Em meio à confusão gerada pela orientação da Santa Sé sobre bênçãos a uniões homossexuais, o responsável pelo documento criticou os que defendem a mais liberal interpretação: os bispos alemães.

O prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé da Santa Sé e conselheiro teológico do papa Francisco, o cardeal Victor Manuel Fernández, descreveu a declaração Fiducia supplicans como uma “resposta clara” aos planos alemães de formalizar bênçãos litúrgicas a uniões homossexuais, o que é explicitamente proibido pela orientação de 18 de dezembro.

“Não é a resposta que as pessoas de dois ou três países gostariam de ter”, disse Fernández sobre Fiducia supplicans em entrevista ao jornal católico alemão Die Tagespost na quarta-feira (3). “Pelo contrário, é uma resposta pastoral que todos poderiam aceitar, ainda que com dificuldade”.

A orientação da Santa Sé aceita “bênçãos espontâneas” a uniões homossexuais e aqueles em “relações irregulares”, mas “sem validar oficialmente o seu estatuto ou alterar de qualquer forma a doutrina perene da Igreja sobre o casamento”. Para evitar confusão, a Fiducia supplicans proíbe a promoção de bênçãos formalizadas e o uso de quaisquer roupas ou símbolos que possam dar a impressão de uma bênção conjugal.

Desde sua publicação, em 18 de dezemrbo, Fiducia supplicans tem recebido interpretações contraditórias. Bispos em países da África e da Europa proibiram as bênçãos propostas nas suas jurisdições, enquanto bispos em países como a Alemanha caracterizaram o documento como um apoio a seu esforço pela mudança.

Os membros do Caminho Sinodal Alemão, processo de discussão entre a Conferência Episcopal Alemã (DBK, na sigla em alemão) e o Comitê Central de Católicos Alemães (ZdK, na sigla em alemão), que reúne basicamente funcionários leigos da Igreja na Alemanha, aprovaram publicação de textos rituais formalizados para bênçãos litúrgicas a uniões homossexuais numa assembleia de março de 2023 em Frankfurt.

Desde então, vários bispos alemães autorizaram a bênção pública de uniões homossexuais nas suas dioceses.

Depois da publicação de Fiducia supplicans, a vice-presidente do ZdK, Birgit Mock, disse que a Igreja na Alemanha não abandonaria os planos de desenvolver um texto formal de bênçãos a uniões homossexuais, apesar da proibição.

“Ouvindo algumas reflexões feitas no contexto do Caminho Sinodal Alemão, às vezes parece que uma parte do mundo se sente particularmente ‘iluminada’ para compreender o que os outros pobres miseráveis ​​são incapazes de compreender porque são fechados ou medievais, e então a parte 'iluminada' acredita ingenuamente que, graças a isso, toda a Igreja universal é reformada e liberta dos velhos esquemas”, disse Fernández ao Die Tagespost sobre a Igreja na Alemanha.

O chefe do Dicastério para a Doutrina da Fé disse que alguns líderes católicos alemães não apreciam o esforço do papa Francisco para manter a unidade da Igreja.

“Alguns bispos alemães parecem não compreender que um papa liberal ou iluminista não poderia garantir esta comunhão entre alemães, africanos, asiáticos, latino-americanos, russos, e assim por diante”, disse Fernández. “Um papa ‘pastoral’, por outro lado, é capaz de fazer isso”, porque preserva a doutrina da Igreja, ao mesmo tempo que lhe permite “entrar em diálogo com a vida concreta, muitas vezes tão ferida, dos fiéis”.

Fernández também atacou diretamente a alegação do Caminho Sinodal de tentar mudar radicalmente a doutrina e a prática da Igreja relacionadas à sexualidade e à governança pela necessidade de tratar das causas sistêmicas da crise dos abusos sexuais.

“Acreditar que numa parte do mundo a crise causada pelo abuso sexual possa ser resolvida por decisões contrárias à doutrina da Igreja universal não é, na minha opinião, sequer razoavelmente justificado”, disse Fernández, observando que “algumas comunidades cristãs não-católicas” com diferentes entendimentos sobre sexualidade e autoridade também são atormentadas por problemas relacionados ao abuso sexual”.

A entrevista na quarta-feira (3) não foi a primeira vez que Fernández abordou o impacto da Fiducia supplicans, incluindo o seu significado para a Igreja Católica na Alemanha.

Numa entrevista em 23 de dezembro, ele disse ao site de notícias católico americano The Pillar que o avanço de alguns episcopados de bênçãos ritualizadas de uniões irregulares é “inadmissível” e que “eles deveriam reformular a sua proposta a esse respeito”.

O argentino disse ainda que está planejando uma viagem à Alemanha. “Para ter algumas conversas que considero importantes”.

Na entrevista ao Die Tagespost, o cardeal também discutiu os diálogos contínuos da Santa Sé com representantes do DBK. Dois já ocorreram, com o próximo programado para acontecer em Roma este mês.

Fernández reafirmou que a discussão sobre mudanças na doutrina da Igreja sobre sexualidade e ordenação de mulheres não estará em discussão, algo já expresso ao DBK numa carta em outubro de 2023 do Secretário de Estado da Santa Sé, o cardeal Pietro Parolin. No entanto, o chefe do Dicastério para a Doutrina da Fé sugeriu que “a porta permanece aberta” para discutir como os aspectos reformáveis ​​das questões envolvidas “podem ser aprofundados” e possivelmente levar a “um desenvolvimento pastoral” semelhante à Fiducia supplicans.

O cardeal também abordou os preparativos em curso da liderança da Igreja alemã para estabelecer um “conselho sinodal” governante de bispos e leigos, o que foi proibido pela Santa Sé numa carta de janeiro de 2023 aprovada pelo papa Francisco.

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O comitê sinodal que lançou as bases para o conselho sinodal fez a sua primeira reunião de 10 a 11 de novembro, embora tenha sido boicotado por quatro bispos ordinários alemães. Outros quatro não compareceram alegando conflitos de agenda. O DBK deve votar a adoção dos estatutos do comitê na sua sessão plenária de fevereiro, em Augsburgo. Fernández enfatizou a paciência em sua entrevista ao Die Tagespost.

A condição para o diálogo contínuo entre a Santa Sé e o DBK, disse ele, é que “não continuemos a tomar decisões que só serão discutidas em reuniões futuras”.

“Devemos lembrar que 'o tempo vale mais que o espaço' ”, disse ele, citando a Evangelii gaudium, exortação apostólica do papa Francisco de 2013, que se acredita que Fernández tenha participado na escrita. “Então vamos manter a calma e pensar no panorama geral.”