O papa Francisco teve o tradicional encontro com o Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé no início do ano, após as festas de Natal, no qual fez um discurso centrado na defesa da paz e na denúncia de situações que a ameaçam:

Excelências, Senhoras e Senhores,

Com prazer, vos recebo esta manhã para vos saudar pessoalmente e formular bons votos para o novo ano. De modo particular agradeço a Sua Excelência o Embaixador George Poulides, Decano do Corpo Diplomático, pelas suas amáveis palavras que bem exprimem as preocupações da comunidade internacional no início dum ano que queríamos fosse de paz e, em vez disso, abre-se marcado por conflitos e divisões.

Aproveito a ocasião também para vos agradecer o empenho colocado na promoção das relações entre a Santa Sé e os vossos países. No ano passado, a nossa «família diplomática» aumentou ainda mais graças ao estabelecimento das relações diplomáticas com o Sultanato de Omã e a nomeação do primeiro Embaixador, aqui presente.

Ao mesmo tempo, desejo recordar que a Santa Sé procedeu à nomeação dum Representante Pontifício residente em Ha Noi, depois de se ter concluído com o Vietname, em julho passado, o relativo Acordo sobre o estatuto do Representante Pontifício. Fê-lo para continuarmos juntos o caminho percorrido até aqui, sob o signo do respeito mútuo e da confiança, graças às relações frequentes a nível institucional e à colaboração da Igreja local.

Em 2023, também se ratificou o Acordo Suplementar ao Acordo sobre as relações mútuas entre a Santa Sé e o Cazaquistão, de 24 de setembro de 1998, que facilita a presença e a colocação dos agentes pastorais no país; além disso, tivemos ocasião de celebrar quatro aniversários significativos de relações diplomáticas: o centenário com a República do Panamá, o septuagésimo com a República Islâmica do Irão, o sexagésimo com a República da Coreia e o quinquagésimo com a Austrália.

Prezados Embaixadores,

Há uma palavra que ressoa particularmente nas duas festas cristãs principais. Ouvimo-la no canto dos anjos que, durante a noite, anunciam o nascimento do Salvador e recebemo-la da voz de Jesus ressuscitado: é a palavra «paz». Esta é, primariamente, um dom de Deus: é Ele que nos deixa a sua paz (cf. Jo 14, 27); mas ao mesmo tempo é uma responsabilidade nossa: «felizes os pacificadores» (Mt 5, 9). Trabalhar pela paz. Uma palavra tão frágil, que, ao mesmo tempo, se revela exigente e densa de significado. A ela quero dedicar a nossa reflexão de hoje, num momento histórico em que a mesma está cada vez mais ameaçada, fragilizada e parcialmente perdida. Aliás é dever da Santa Sé, no seio da comunidade internacional, ser voz profética e apelo à consciência.

Na vigília do Natal de 1944, o meu predecessor Pio XII pronunciou uma célebre Radiomensagem aos povos do mundo inteiro. A II Guerra Mundial aproximava-se do fim, após mais de cinco anos de conflito, e a humanidade (como disse o Pontífice) sentia «uma vontade cada vez mais clara e firme: fazer desta guerra mundial, desta convulsão universal, o ponto a partir do qual começa uma nova era de renovação profunda». Oitenta anos depois, o impulso para tal «renovação profunda» parece ter-se esgotado, e o mundo é atravessado por um número crescente de conflitos que estão lentamente a transformar aquela que tenho repetidamente definido como «terceira guerra mundial aos pedaços» num verdadeiro conflito global.

Aqui não posso deixar de reiterar a minha preocupação com o que está a acontecer na Palestina e em Israel. Todos ficámos chocados com o ataque terrorista de 7 de outubro passado contra a população em Israel, onde foram feridas, torturadas e mortas de forma atroz tantas pessoas inocentes e muitas outras foram feitas reféns. Repito a minha condenação de tal ação e de toda a forma de terrorismo e extremismo: assim não se resolvem as questões entre os povos, antes pelo contrário tornam-se mais difíceis, causando sofrimento a todos. De facto, aquilo provocou uma forte resposta militar israelita em Gaza, que levou à morte de dezenas de milhares de palestinianos, na maioria civis, entre os quais muitas crianças, adolescentes e jovens, e causou uma situação humanitária gravíssima com sofrimentos inimagináveis.

Renovo o meu apelo a todas as partes envolvidas para um cessar-fogo em todas as frentes, incluindo o Líbano, e para a libertação imediata de todos os reféns em Gaza. Peço que a população palestiniana possa receber as ajudas humanitárias e que os hospitais, as escolas e os locais de culto tenham toda a proteção necessária.

Espero que a comunidade internacional avance, com determinação, na solução de dois Estados, um israelita e um palestiniano, bem como de um estatuto especial, garantido internacionalmente, para a Cidade de Jerusalém, para que israelitas e palestinianos possam finalmente viver em paz e segurança.

O conflito ativo em Gaza desestabiliza ainda mais uma região frágil e carregada de tensões. Em particular, não se pode esquecer o povo sírio, que vive na instabilidade económica e política, agravada pelo terramoto de fevereiro passado. A comunidade internacional incentive as Partes envolvidas a empreenderem um diálogo construtivo e sério e a procurarem novas soluções para que o povo sírio deixe de sofrer por causa das sanções internacionais. Além disso, exprimo a minha amargura pelos milhões de refugiados sírios que ainda se encontram nos países vizinhos, como a Jordânia e o Líbano.

Penso de modo particular neste último, manifestando preocupação pela situação social e económica em que se encontra o querido povo libanês, e espero que o impasse institucional, que está a deixá-lo ainda mais de rasto, seja resolvido e que o País dos Cedros tenha em breve um Presidente.

Sempre no continente asiático, desejo ainda chamar a atenção da comunidade internacional para o Myanmar, pedindo que se façam todos os esforços para dar esperança àquela terra e um futuro digno às gerações jovens, sem esquecer a emergência humanitária que ainda afeta os Rohingya.

A par destas situações complexas, não faltam também sinais de esperança, como pude experimentar durante a minha viagem à Mongólia, a cujas Autoridades renovo a minha gratidão pelo acolhimento que me dispensaram. Do mesmo modo, desejo agradecer às Autoridades húngaras pela sua hospitalidade durante a minha visita ao país no passado mês de abril. Foi uma viagem ao coração da Europa, onde se respira história e cultura e onde experimentei o calor de tantas pessoas, mas onde se sente também a proximidade dum conflito que não considerávamos possível na Europa do século XXI.

Infelizmente, depois de quase dois anos de guerra em grande escala da Federação Russa contra a Ucrânia, a tão desejada paz ainda não conseguiu encontrar lugar nas mentes e nos corações, não obstante as numerosíssimas vítimas e o rasto enorme de destruição. Não se pode deixar continuar um conflito, que se está gangrenando cada vez mais, com dano para milhões de pessoas, mas é preciso que se ponha termo à tragédia em curso através da negociação, no respeito pelo direito internacional.

Exprimo preocupação também com a situação tensa no Sul do Cáucaso entre a Arménia e o Azerbaijão, exortando as Partes a chegarem à assinatura dum Tratado de paz. É urgente encontrar uma solução para a dramática situação humanitária dos habitantes daquela região, favorecer o regresso dos deslocados às suas casas de forma legal e segura, e respeitar os locais de culto das diversas confissões religiosas lá presentes. Estas medidas poderão contribuir para a criação dum clima de confiança entre os dois países tendo em vista a tão suspirada paz.

Se agora voltarmos o olhar para a África, temos diante dos olhos o sofrimento de milhões de pessoas devido às múltiplas crises humanitárias em que versam vários países subsaarianos, por causa do terrorismo internacional, dos complexos problemas sociopolíticos e dos efeitos devastadores provocados pela mudança climática, a que se vêm juntar as consequências dos golpes militares de Estado ocorridos em alguns países e de certos processos eleitorais caraterizados por corrupção, intimidações e violência.

Ao mesmo tempo, renovo o apelo a um sério empenho por parte de todos os sujeitos envolvidos na aplicação do Acordo de Pretória de novembro de 2022, que pôs fim aos combates no Tigré, e na procura de soluções pacíficas para as tensões e violências que assolam a Etiópia, bem como para o diálogo, a paz e a estabilidade entre os países do Corno de África.

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Quero recordar também os acontecimentos dramáticos no Sudão, onde infelizmente, depois de meses de guerra civil, ainda não se avista uma saída; bem como as situações dos deslocados nos Camarões, em Moçambique, na República Democrática do Congo e no Sudão do Sul. Estes dois últimos países pude visitá-los no início do ano passado, como um sinal de proximidade às suas atribuladas populações, embora em contextos e situações diferentes. Agradeço sinceramente às Autoridades de ambos os países o seu empenho organizador e o acolhimento que me reservaram. Aliás a viagem ao Sudão do Sul teve também um caráter ecuménico, tendo sido acompanhado pelo Arcebispo de Cantuária e pelo Moderador da Assembleia Geral da Igreja de Escócia, como testemunho do empenho partilhado pelas nossas Comunidades eclesiais em prol da paz e da reconciliação.

Embora não existam guerras declaradas nas Américas, todavia entre alguns países, como por exemplo entre a Venezuela e a Guiana, verificam-se fortes tensões, enquanto noutros, como no Peru, vemos fenômenos de polarização que comprometem a harmonia social e enfraquecem as instituições democráticas.

Suscita preocupação ainda a situação na Nicarágua: uma crise que se prolonga no tempo com amargas consequências para toda a sociedade nicaraguense, particularmente para a Igreja Católica. A Santa Sé não cessa de convidar a um diálogo diplomático respeitoso pelo bem dos católicos e de toda a população.

Excelências, Senhoras e Senhores,

Por trás deste quadro, que quis delinear brevemente e sem pretensões de ser exaustivo, encontra-se um mundo cada vez mais dilacerado, mas sobretudo há milhões de pessoas – homens, mulheres, pais, mães, crianças – cujos rostos, na sua maioria, nos são desconhecidos e que muitas vezes esquecemos.

Por outro lado, as guerras hodiernas já não se desenrolam apenas em campos de batalha delimitados, nem dizem respeito somente aos soldados. Num contexto em que parece já não ser observada a distinção entre objetivos militares e civis, não há conflito que não acabe de alguma forma por atingir indiscriminadamente a população civil. Prova evidente disto mesmo são os acontecimentos na Ucrânia e em Gaza. Não devemos esquecer que as violações graves do direito internacional humanitário são crimes de guerra, e que não basta assinalá-las, mas é preciso antecipar-se-lhes. Por isso há necessidade dum maior empenho da comunidade internacional pela salvaguarda e implementação do direito humanitário, que parece ser o único caminho para a tutela da dignidade humana em situações de conflito bélico.

No início deste ano, ressoa muito atual a exortação do Concílio Vaticano II, na  Gaudium et spes: «Existem diversas convenções internacionais relativas à guerra, assinadas por bastantes nações e que visam tornar menos desumanas as atividades bélicas e suas consequências (…). Estes acordos devem ser observados. Mais ainda, todos, sobretudo os poderes públicos e os peritos nestas matérias, têm obrigação de procurar aperfeiçoá-los quanto lhes for possível, de maneira a que sejam capazes de melhor e mais eficazmente refrearem a crueldade das guerras». 

Talvez não nos apercebamos de que as vítimas civis não são «danos colaterais». São homens e mulheres com nomes e apelidos que perdem a vida. São crianças que ficam órfãs e privadas do futuro. São pessoas que padecem a fome, a sede e o frio ou que ficam mutiladas por causa da potência das armas modernas. Se conseguíssemos fixar cada um deles nos olhos, chamá-los por nome e evocar a sua história pessoal, veríamos a guerra como ela é: nada mais que uma enorme tragédia e «um massacre inútil», que fere a dignidade de toda a pessoa nesta terra.

Entretanto, as guerras podem continuar devido à enorme disponibilidade de armas. É necessário procurar uma política de desarmamento, pois é ilusório pensar que os armamentos possam ter um valor dissuasor. Antes, é verdade o contrário: a disponibilidade de armas incentiva a sua utilização e incrementa a sua produção. As armas criam desconfiança e desviam recursos. Quantas vidas se poderiam salvar com os recursos atualmente destinados aos armamentos? Não seria melhor investi-los a favor duma verdadeira segurança global? Os desafios do nosso tempo transcendem as fronteiras, como demonstram as várias crises – alimentar, ambiental, económica e sanitária – que têm caraterizado o início do século. Reafirmo aqui a proposta de constituir um Fundo mundial para eliminar finalmente a fome e promover um desenvolvimento sustentável de todo o planeta.

Entre as ameaças causadas por tais instrumentos de morte, não posso deixar de mencionar a provocada pelos arsenais nucleares e pelo desenvolvimento de armas cada vez mais sofisticadas e destruidoras. Reitero mais uma vez a imoralidade de fabricar e possuir armas nucleares. A propósito, faço votos de que se possa chegar o mais rapidamente possível à retoma das negociações para o início do Plano de Ação Conjunto Global, mais conhecido como «Acordo sobre o Nuclear Iraniano», para garantir a todos um futuro mais seguro.

Todavia, para se chegar à paz, não basta limitar-se a eliminar os instrumentos bélicos, é necessário extirpar pela raiz as causas das guerras, sendo a primeira delas a fome, um flagelo que ainda agora atinge regiões inteiras da Terra, enquanto noutras se verifica enorme desperdício de alimentos. Depois, temos a exploração dos recursos naturais, que enriquece a poucos, deixando na miséria e na pobreza populações inteiras que seriam os beneficiários naturais de tais recursos. Ligada àquela está a exploração das pessoas, obrigadas a trabalhos mal remunerados e sem reais perspectivas de crescimento profissional.

Entre as causas de conflitos, estão também as catástrofes naturais e ambientais. Certamente há desastres que a mão do homem não pode controlar. Penso nos recentes terramotos em Marrocos e na China, que causaram centenas de vítimas, bem como naquele que atingiu duramente a Turquia e parte da Síria, deixando atrás dele um rasto tremendo de morte e destruição. Penso ainda na inundação que atingiu Derna, na Líbia, destruindo efetivamente a cidade devido também à concomitante derrocada de duas barragens. 

Mas existem os desastres que são imputáveis também à ação ou à negligência do homem e que contribuem gravemente para a crise climática em curso, como, por exemplo, a desflorestação da Amazónia, que é o «pulmão verde» da Terra.

A crise climática e ambiental foi objeto da  XXVIII Conferência dos Estados-Parte na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP28), realizada no Dubai no mês passado, na qual não pude, com pena minha, participar pessoalmente. Teve início em concomitância com o anúncio da Organização Meteorológica Mundial de que 2023 foi o ano mais quente de que há registo nos 174 anos anteriores. A crise climática exige uma resposta cada vez mais urgente e requer o pleno envolvimento de todos, bem como da comunidade internacional inteira. 

A adoção do documento final na COP28 constitui um passo encorajador e revela que, perante as inúmeras crises que estamos a viver, há a possibilidade de revitalizar o multilateralismo através da gestão da questão climática global, num mundo onde os problemas ambientais, sociais e políticos estão intimamente conexos. Na COP28, evidenciou-se claramente como a década em curso seja a década decisiva para enfrentar a mudança climática. O cuidado da criação e a paz «são as questões mais urgentes e estão interligadas». Almejo, pois, que quanto foi estabelecido no Dubai leve a «uma decidida aceleração da transição ecológica, através de formas que (…) encontrem realização em quatro campos: a eficiência energética, as fontes renováveis, a eliminação dos combustíveis fósseis, a educação para estilos de vida menos dependentes destes últimos».

As guerras, a pobreza, o abuso da nossa casa comum e a exploração contínua dos seus recursos, que estão na raiz de desastres naturais, são causas que impelem também milhares de pessoas a abandonar a sua terra à procura dum futuro de paz e segurança. Na sua viagem, arriscam a própria vida em percursos perigosos, como no deserto do Saara, na floresta de Darién, na fronteira entre Colômbia e Panamá, na América Central, no norte do México na fronteira com os Estados Unidos, e sobretudo no Mar Mediterrâneo.

Infelizmente este tornou-se no último decénio um grande cemitério, com tragédias que continuam a suceder-se, também devido a traficantes de seres humanos sem escrúpulos. Entre as inúmeras vítimas – não o esqueçamos –, há muitos menores não acompanhados.

O Mediterrâneo deveria, antes, ser um  laboratório de paz, um «lugar onde países e realidades diferentes se encontrem com base na humanidade que todos partilhamos», [8] como tive oportunidade de sublinhar em Marselha, durante a minha viagem (estou agradecido por ela aos organizadores e às Autoridades francesas) por ocasião dos  Rencontres Méditerranéennes. Perante esta imensa tragédia, facilmente acabamos por fechar o nosso coração, entrincheirando-nos por trás do medo duma «invasão». Esquecemo-nos facilmente que temos diante de nós pessoas com rostos e nomes e passa-nos despercebida a vocação própria do  Mare Nostrum, que não é a de ser um túmulo, mas um lugar de encontro e enriquecimento recíproco entre pessoas, povos e culturas. Isto não impede que a migração deva ser regulamentada para acolher, promover, acompanhar e integrar os migrantes, no respeito pela cultura, a sensibilidade e a segurança das populações que se ocupam do acolhimento e da integração. Por outro lado, é necessário também recordar o direito de poder permanecer na própria pátria e a consequente necessidade de criar as condições para que o mesmo possa ser efetivamente exercido.

Diante deste desafio, nenhum país pode ser deixado sozinho, nem ninguém pode pensar em enfrentar isoladamente a questão através de legislações mais restritivas e repressivas, às vezes aprovadas sob a pressão do medo ou à busca de consensos eleitorais. Por isso, saúdo com satisfação o empenho da União Europeia de procurar uma solução comum através da adoção do novo Pacto sobre a Migração e o Asilo, embora assinalando algumas limitações, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento do direito de asilo e ao perigo de detenções arbitrárias.

Prezados Embaixadores,

O caminho da paz exige o respeito pela vida, por toda a vida humana, a começar pela do nascituro no ventre da mãe, que não pode ser suprimida nem se pode tornar objeto de tráficos ilícitos. A este respeito, considero deprimente a prática da chamada barriga de aluguer, que lesa gravemente a dignidade da mulher e do filho. Baseia-se na exploração duma situação de necessidade material da mãe. Um filho é sempre um dom, e nunca o objeto dum contrato. Almejo, pois, um esforço da comunidade internacional para proibir tal prática a nível universal. Em cada momento da sua existência, a vida humana deve ser preservada e tutelada, pelo que é com pesar que constato, especialmente no Ocidente, a persistente difusão duma cultura da morte que, em nome duma fingida piedade, descarta crianças, idosos e doentes.

O caminho da paz exige o respeito pelos direitos humanos, nos termos da formulação simples, mas clara, contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo 75º aniversário celebrámos recentemente. Trata-se de princípios racionalmente evidentes e comumente aceites. Infelizmente, as tentativas realizadas nos últimos decénios para introduzir novos direitos, não plenamente sólidos como os definidos originalmente e nem sempre aceitáveis, ocasionaram colonizações ideológicas, entre os quais tem um papel central a teoria do gender, extremamente perigosa porque cancela as diferenças com a pretensão de tornar todos iguais. Tais colonizações ideológicas provocam feridas e divisões entre os Estados, em vez de favorecer a edificação da paz.

Entretanto, o diálogo deve ser a alma da comunidade internacional. A conjuntura atual é causada também pelo enfraquecimento das estruturas de diplomacia multilateral que viram a luz depois da II Guerra Mundial. Organismos criados para favorecer a segurança, a paz e a cooperação já não conseguem unir todos os seus membros à volta duma mesa. Há o risco duma «monadologia» e da fragmentação em «clubes» que permitem a entrada só a Estados considerados ideologicamente próximos. Mesmo os organismos até agora eficientes, concentrados no bem comum e em questões técnicas, correm o risco de paralisia por causa de polarizações ideológicas, sendo instrumentalizados por alguns Estados.

Para relançar um compromisso comum ao serviço da paz, é preciso recuperar as raízes, o espírito e os valores que deram origem a esses organismos, embora tendo em conta a mudança do contexto e tendo em consideração quantos não se sentem adequadamente representados pelas estruturas das organizações internacionais.

É certo que dialogar requer paciência, perseverança e capacidade de escuta, mas quando se trabalha na tentativa sincera de pôr fim às discórdias, podem-se alcançar resultados significativos. Penso, por exemplo, no Acordo de Belfast, conhecido também como Acordo da Sexta-Feira Santa, assinado pelos governos britânico e irlandês, cujo 25º aniversário foi comemorado o ano passado. Tendo posto fim a trinta anos dum violento conflito, pode ser tomado como exemplo para solicitar e estimular as Autoridades a crerem nos processos de paz, não obstante as dificuldades e os sacrifícios que exigem.

O caminho da paz passa pelo diálogo político e social, uma vez que está na base da convivência civil duma comunidade política moderna. O ano de 2024 verá a convocação de eleições em muitos Estados. As eleições são um momento fundamental na vida dum país, pois permitem a todos os cidadãos escolher responsavelmente os seus governantes. Ressoam hoje, mais atuais do que nunca, as palavras de Pio XII: «exprimir a própria opinião sobre os deveres e os sacrifícios que lhe são impostos; não ser obrigado a obedecer sem ter sido ouvido: são dois direitos do cidadão, que encontram a sua expressão na democracia, como o próprio nome indica. Da solidez, da harmonia, dos bons frutos deste contacto entre os cidadãos e o governo do Estado, pode-se reconhecer se uma democracia é verdadeiramente sã e equilibrada e qual a sua força para a vida e o desenvolvimento». 

Por isso é importante que os cidadãos, especialmente as gerações jovens que são chamadas às urnas pela primeira vez, sintam como sua principal responsabilidade contribuir para a edificação do bem comum, através duma participação livre e consciente no voto. Por outro lado, a política deve ser sempre entendida, não como apropriação do poder, mas como «forma mais elevada de caridade» e, por conseguinte, do serviço ao próximo dentro duma comunidade local e nacional.

O caminho da paz passa ainda através do diálogo inter-religioso, que exige, antes de mais nada, a tutela da liberdade religiosa e o respeito das minorias. Custa, por exemplo, constatar que cresce o número de países que adotam modelos de controlo centralizado sobre a liberdade de religião, com o uso maciço da tecnologia. Noutros lugares, as comunidades religiosas minoritárias encontram-se frequentemente numa situação cada vez mais dramática. Nalguns casos, correm o risco de extinção, devido a uma combinação de ações terroristas, ataques ao património cultural e medidas mais subtis, como a proliferação das leis anticonversão, a manipulação das regras eleitorais e as restrições financeiras.

Preocupa, particularmente, o aumento dos atos de antissemitismo verificados nos últimos meses; reitero mais uma vez que este flagelo deve ser erradicado da sociedade, sobretudo através da educação para a fraternidade e o acolhimento do outro.

De igual modo, preocupa o crescimento da perseguição e da discriminação contra os cristãos, sobretudo nos últimos dez anos. Embora de forma incruenta mas socialmente relevante, tem a ver, não raro, com fenómenos de lenta marginalização e exclusão da vida política e social e do exercício de certas profissões, que acontecem mesmo em terras tradicionalmente cristãs. Globalmente existem no mundo mais de 360 milhões de cristãos que sofrem um alto nível de perseguição e discriminação por causa da sua fé, e cresce sempre mais o número daqueles que são forçados a fugir das suas terras de origem.

Por fim, o caminho da paz passa pela educação, que é o principal investimento no futuro e nas gerações jovens. Permanece viva em mim a recordação da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal no passado mês de agosto. Ao mesmo tempo que volto a agradecer às Autoridades portuguesas, civis e religiosas, o empenho posto na organização, conservo no coração aquele encontro com mais de um milhão de jovens, provenientes de todas as partes do mundo, cheios de entusiasmo e vontade de viver. A sua presença foi um grande hino à paz e o testemunho de que «a unidade é superior ao conflito» e que é «possível desenvolver uma comunhão nas diferenças».

Nos tempos que correm, parte do desafio educacional tem a ver com uma utilização ética das novas tecnologias. Estas podem tornar-se facilmente instrumentos de divisão ou de difusão de mentiras, as chamadas  fake news, mas são também meio de encontro, intercâmbios recíprocos e um importante veículo de paz. «Os progressos notáveis das novas tecnologias da informação, sobretudo na esfera digital, apresentam oportunidades entusiasmantes mas também graves riscos, com sérias implicações na prossecução da justiça e da harmonia entre os povos». Por este motivo, considerei importante dedicar a anual Mensagem para o Dia Mundial da Paz à inteligência artificial, que é um dos desafios mais importantes dos próximos anos. 

É indispensável que o progresso tecnológico aconteça de maneira ética e responsável, preservando a centralidade da pessoa humana, cuja contribuição não pode nem poderá nunca ser substituída por um algoritmo ou por uma máquina. «A dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade que nos une como membros da única família humana devem estar na base do desenvolvimento de novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar antes da sua utilização, para que o progresso digital possa verificar-se no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz». 

Torna-se, pois, necessária uma reflexão atenta a todos os níveis, nacional e internacional, político e social, para que o desenvolvimento da inteligência artificial permaneça ao serviço do homem, favorecendo e não dificultando, especialmente nos jovens, as relações interpessoais, um sadio espírito de fraternidade e um pensamento crítico capaz de discernimento.

Nesta perspectiva, adquirem relevância particular as duas Conferências Diplomáticas da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, que terão lugar neste ano de 2024 e nas quais a Santa Sé participará como Estado-membro. Para a Santa Sé, a propriedade intelectual está essencialmente orientada para a promoção do bem comum e não pode desvincular-se das limitações de natureza ética, dando origem a situações de injustiça e de exploração indevida. Depois há que prestar especial atenção à tutela do património genético humano, impedindo que se realizem práticas contrárias à dignidade humana, como a possibilidade de verbetar material biológico humano e a clonagem de seres humanos.

Excelências, Senhoras e Senhores,

Neste ano, a Igreja prepara-se para o Jubileu que terá início no próximo Natal. Agradeço de modo particular às Autoridades italianas, nacionais e locais, pelos esforços que estão a fazer para preparar a cidade de Roma a fim de acolher os numerosos peregrinos, permitindo-lhes colher frutos espirituais do caminho jubilar.

Talvez hoje, mais do que nunca, tenhamos necessidade do ano jubilar. Perante tantos sofrimentos que provocam desespero não só nas pessoas diretamente atingidas, mas em todas as nossas sociedades; frente aos nossos jovens, que, em vez de sonhar um futuro melhor, com frequência se sentem impotentes e frustrados; e face à obscuridade deste mundo que, em vez de se afastar, parece crescer, o Jubileu é o anúncio de que Deus nunca abandona o seu povo e mantém sempre abertas as portas do seu Reino. Na tradição judaico-cristã, o Jubileu é um tempo de graça para experimentar a misericórdia de Deus e o dom da sua paz. É um tempo de justiça, em que os pecados são perdoados, a reconciliação permite superar a injustiça e a terra repousa. Pode ser para todos – cristãos e não-cristãos – o tempo para quebrar as espadas e delas fazer arados; o tempo em que uma nação não mais levantará a espada contra outra, nem se aprenderá mais a arte da guerra (cf. Is 2, 4).

Queridos irmãos e irmãs, são estes os votos que formulo de todo o coração para cada um de vós, prezados Embaixadores, para as vossas famílias, para os colaboradores e para os povos que representais. Obrigado e um ano feliz para todos!