as circunstâncias adversas da vida pessoal e social, nem são vítimas da alienação, como se diz hoje, mas que proclamam com ela que Deus 'exalta os humildes' e se for o caso 'derruba os poderosos de seus tronos'..." (João Paulo II, Homilia Zapopán, 4 - AAS LXXI p.230).

Bendita entre todas as mulheres

298 A Imaculada Conceição apresenta-nos em Maria o rosto do homem novo redimido por Cristo, no qual Deus recria ainda "mais admiravelmente" (Coleta da Natividade de Jesus) o projeto do paraíso. Na Assunção se nos manifestam o sentido e o destino do corpo santificado pela graça. No corpo glorioso de Maria começa a criação material a ter parte no corpo ressuscitado de Cristo. Maria, arrebatada ao céu, é a integridade humana, corpo e alma, que agora reina intercedendo pelos homens, peregrinos na história. Essas verdades e mistérios iluminam o Continente onde a profanação do homem é uma constante e onde muitos se fecham num fatalismo passivo.

299 Maria é mulher. É "a bendita entre todas as mulheres". Nela dignifica Deus a mulher elevando-a a dimensões inimagináveis. Em Maria o Evangelho penetrou a feminilidade, redimiu-a e exaltou-a. Isto é de importância capital para nosso horizonte cultural, em que a mulher deve ser valorizada muito mais e em que suas tarefas sociais se estão definindo com mais clareza e amplidão. Maria é uma garantia para a grandeza da mulher, mostra a forma específica do ser mulher, com essa vocação de ser alma, dedicação que espiritualiza a carne e que encarne o espírito.

Modelo de serviço eclesial na América Latina

300 A Virgem Maria fez-se a serva do Senhor. A Escritura apresenta-a como alguém que indo visitar Isabel por ocasião do parto, presta-lhe o serviço muito maior de anunciar-lhe o Evangelho com as palavras do Magnificat. Em Caná está atenta às necessidades da festa e sua intercessão provoca a fé dos discípulos que "acreditam nele" (Jo 2,11). Todo serviço que Maria presta aos homens consiste em abri-los ao Evangelho e convida-los a obedecer-lhe: "Fazei o que vos disser" (Jo 2,5).

301 Deus se fez carne por meio de Maria, começou a fazer parte de um povo, constituiu o centro da, história. Ela é o ponto de união entre o céu e a terra. Sem Maria desencarna-se o Evangelho, desfigura-se e transforma-se em ideologia, em racionalismo espiritualista.

302 Paulo VI assinala a amplidão do serviço de Maria com palavras que têm um eco muito atual em nosso Continente: ela é "a mulher forte que conheceu a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio (cf. Mt 2,13-23); situações estas que não podem escapar à atenção de quem quiser dar apoio, com espírito evangélico, às energias libertadoras do homem e da sociedade. Apresentar-se-á Maria como a mulher que com a sua ação favoreceu a fé da comunidade apostólica, em Cristo (cf. Jo 2, 1-12) e cuja função materna se dilatou, vindo a assumir no Calvário, dimensões universais" (MC 37).

303 O povo latino-americano conhece bem tudo isso. A Igreja tem consciência de que "o que importa é evangelizar não de maneira decorativa como se tratasse de um verniz superficial" (EN 20). Esta Igreja que com nova lucidez e nova decisão quer evangelizar no fundo, na raiz, na cultura do povo, volta-se para Maria para que o Evangelho se torne mais carne, mais coração na América Latina. Esta é a hora de Maria, isto é, o tempo do Novo Pentecostes a que ela preside com sua oração, quando, sob o influxo do Espírito Santo, a Igreja inicia um novo caminho em seu peregrinar. Que Maria seja nesse caminho "estrela de evangelização sempre renovada" (EN 81).

3. A VERDADE A RESPEITO DO HOMEM: A DIGNIDADE HUMANA

304 Visão cristã do homem, quer à luz da fé, quer à luz da razão, para julgar sua situação na América Latina a fim de se contribuir na construção de uma sociedade mais cristã e, portanto, mais humana.

A. Visões inadequadas do homem na América Latina

a.1. Introdução

305
No mistério de Cristo, Deus baixa até ao abismo do ser humano para restaurar por dentro sua dignidade. Oferece-nos assim a fé em Cristo, os critérios fundamentais para se obter uma visão integral do homem que, por sua vez, ilumina e completa a imagem concebida pela filosofia e as contribuições das outras ciências humanas, a respeito do ser do homem e de sua realização histórica.

306 Por seu lado tem a Igreja o direito e o dever de anunciar a todos os povos a visão cristã da pessoa humana, país sabe que precisa dela para iluminar a própria identidade e o sentido da vida e porque professa que toda violação da dignidade humana é injúria ao próprio Deus, cuja imagem é o homem. Portanto, a evangelização no presente e no futuro da América Latina exige da Igreja uma palavra clara sobre a dignidade humana. Por meio dela se quer retificar ou integrar tantas visões inadequadas que se propagam em nosso Continente das quais umas atentam contra a identidade e a genuína liberdade, outras impedem a comunhão; outras não promovem a participação com Deus e com os homens.

307 A América Latina constitui o espaço histórico em que se dá o encontro de três universos culturais: o indígena, o branco e o africano, que foram enriquecidos posteriormente por diversas correntes migratórias. Aí se dá, ao mesmo tempo, uma convergência de maneiras diferentes de ver o mundo, o homem e Deus, e de reagir frente a eles. Forjou-se uma espécie de mestiçagem latino-americana. Embora em seu espírito permaneça uma base de vivências religiosas marcadas pelo Evangelho, emergem também e se misturam cosmovisões alheias à fé cristã. No decorrer do tempo, teorias e ideologias introduzem em nosso continente novos enfoques sobre o homem, que parcializam ou deformam aspectos de sua visão integral ou a ela se fecham.

a.2. Visão determinista

308 Não se pode desconhecer na América Latina a erupção da alma religiosa primitiva à qual se prende uma visão da pessoa como prisioneira das formas mágicas de ver o mundo e de atuar sobre ele. O homem não é dono de si, mas vítima de forças ocultas. Nesta visão determinista, não encontra outra. atitude senão colaborar com essas forças ou aniquilar-se diante delas . Acresce ainda, às vezes, a crença na reencarnação por parte dos adeptos de várias formas de espiritismo e de religiões orientais. Não poucos cristãos, ignorando a autonomia própria da natureza e da história, continuam crendo que tudo o que acontece é determinado e imposto por Deus.

309 Uma variante desta visão determinista, porém, mais de tipo fatalista e social, se apóia na idéia errônea de que os homens não são fundamentalmente iguais. Tal diferença articula nas relações humanas muitas discriminações e marginalizações incompatíveis com a dignidade do homem. Mais do que na teoria, essa falta de respeito à pessoa se manifesta em expressões e atitudes daqueles que se julgam superiores aos outros. Por isso, com freqüência, domina uma situação de desigualdade em que vivem operários, camponeses, índios, empregadas domésticas e tantos outros setores.

a.3. Visão psicologista

310 Restrita até agora a certos setores da sociedade latino-americana, ganha cada vez mais importância a idéia de que a pessoa humana se reduz, em última instância, a seu psiquismo. Na visão psicologista do homem, segundo sua expressão mais radical, a pessoa se apresenta como vítima do instinto fundamental erótico ou com um simples mecanismo de resposta a estímulos, carente de liberdade. Fechada para Deus e para os homens, uma vez que a religião, como a cultura e a própria história seriam apenas sublimações do instinto sensual, a negação da própria responsabilidade conduz não poucas vezes ao pansexualismo e justifica o machismo latino-americano.

a.4. Visões economicistas

311 Sob o signo do econômico, podem-se assinalar na América Latina três visões do homem que, embora distintas, têm raiz comum. Das três talvez a menos consciente e, apesar de tudo, a mais generalizada seja a visão consumiste. A pessoa humana está como que lançada na engrenagem da máquina da produção industrial; é vista apenas como instrumento de produção e objeto de consumo. Tudo se fabrica e se vende em nome dos valores do ter, do poder e do prazer, como se fossem sinônimos da felicidade humana. Impede-se assim o acesso aos valores espirituais e promove-se, em razão do lucro, uma aparente e mui onerosa "participação" no bem comum.

312 A serviço da sociedade de consumo, mas projetando-se para além da mesma, o liberalismo econômico, de práxis materialista, apresenta-nos uma visão individualista do ser humano. Segundo esta visão, a dignidade da pessoa está na eficácia econômica e na liberdade individual. Encerrada em si própria e com freqüência aferrada ao conceito religioso de salvação individual, cega-se para as exigências da justiça social e coloca-se a serviço do imperialismo internacional do dinheiro, a que se associam muitos governos esquecidos de suas obrigações em relação ao bem comum.

313 Oposto ao liberalismo econômico de forma clássica e em luta permanente contra as suas conseqüências injustas, o marxismo clássico substitui a visão individualista do homem por uma visão coletivista, quase messiânica, do mesmo. A meta existencial do ser humano coloca-se no desenvolvimento das forças materiais de produção. A pessoa não é originariamente sua consciência; é antes constituída por sua existência social. Despojada do arbítrio interno que lhe pode assinalar o caminho da realização pessoal, recebe suas normas de comportamento unicamente daqueles que são responsáveis pela mudança das estruturas sócio-político-econômicas. Desconhece, portanto, os direitos humanos, especialmente o direito à liberdade religiosa, que está na base de todas as liberdades . Desta forma, a dimensão religiosa, cuja origem estaria nos conflitos da infra-estrutura econômica, se orienta para uma fraternidade messiânica sem relação com Deus. Materialista e ateu, o humanismo marxista reduz o ser humano, em última instância, às estruturas externas.

a.5. Visão estatista

314 Menos conhecida, mas atuante na organização de não poucos governos da AL, a visão que poderíamos denominar estatista do homem tem sua base na teoria da Segurança Nacional. Submete o indivíduo ao serviço ilimitado da suposta guerra total contra os conflitos culturais, sociais, políticos e econômicos e através deles, contra a ameaça do comunismo. Ante este perigo permanente, real ou possível, se limitam, como em toda situação de emergência, as liberdades individuais; e a vontade do Estado se confunde com a vontade da Nação. O desenvolvimento econômico e o potencial bélico sobrepõem-se às necessidades das massas abandonadas. Embora necessária a toda organização política, a Segurança Nacional, vista sob este ângulo, apresenta-se como um absoluto acima das pessoas. Em seu nome institucionaliza-se a insegurança dos indivíduos.

a.6. Visão cientificista

315 A organização técnico-científica de certos países está gerando uma visão cientificista do homem, cuja vocação é a conquista do universo. Nesta visão só se reconhece como verdade o que pode ser demonstrado pela ciência. O próprio homem é reduzido à sua definição científica,. Em nome da ciência justifica-se tudo, até o que constitui uma afronta à, dignidade humana. Simultaneamente se submetem as comunidades nacionais às decisões de um novo poder, a tecnocracia. Uma espécie de engenharia social pode controlar os espaços de liberdade dos indivíduos e instituições, com o risco de reduzi-tos a meros elementos de cálculo.

B. REFLEXÃO DOUTRINAL

b.1. Proclamação fundamental

316 É grave obrigação nossa proclamar, ante os irmãos da AL, a dignidade que é própria de todos, sem nenhuma distinção e que, contudo, vemos conculcada tantas vezes de maneira extrema. Ao reivindicar tal dignidade move-nos a revelação que está contida na mensagem e na própria pessoa de Jesus Cristo: "Ele conhecia o que há no homem" (Jo 2,25); contudo não hesitou em "tomar a forma de escravo" (F1 2,7), nem se recusou a viver até à morte junto dos postergados, para fazê-los participantes da exaltação que ele próprio mereceu de Deus Pai.

317 Professamos pois que todo homem e toda mulher , por mais insignificantes que pareçam, têm em si a nobreza inviolável que eles próprios e os demais devem respeitar e fazer respeitar, incondicionalmente; professamos também que toda a vida humana merece por si mesma, em qualquer circunstância, sua dignificação; e que toda convivência humana tem que fundar-se no bem comum, que consiste na realização cada vez mais fraterna da dignidade comum e que exige não se instrumentalizem uns em favor de outros e que todos estejam dispostos a sacrificar até seus bens particulares.

318 Condenamos todo menosprezo, diminuição ou injúria às pessoas e seus direitos inalienáveis; todo atentado contra a vida humana, desde a que está oculta no seio materno até à que se julga inútil e a que definha na velhice; toda violação ou degradação da convivência entre os indivíduos, os grupos sociais e as nações.

319 É certo que o mistério do homem só se ilumina perfeitamente pela fé em Jesus Cristo , o qual tem sido para a AL fonte histórica do anseio de dignidade, que hoje é clamoroso em nossos povos cheios de fé e sofridos. Só a aceitação e o seguimento de Jesus Cristo nos abrem para as certezas mais reconfortantes e para as exigências mais fecundas e difíceis da dignidade humana, uma vez que esta tem sua raiz na vocação gratuita para a vida que o Pai Celeste vai fazendo ouvir, de modo novo, através dos combates e das esperanças da história. Mas não temos dúvida de que, ao lutar pela dignidade, estamos unidos a outros homens lúcidos que se esforçam sinceramente por libertar-se de enganos e atos de paixão e seguem a luz do Espírito que o Criador lhes concedeu para reconhecer na própria pessoa e na pessoa dos outros um dom magnífico, um valor irrenunciável, uma tarefa transcendente.

320 Deste modo, sentimo-nos urgidos a cumprir, por todos os meios, o que pode ser o imperativo original desta hora de Deus, em nosso Continente: uma audaciosa profissão de cristianismo e uma promoção eficiente da dignidade humana e de seus fundamentos divinos, precisamente entre os que mais necessitam, ou porque a desprezam ou sobretudo porque, sofrendo este desprezo, buscam - talvez às cegas - a liberdade dos filhos de Deus e o advento do homem novo em Jesus Cristo.

b.2. Dignidade e liberdade

321 Deve-se revalorizar entre nós a imagem cristã dos homens. É forçoso e indispensável que volte a ressoar essa palavra em que se vem cristalizando desde há muito tempo um sublime ideal de nossos povos, LIBERDADE. Esta liberdade é a um tempo dom e tarefa. Ela não se alcança verdadeiramente sem a libertação integral e é, em sentido válido, meta do homem segundo nossa fé, uma vez que "para a liberdade é que Cristo nos libertou" (Gl 5,1) a fim de que tenhamos vida e a tenhamos em abundância , como "filhos de Deus e co-herdeiros do próprio Jesus Cristo" (Rm 8,17).

322 A liberdade implica sempre aquela capacidade que todos temos, em princípio, de dispor de nós mesmos , a fim de irmos construindo uma comunhão e uma participação que hão de se plasmar em realidades definitivas, em três planos inseparáveis: a relação do homem com o mundo como senhor, com as pessoas como irmão e com Deus como filho.

323 Pela liberdade, projetada sobre o mundo material da natureza e da técnica, o homem - sempre em comunidade de múltiplos esforços - consegue a realização inicial de sua dignidade: submeter este mundo, através do trabalho e da sabedoria, e humanizá-lo de acordo com os desígnios do Criador.

324 Mas a dignidade do homem verdadeiramente livre exige que ele não se deixe enclausurar nos valores do mundo, particularmente nos bens materiais, mas que, como ser espiritual que é, se liberte de qualquer escravidão e vá mais além até ao plano superior das relações pessoais onde se encontra consigo e com os demais. A dignidade dos homens se realiza aqui, no amor fraterno, entendido com toda a amplitude que o Evangelho lhe deu e que inclui o serviço mútuo, a aceitação e promoção prática dos outros, especialmente dos mais necessitados.

325 Entretanto não seria possível a obtenção autêntica e permanente da dignidade humana neste nível, se não estivéssemos ao mesmo tempo autenticamente libertados para realizar-nos no plano transcendente. Este é o plano do Bem Absoluto no qual está sempre em causa a nossa liberdade, até quando parecemos ignorá-lo. É o plano da confrontação iniludível com o mistério divino de alguém que, na qualidade de Pai, chama os homens e lhes dá a capacidade de ser livres, que os guia providencialmente e, já que eles podem fechar-se a Ele e até mesmo rejeitá-l'O, os julga e sanciona para a vida ou para a morte eterna, de acordo com aquilo que tenham realizado livremente. É uma imensa responsabilidade que é outro sinal da grandeza mas também do risco que se inclui na dignidade humana.

326 Através da unidade indissolúvel destes três planos aparecem melhor as exigências de comunhão e participação que brotam desta dignidade. Se no plano transcendente se realiza em plenitude nossa liberdade pela aceitação filial e fiel de Deus, entramos em comunhão de amor com o mistério divino e participamos de sua própria vida . O contrário é romper com o amor filial, repelir e desprezar o Pai. São duas possibilidades extremas que a revelação cristã chama graça e pecado. Elas, porém, não se realizam a não ser estendendo-se simultaneamente aos outros dois planos, com incensas conseqüências para a dignidade humana.

327 O amor de Deus que nos dignifica radicalmente se faz necessariamente comunhão de amor com os outros homens e participação fraterna; para nós, hoje em dia, deve tornar-se sobretudo obra de justiça para com os oprimidos , esforço de libertação para quem mais precisa. De fato, "ninguém pode amar a Deus a quem não vê, se não ama o irmão a quem vê" (1Jo 4,20). Todavia a comunhão e a participação verdadeiras só podem existir nesta vida projetadas no plano bem concreto das realidades temporais, de tal modo que o domínio, o uso e a transformação dos bens da terra, dos bens da cultura, da ciência e da técnica se vão realizando em um justo e fraterno domínio do homem sobre o mundo, tendo-se em conta o respeito da ecologia. O Evangelho nos deve ensinar, em face das realidades em que vivemos imersos, que não se pode atualmente na América Latina amar de verdade o irmão nem portanto a Deus sem que o homem se comprometa em nível pessoal e, em muitos casos, até em nível estrutural com o serviço e promoção dos grupos humanos e dos estratos sociais mais pobres e humilhados, arcando com todas as conseqüências que se seguem no plano destas realidades temporais.

328 Mas a uma atitude pessoal de pecado, à ruptura com Deus que degrada o homem, corresponde sempre, no plano das relações interpessoais, a atitude de egoísmo, de orgulho, de ambição e inveja que geram injustiça, dominação e violência em todos os níveis; corresponde à luta entre indivíduos, grupos, classes sociais e povos bem como á corrupção, o hedonismo, a exacerbação sexual e a superficialidade nas relações mútuas . Conseqüentemente se estabelecem situações de pecado que, em nível mundial, escravizam a tantos homens e condicionam adversamente a liberdade de todos.

329 Temos de nos libertar deste pecado; do pecado que destrói a dignidade humana. Libertamo-nos participando da vida nova que Jesus Cristo nos traz e também pela comunhão com Ele no mistério da sua morte e ressurreição, sob a condição de vivermos este mistério nos três planos já indicados, sem tornar exclusivo nenhum deles. Assim não o reduziremos nem ao verticalismo da união espiritual com Deus desencarnada, nem ao simples personalismo existencial feito de laços entre indivíduos ou pequenos grupos, nem muito menos ao horizontalismo sócio-econômico-político.

b.3. O homem renovado em Jesus Cristo

330 O pecado está minando a dignidade humana que Jesus Cristo resgatou. Através de sua mensagem, de sua morte e ressurreição, Ele nos deu a vida divina: dimensão insuspeitada e eterna da nossa existência terrena . Jesus Cristo, que está vivo em sua Igreja, sobretudo entre os mais pobres, quer hoje enaltecer esta semelhança com o Deus de seu povo: pela participação do Espírito Santo em Cristo também nós podemos chamar a Deus de Pai e nos tornamos radicalmente irmãos. Ele nos faz tomar consciência do pecado contra a dignidade humana, que se alastra pela América Latina; enquanto este pecado destrói a vida divina do homem, é o maior dano que uma pessoa pode causar-se a si mesma e aos demais. Cristo, finalmente, nos oferece a sua graça mais abundante que o nosso pecado . D'Ele vem o vigor que nos permite libertar-nos a nós e libertar os outros do mistério da iniqüidade.

331 Jesus Cristo restaurou a dignidade original que os homens tinham recebido ao serem criados por Deus à sua imagem , ao serem chamados a uma santidade ou consagração total ao Criador e destinados a conduzir a história até a manifestação definitiva deste Deus que difunde sua bondade para alegria eterna de seus filhos em um Reino que já começou.

332 Em Jesus Cristo chegamos a ser filhos de Deus, irmãos seus e participantes de seu destino, como agentes responsáveis movidos pelo Espírito Santo para construirmos a Igreja do Senhor.

333 Em Jesus Cristo descobrimos a imagem do "homem novo" (Cl 3,10) à qual fomos configurados pelo batismo e pela qual fomos assinalados pela confirmação - imagem também daquilo a que todo homem é chamado a ser, fundamento último de sua dignidade. Ao apresentar a Igreja, mostramos como nela tem de se expressar e realizar comunitariamente a dignidade humana. Em Maria encontramos a figura concreta em que culmina toda libertação e santificação na Igreja. Estas figuras têm que robustecer hoje os esforços dos fiéis latino-americanos em sua luta em prol da dignidade humana.

334 Perante Cristo e Maria devem revalorizar-se na AL os grandes traços da verdadeira imagem do homem e da mulher: sendo todos fundamentalmente iguais membros da mesma estirpe, apesar da diversidade de sexos, de línguas, de culturas e de formas de religiosidade, temos por vocação comum um destino único que - por incluir o alegre anúncio de nossa dignidade - nos converte em evangelizados e evangelizadores de Cristo neste Continente.

335 Nesta pluralidade e igualdade de todos, cada um conserva seu lugar e seu valor irrepetíveis, pois também cada homem latino-americano deve sentir-se amado por Deus e escolhido por Ele desde toda a eternidade , por mais que os homens não apreciem esse valor e esse lugar ou por pouco que cada um se estime a si próprio. Como pessoas em diálogo, não podemos realizar nossa dignidade senão como senhores co-responsáveis de um destino comum do qual Deus nos tornou capazes, inteligentes, isto é, aptos para discernir a verdade e segui-la diante do erro e do engano, livres, isto é, não submetidos inexoravelmente aos processos econômicos e políticos, embora nos reconheçamos humildemente condicionados por eles e obrigados a humanizá-los, submetidos, ao invés, a uma lei moral que vem de Deus e se faz ouvir na consciência dos indivíduos e dos povos, ensinando, admoestando, repreendendo e enchendo-nos da verdadeira liberdade dos filhos de Deus.

336 Por outro lado, Deus nos deu á existência em um corpo pelo qual temos a possibilidade de nos comunicar com os outros e de enobrecer o mundo. Por sermos homens, precisamos da sociedade onde estamos imersos e que vamos transformando e enriquecendo com a nossa contribuição em todos os níveis, desde a família e os grupos intermediários até ao Estado, cuja função indispensável consiste no serviço das pessoas e da própria comunidade internacional. É necessária a sua integração, sobretudo a integração latino-americana.

337 Alegramo-nos, por isso, de que também em nossos povos se crie uma legislação em defesa dos direitos humanos.

338 A Igreja tem obrigação de pôr em relevo este aspecto integral da evangelização, primeiro pela constante revisão de sua própria vida e depois pelo anúncio fiel e pela denúncia profética. Para que tudo isso se faça de acordo com o espírito de Cristo, devemos exercitar-nos no discernimento das situações e dos chamados concretos que o Senhor faz em cada tempo. Isto exige atitude de conversão e de abertura e um sério compromisso com aquilo que foi reconhecido como autenticamente evangélico.

339 Só assim se chegará a viver o que é mais característico da mensagem cristã a respeito da dignidade humana, que consiste em ser mais e não ter mais . Isto se viverá tanto entre os homens que, acossados pelo sofrimento, miséria, perseguição e morte, não vacilam em aceitar a vida no espírito das bem-aventuranças, quanto entre aqueles que, renunciando a uma vida de prazer e de facilidades, se dedicam a praticar de um modo realista, no mundo de hoje, as obras de serviço aos outros, critério e medida pelos quais Jesus Cristo há de julgar até aqueles que não o tiverem reconhecido.

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