A Santa Sé apoia um relatório que pede reformas para aliviar a dívida que afeta bilhões de pessoas em países em desenvolvimento.

O documento Relatório do Jubileu: um Projeto para Enfrentar as Crises da Dívida e do Desenvolvimento e Criar as Bases Financeiras para uma Economia Global Sustentável e Centrada nas Pessoas, foi apresentado na Pontifícia Academia de Ciências Sociais, no Vaticano, na última sexta-feira (20) como uma das principais iniciativas do Ano Jubilar da Esperança 2025.

Com o apoio do papa Leão XIV, a publicação é um projeto da Comissão Jubileu, criada pelo papa Francisco em junho do ano passado com o objetivo de encontrar uma maneira de implementar a reestruturação da dívida soberana com base em princípios éticos. A comissão teve a participação de 30 especialistas econômicos internacionais, como Joseph Stiglitz, que ganhou o prêmio Nobel de Economia em 2001; e Martín Guzmán, ministro da Economia da Argentina, de 2019 a 2022, no governo do presidente Alberto Fernández, do Partido Justicialista, peronista.

R$ 533,7 trilhões em dívida pública global

Segundo dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU), a dívida pública global atingiu US$ 97 trilhões (cerca de R$ 533,7 trilhões) em 2023, um aumento de US$ 5,6 trilhões (cerca de R$ 30,8 trilhões) em comparação com 2022.

O documento diz que cerca de 50 países em desenvolvimento já destinam cerca de 10% de suas receitas fiscais ao pagamento de juros, dinâmica que desvia recursos financeiros de setores vitais como saúde, educação e resiliência climática.

“A crise da dívida que está sufocando o sistema financeiro global também está alimentando uma crise de desenvolvimento”, diz o relatório.

O documentário propõe medidas e recomendações para transformar o sistema financeiro internacional num instrumento de justiça e sustentabilidade. Entre elas, há a criação de um mecanismo internacional de falência para países soberanos, semelhante ao que existe para empresas privadas; o fim dos resgates governamentais de investidores privados; e a concessão de empréstimos-ponte e apoio financeiro de curto prazo para países em crise.

O legado de são João Paulo II

A iniciativa faz parte do espírito do ano jubilar, tradicionalmente associado à misericórdia e ao perdão de dívidas. Na bula papal Spes non confundit, publicada no ano passado, o papa Francisco pediu expressamente aos governos que demonstrem clemência por meio de medidas extraordinárias, como o perdão da dívida externa dos países pobres.

O relatório da última sexta-feira resgata o espírito do Jubileu do Ano 2000, quando, em 1997, o papa são João Paulo II iniciou um movimento global, baseado na doutrina social da Igreja, que pedia o perdão da dívida dos países mais pobres. Esse apelo deu origem à campanha "Jubileu 2000", que coletou milhões de assinaturas em todo o mundo e mobilizou comunidades religiosas de todas as tradições. Graças a esse movimento, cerca de US$ 100 bilhões (cerca de R$ 550,2 bilhões) em dívidas foram perdoados.

“As finanças globais devem servir às pessoas e ao planeta — não punir os mais pobres para proteger os lucros”, conclui o relatório.

Apresentação na Pontifícia Academia das Ciências Sociais

O relatório foi apresentado na última sexta-feira na Pontifícia Academia de Ciências Sociais, num dia dedicado a discussões sobre como as reformas nos sistemas financeiros internacionais poderiam avançar em direção a um sistema verdadeiramente centrado nas pessoas.

Um economista vencedor do Prêmio Nobel, Stiglitz, professor da Universidade Columbia e membro honorário da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, fez um forte apelo para “coibir os abusos de grandes credores privados”.

“Normalmente, falamos de responsabilidade compartilhada entre credores e devedores, mas eu diria que há uma responsabilidade maior por parte dos credores”, disse Stiglitz.

“Essas são transações voluntárias”, disse também o economista. “Ninguém obrigou os credores a emprestar dinheiro, e eles deveriam ser os especialistas em análise de risco”.

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Redução das taxas de juros com bancos multilaterais de desenvolvimento

O economista criticou particularmente o BlackRock e outros grandes fundos, que, segundo ele, incentivam um tipo de empréstimo de alto risco que termina em crises.

Por isso, ele defendeu o fortalecimento do papel dos bancos multilaterais de desenvolvimento, que podem dar empréstimos a taxas mais baixas, o que “ajudaria a reduzir as taxas de juros e tornar a dívida sustentável”.

No âmbito do encontro internacional sobre dívida, justiça social e desenvolvimento realizado na sede da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, Alfonso Apicella, representante da Cáritas Internacional, Alfonso Apicella, pediu que o debate técnico sobre a dívida nunca perca de vista as pessoas mais afetadas.

"Estamos aqui para falar sobre crescimento sustentável, mas a verdadeira questão é: crescimento sustentável para quem?”, disse Stiglitz. “Essa é a pergunta que as comunidades nos fazem repetidamente quando lançamos campanhas como a Transforme Dívida em Esperança".

Falando em nome da rede global de 162 organizações que compõem a Cáritas, Apicella enfatizou que o discurso sobre "sustentabilidade" corre o risco de se tornar um slogan vazio se seu foco inclusivo não for explicitado.

"Temos que falar sobre crescimento sustentável para todos, não só para alguns”, disse ele.

“E devemos sempre nos lembrar disso, especialmente quando falamos de uma perspectiva técnica”, disse também o especialista. “Porque por trás de cada número há pessoas que vivenciam essas realidades em primeira mão".

Uma mudança na narrativa sobre a dívida

Apicella também enfatizou a necessidade de mudar a narrativa sobre a dívida.

“Devemos enquadrar essa luta pela justiça da dívida como uma situação vantajosa para todos”, disse ele. “Se trabalharmos pelos pobres, os formuladores de políticas devem entender que eles também serão beneficiados”.

O professor Kevin Gallagher, diretor do Centro de Política de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston, destacou organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) que forçaram os países pobres a “abrir prematuramente suas contas de capital”.

No entanto, ele também falou sobre a responsabilidade interna de muitos países em desenvolvimento que, como diz o relatório, “tomaram empréstimos em excesso e investiram muito pouco”.

Gallagher disse que, embora “o alívio da dívida seja essencial”, também é necessário propor medidas de implementação viáveis ​​dentro do atual ambiente internacional que transformem o sistema financeiro.

“Já aprendemos com o último perdão de dívidas do jubileu, em 2009, que o alívio da dívida sem reformas na arquitetura financeira internacional só nos levará a repetir todo esse processo”, disse o professor.

“É uma pena que estejamos nessa situação novamente”, disse também ele. “Não repitamos os mesmos erros”.