7 de jul de 2025 às 16:11
Um relatório parlamentar francês divulgado na última quarta-feira (2) lançou luz sobre casos perturbadores de abuso em escolas e reacendeu um debate sobre o equilíbrio entre tutela estatal e liberdade de educação na França.
O relatório, resultado de uma investigação de cinco meses sobre violência no sistema escolar, propõe medidas destinadas de proteção aos menores. A concentração do relatório em instituições privadas católicas sob contrato estatal levantou preocupações sobre possíveis distorções políticas e o futuro do pluralismo educacional na França.
O inquérito é responsabilidade dos parlamenentares Violette Spillebout, do partido centrista Renascimento, do presidente Emmanuel Macron, e Paul Vannier, do partido de extrema-esquerda A França Insubmissa (LFI, na sigla em francês).
Embora o relatório aborde formalmente todos os tipos de escolas, grande parte de sua atenção é dirigida às instituições privadas católicas sob contrato estatal, especialmente os internatos.
Disfunção estrutural
A comissão de inquérito foi criada por causa de revelações de abusos em Notre-Dame de Bétharram, um internato católico. O primeiro-ministro da França, François Bayrou, ministro da educação de 1993 a 1997 e tinha matriculado seus filhos na escola, foi chamado a depor.
A escola Bétharram é citada no relatório como um estudo de caso importante. Padres, professores e funcionários da escola são acusados de terem cometido graves abusos físicos e sexuais entre 1957 e 2004.
As vítimas descreveram atos de "gravidade sem precedentes, de absoluto sadismo". Os legisladores chamaram a escola de "exemplo clássico" da disfunção estrutural do Estado e da sua incapacidade de prevenir abusos, dizendo que falhas semelhantes persistem até hoje.
O relatório denuncia a violência contínua em escolas públicas e privadas e cita décadas de medidas de proteção insuficientes. Fatiha Keloua Hachi, presidente da comissão de inquérito, descreveu a investigação como um "mergulho profundo no impensável", revelando silêncio sistêmico e fracasso institucional. O relatório documenta cerca de 270 escolas afetadas e pelo menos 80 grupos de vítimas em todo o país.
O relatório também apontou fatores culturais e religiosos que podem ter contribuído para o silêncio institucional em algumas escolas, como estruturas hierárquicas rígidas e relutância em questionar a autoridade.
A comissão constatou que professores punidos podiam, às vezes, ser transferidos discretamente. Ela também destacou a ausência de dados nacionais sobre casos de abuso e discrepâncias nos relatórios: uma pesquisa nacional estimou 7 mil casos de violência sexual por ano, mas só 280 foram registrados oficialmente em 2023-2024.
Por fim, o relatório conclui que o ministério da Educação da França ainda carece de ferramentas eficazes para identificar e lidar com abusos e pede reformas estruturais abrangentes.
Entre as recomendações mais importantes do relatório está o prolongamento do prazo de prescrição para denúncias de abusos, o reforço das proteções aos denunciantes e o estabelecimento de um novo órgão independente de denúncia. O relatório também pede a criação de um fundo nacional de indenização para as vítimas.
Outras medidas propostas são o aumento da frequência das inspeções, especialmente em internatos e o fim do sigilo profissional em casos envolvendo abuso de menores de 15 anos, mesmo no contexto de confissão religiosa.
Essa última proposta, já incluída no relatório Ciase de 2021 sobre abusos sexuais na Igreja, está gerando preocupação na hierarquia da Igreja, que tem reafirmado consistentemente a inviolabilidade do sigilo da confissão.
O relatório recomenda também que instituições privadas sob contrato estatal sejam colocadas mais diretamente sob a supervisão da Diretoria Geral do Ministério da Educação e propõe reavaliar o papel da Secretaria de Educação Católica (SGEC, na sigla em francês), que supervisiona cerca de 7,2 mil escolas.
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A resposta da educação católica
Philippe Delorme, secretário-geral do SGEC, que foi submetido a intenso escrutínio pelo correlator Vannier — que pôs em dúvida repetidamente sua legitimidade e o acusou de obstruir a supervisão — respondeu com cautela ao relatório.
Ele reconheceu sua utilidade em expor abusos e incentivar a vigilância, ao mesmo tempo em que expressou preocupação sobre o que ele vê como tentativas de corroer a missão distintiva da educação católica.
“A vida escolar em nossos estabelecimentos não pretende ser exatamente a mesma que nas escolas públicas”, disse ele numa audição em 7 de abril na Comissão de Assuntos Culturais e Educação da França. “Pois desfrutamos de uma certa liberdade de organização”.
Numa entrevista coletiva em 19 de junho, ele disse que o SGEC já havia se comprometido a verificar os antecedentes criminais de todos os funcionários não docentes — cerca de 80 mil indivíduos — bem antes da divulgação do relatório.
Além disso, a SGEC lançou em maio uma campanha para conscientizar, aprimorar estratégias de prevenção e reforçar o compromisso das instituições educacionais católicas com a segurança dos alunos.
A ênfase do relatório nas escolas católicas gerou debate, já que os críticos reconhecem a gravidade dos abusos documentados, mas também perguntam se o foco corre o risco de sugerir uma falha sistêmica exclusiva da educação católica, apesar de problemas semelhantes existirem no cenário educacional mais amplo.
Numa análise publicada no jornal Le Figaro, a jornalista de educação Caroline Beyer disse que o relatório é parte de "uma sequência política acima de tudo", com a educação católica diretamente na linha de fogo, e pôs em dúvida se as recomendações trariam mudanças significativas ou atendem só a motivos ideológicos.
Sua observação ecoou preocupações mais amplas de que, embora o relatório levante questões vitais, ele corre o risco de se tornar uma ferramenta para polarizar debates em torno do papel das escolas religiosas na sociedade francesa.
Tais dúvidas sobre a imparcialidade do documento foram reforçadas pelo fato de Vannier já ter sido autor, no ano passado, de um relatório altamente crítico sobre o financiamento de escolas católicas.
Patrick Hetzel, ex-ministro do Ensino Superior do país, também acusou o parlamentar de usar o inquérito para perseguir uma agenda ideológica que visa minar a lei Debré de 1959, que garante apoio estatal a escolas privadas sob contrato.
"Com ele, a LFI quer reacender a guerra escolar", disse Hetzel ao Le Figaro, referindo-se às tensões históricas entre a educação laica e a religiosa na França.
Embora Spillebout tenha insistido que seu trabalho não foi guiado por dogmas, mas pelo testemunho de vítimas e pelo desejo de garantir que nenhuma criança, em qualquer tipo de escola, fique desprotegida, a percepção de atenção desproporcional às instituições católicas continua sendo um ponto de discórdia.
O governo francês está querendo ampliar o controle sobre a educação. Em 2021, o governo Macron foi criticado por propor a proibição do ensino domiciliar, sob a desculpa de combater a radicalização islâmica. Embora tenha sido suavizado antes da aprovação, o projeto de lei refletiu uma mudança em direção a um maior controle estatal sobre a educação.
A publicação do relatório também coincidiu com o foco renovado na escola Stanislas, de Paris, prestigiosa instituição católica sob investigação por suposta não conformidade com o currículo nacional de educação sexual, por "desvio homofóbico e sexista" e por seus novos cursos de cultura cristã.
Embora uma inspeção de 2023 não tenha confirmado discriminação sistêmica, o Ministério da Educação da França sinalizou um monitoramento mais rigoroso.





