A Fundação Vaticana Joseph Ratzinger e a Livraria Editorial do Vaticano lançaram a primeira de uma coleção de mais de 30 homilias inéditas pronunciadas pelo papa Bento XVI e que serão publicadas em 2024.

As homilias, editadas pelo padre Federico Lombardi, ex-porta-voz da Santa Sé, são em italiano e abrangem grande parte, embora não a totalidade, dos ciclos litúrgicos festivos.

“Este não é um volume que se espera que forneça novidades exegéticas ou teológicas, mas sim um alimento espiritual substancial, em sintonia com o gênero homilético cultivado com cuidado e profundo espírito sacerdotal por Joseph Ratzinger ao longo da sua vida”, disse ontem (23) o Dicastério para a Comunicação,

O jornal dominical alemão Welt am Sonntag e L'Osservatore Romano publicaram, nesta véspera de Natal, um primeiro sermão inédito dedicado a São José e a espera do Natal”, proferido durante as celebrações dominicais privadas na capela do mosteiro Mater Ecclesiae depois de sua renúncia ao papado.

O sermão é do Quarto Domingo do Advento (ciclo litúrgico A), do dia 22 de dezembro de 2013, dedicado principalmente à figura de são José, baseado no Evangelho do dia.

O padre Lombardi, em entrevista concedida ao Welt am Sonntag, relata que estes sermões “privados” de Bento XVI foram gravados e transcritos pelas “Memores Domini”, as consagradas que o assistiam, e posteriormente confiados à Livraria Editora Vaticana.

O secretário do papa Bento XVI, dom Georg Ganswein já havia anunciado essas homilias e sua transcrição em diversas ocasiões, e o próprio papa já havia falado sobre como as preparava durante a semana

Welt am Sonntag perguntou se era possível publicar uma delas por ocasião do Natal e o pedido foi aceito.

Abaixo está a homilia inédita do papa Bento XVI em tradução livre ao português:

Homilia de Bento XVI em 22-12-2013 – Quarto Domingo do Advento

Capela Privada – Mosteiro Mater Ecclesiae

Evangelho: Mt 1,18-24

Queridos amigos,

Junto a Maria, Mãe do Senhor, e São João Batista, a liturgia apresenta-nos hoje uma terceira figura que encarna o Advento: São José.

Meditando o texto do Evangelho, podemos perceber, parece-me, três elementos constitutivos desta visão.

O primeiro e decisivo é que São José é chamado de “justo”. No Antigo Testamento isto caracteriza aquele que vive verdadeiramente segundo a palavra de Deus, aquele que vive a aliança com Deus.

Para entendê-lo, devemos pensar na diferença entre o Antigo e o Novo Testamento. O ato fundamental do cristão é o encontro com Jesus, com a palavra de Deus que é Pessoa. Ao encontrar Jesus, encontramos a verdade, o amor de Deus, e a relação de amizade torna-se amor; nossa comunhão com Deus cresce, somos verdadeiramente crentes e nos tornamos santos.

No Antigo Testamento, o ato fundamental é diferente porque Cristo ainda era futuro, e o máximo era voltar-se para Cristo, mas não era um encontro real como tal. A palavra de Deus no Antigo Testamento tem a forma fundamental da lei, a “Torá”. Deus guia, é isso que significa; Deus nos mostra o caminho. É um caminho de educação que forma o homem segundo Deus e o torna capaz de encontrar-se com Cristo. Neste sentido, esta justiça, viver segundo a lei, é um caminho para Cristo, uma extensão para Ele; mas o ato fundamental é a observância da Torá, a lei, e assim ser “justo”.

São José é justo, um exemplo ainda do Antigo Testamento. Mas aqui existe um perigo e ao mesmo tempo uma promessa, uma porta aberta.

O perigo aparece nas discussões de Jesus com os fariseus e especialmente nas cartas de São Paulo. O perigo é que se a palavra de Deus é fundamentalmente lei, deve ser considerada uma soma de prescrições e proibições, um pacote de normas, e a atitude deveria ser a de observar as normas e assim se corrigir. Mas se a religião é assim, só isto, não nasce a relação pessoal com Deus, e o homem permanece em si mesmo, tenta aperfeiçoar-se, ser perfeito. Mas assim surge uma amargura, como vemos no segundo filho da parábola do filho pródigo, que, tendo observado tudo, no final é amargurado e também com um pouco de inveja do irmão que, segundo ele, teve uma vida em abundância. Este é o perigo: a simples observância da lei torna-se impessoal, só um fazer, o homem torna-se duro e também amargo. Ao final, ele não consegue amar esse Deus, que se apresenta apenas com normas e às vezes até ameaças. Este é o perigo.

Mais em

A promessa, ao contrário, é que possamos ver essas prescrições, não só como um código, um pacote de normas, mas como uma expressão da vontade de Deus, na qual Deus fala comigo, eu falo com Ele. Entrando nesta lei, entro em diálogo com Deus, aprendo o rosto de Deus, começo a ver Deus e assim estou no caminho rumo à palavra de Deus em pessoa, em direção a Cristo. E um homem verdadeiramente justo como São José é assim: para ele, a lei não é simplesmente a observância de normas, mas é apresentada como uma palavra de amor, um convite ao diálogo, e a vida segundo a palavra é entrar neste diálogo e encontrar o amor de Deus por trás das normas e nas normas, compreender que todas estas regras não são válidas por si mesmas, mas são regras de amor, servem para que o amor cresça em mim. Assim se entende que, finalmente, toda a lei é apenas amor a Deus e ao próximo. Observando isso, observa-se toda a lei. Se você vive este diálogo com Deus, um diálogo de amor no qual procura o rosto de Deus, no qual procura o amor e faz compreender que tudo é ditado pelo amor, está no caminho de Cristo, é um verdadeiro justo. São José é um verdadeiro justo, assim nele o Antigo Testamento se torna Novo, porque nas palavras ele busca Deus, a pessoa, busca o Seu amor, e toda observância é vida no amor.

Vemos isto no exemplo que este Evangelho nos oferece. São José, comprometido com Maria, descobre que está esperando um filho. Podemos imaginar a sua desilusão: conhecia esta menina e a profundidade da sua relação com Deus, a sua beleza interior, a extraordinária pureza do seu coração; Ele tinha visto nesta menina o amor de Deus e o amor da Sua palavra, da Sua verdade, e agora está gravemente decepcionado. O que fazer? Aqui, a lei oferece duas possibilidades, nas quais se veem os dois caminhos, o perigoso, fatal, e o da promessa. Ele pode levá-la a julgamento e assim expor Maria à vergonha, destruindo-a como pessoa. Pode fazê-lo de forma privada com uma carta de separação. E São José, verdadeiro justo, embora sofrendo muito, decide tomar este caminho, que é um caminho de amor na justiça, da justiça no amor, e são Mateus nos diz que lutou consigo mesmo, em si mesmo com a palavra. Nesta luta, neste caminho para entender a verdadeira vontade de Deus, ele encontrou a unidade entre o amor e a norma, entre a justiça e o amor, e assim, no seu caminho para Jesus, está aberto à aparição do anjo, aberto ao fato de que Deus lhe dá o conhecimento de que é uma obra do Espírito Santo.

Santo Hilário de Poitiers, no século IV, certa vez, tratando do temor de Deus, disse no final: “Todo o nosso temor está colocado no amor”, é só um aspecto, uma sombra do amor. Portanto, podemos dizer aqui para nós: toda a lei está colocada no amor, é uma expressão do amor e deve ser cumprida entrando na lógica do amor. E aqui devemos ter em conta que, também para nós, cristãos, existe a mesma tentação, o mesmo perigo que existia no Antigo Testamento: um cristão também pode chegar a uma atitude em que a religião cristã é considerada como um pacote de normas, proibições e normas positivas, de prescrições. Pode-se chegar à ideia de que se trata apenas de cumprir prescrições impessoais e assim aperfeiçoar-se, mas assim se esvazia a profundidade pessoal da Palavra de Deus e chega-se a uma certa amargura e dureza de coração. Na história da Igreja vemos isso no Jansenismo. Todos conhecemos este perigo, também sabemos pessoalmente que devemos sempre superar este perigo uma e outra vez e encontrar a Pessoa e, no amor da Pessoa, o caminho da vida e a alegria da fé. Ser justos significa encontrar este caminho e assim também nós estamos sempre no caminho do Antigo ao Novo Testamento na busca da Pessoa, do rosto de Deus em Cristo. O Advento é precisamente isto: sair da simples norma para o encontro do amor, sair do Antigo Testamento, que se torna Novo.

Este é então o primeiro e fundamental elemento da figura de São José tal como aparece no Evangelho de hoje. Agora, duas breves palavras sobre o segundo e o terceiro elementos.

O segundo: ele vê o anjo em sonho e ouve sua mensagem. Isto pressupõe uma sensibilidade interior a Deus, uma capacidade de perceber a voz de Deus, um dom de discernimento que sabe distinguir entre sonhos que são sonhos e um verdadeiro encontro com Deus. Só porque São José já estava em caminho da Pessoa da Palavra, do Senhor, do Salvador, é que ele pôde discernir; Deus podia falar com ele e ele entendeu: isso não é um sonho, é verdade, é a aparição do Seu anjo. E assim ele foi capaz de discernir e decidir

Também para nós é importante esta sensibilidade para com Deus, esta capacidade de perceber que Deus fala comigo e esta capacidade de discernimento. Claro, Deus normalmente não fala conosco como falou através do anjo com José, mas ele também tem suas maneiras de falar conosco. São gestos de ternura de Deus, que devemos perceber para encontrar alegria e consolo, são palavras de convite, de amor, inclusive de solicitude no encontro com pessoas que sofrem, que precisam de uma palavra ou de um gesto concreto da minha parte, um fato. Aqui é preciso ser sensíveis, conhecer a voz de Deus, entender que agora Deus está falando comigo e responder.

E assim chegamos ao terceiro ponto: a resposta de São José à palavra do anjo é a fé e depois a obediência, o fato. Fé: ele entendeu que essa era mesmo a voz de Deus, não era um sonho. A fé torna-se o fundamento sobre o qual agir, sobre o qual viver, é reconhecer que esta é a voz de Deus, o imperativo do amor que me guia no caminho da vida, e depois fazer a vontade de Deus. São José não era um sonhador, embora o sonho tenha sido a porta pela qual Deus entrou na sua vida. Era um homem prático e sóbrio, um homem de decisão, capaz de organizar. Não foi fácil, eu acho, encontrar em Belém, porque não havia um lugar nas casas, o estábulo como lugar discreto e protegido e, apesar da pobreza, digno para o nascimento do Salvador. Organizar a fuga para o Egito, a cada dia encontrar um lugar para dormir, para viver durante muito tempo: isto exigia um homem prático, com sentido de ação, com capacidade de enfrentar desafios, de encontrar as possibilidades de sobreviver. E depois, ao voltar, a decisão de voltar a Nazaré, para estabelecer ali a pátria do Filho de Deus, mostra também que ele era um homem prático, que viveu como carpinteiro e tornou possível a vida cotidiana.

Assim, São José convida-nos, por um lado, a este caminho interior na palavra de Deus, para estar cada vez mais perto da pessoa do Senhor, mas ao mesmo tempo convida-nos a uma vida sóbria, ao trabalho, ao serviço cotidiano, para fazer o nosso dever no grande mosaico da história.

Agradecemos a Deus pela bela figura de São José. Oremos: “Senhor, ajuda-nos a estar abertos a Ti, a encontrar sempre mais o Teu rosto, a amar-te, a encontrar o amor na norma, a estarmos enraizados, realizados no amor. Abra-nos para o dom do discernimento, para a capacidade de ouvi-lo e para a sobriedade de viver de acordo com sua vontade e nossa vocação". Amém!