“Hoje a dificuldade é transmitir paixão a quem já há muito tempo a perdeu”, disse o papa Francisco hoje (21) no discurso à Cúria Romana. Não existem “progressistas e conservadores”, mas sim “apaixonados” e “rotineiros”.

Na manhã de hoje (21), na Sala das Bênçãos do Vaticano, aconteceu o discurso de Natal que o papa Francisco dirige à Cúria de Roma.

No início da sua mensagem, o papa disse que “consola descobrir” que, mesmo nos lugares de dor atingidos pelas “feridas que habitam a nossa história”, “Deus Se torna presente neste berço, na manjedoura que escolhe hoje para nascer e levar a todos o amor do Pai; e fá-lo com o estilo de Deus: proximidade, compaixão, ternura”.

Sempre usando o artifício retórico caro aos jesuítas de enumerar e séries de três, o papa deu recomendações para viver o “caminho de fé”: Escutar, discernir, caminhar. Para explicar cada um desses elementos baseou-se em exemplos de alguns “protagonistas do Natal”.

Escutar como a Virgem Maria

Em primeiro lugar, o papa Francisco disse que Maria nos sugere a escuta, ao mesmo tempo que esclarece que “ouvir” é um verbo bíblico que não diz respeito apenas ao ouvido, “mas requer envolvimento do coração e, consequentemente, da própria vida”.

O papa falou de uma “escuta interior capaz de interceptar os desejos e as carências do outro” e garantiu que esta atitude “é sempre o início de um caminho”.

Escutar “de joelhos” “é o melhor modo para escutar de verdade, pois significa que estamos diante do outro, não na posição de quem pensa que sabe tudo, de quem já interpretou as coisas ainda antes de as ouvir, de alguém que olha de cima para baixo, mas ao contrário abrindo-nos ao mistério do outro, prontos a receber humildemente tudo o que ele nos quiser dar”.

“Às vezes, na própria comunicação entre nós”, continuou o papa, “corremos o risco de ser como lobos vorazes: procuramos de imediato devorar as palavras do outro, sem verdadeiramente as escutar, e logo lhe atiramos à cara as nossas impressões e os nossos juízos”.

O papa aconselhou escutar. Depois, “acolhemos, refletimos, interpretamos e só depois podemos dar uma resposta. Tudo isto se aprende na oração, porque esta alarga o coração, faz descer do pedestal o nosso egocentrismo, educa-nos para a escuta do outro e gera em nós o silêncio da contemplação”.

Ele também convidou a aprender “a contemplação na oração, estando de joelhos diante do Senhor” e exortou a “recuperar um espírito contemplativo”.

Reiterou que na Cúria também é necessário aprender a arte de ouvir e encorajou-os a fazê-lo “sem preconceitos, com abertura e sinceridade; com o coração de joelhos. Escutemo-nos, procurando compreender bem o que diz o irmão, captar as suas necessidades e de algum modo a sua própria vida, que se esconde por detrás daquelas palavras, sem julgar”.

Discernir como são João Batista

O papa Francisco propôs são João Batista como exemplo de discernimento, definido por ele como “a arte da vida espiritual que nos despoja da pretensão de já saber tudo, do risco de pensar que basta aplicar as regras, da tentação de proceder, na própria vida da Cúria, repetindo simplesmente esquemas, sem considerar que o Mistério de Deus sempre nos supera e que a vida das pessoas e a realidade que nos rodeia são e sempre permanecerão superiores às ideias e teorias”.

Para o papa, o discernimento espiritual é necessário para “perscrutar a vontade de Deus, questionar as moções interiores do nosso coração para, depois, avaliar as decisões a tomar e as escolhas a fazer”.

No discurso, Francisco citou o cardeal Carlo Maria Martini, ex-arcebispo de Milão, e jesuíta como ele: «O discernimento é muito diferente da análise meticulosa de quem vive em sujeição legalista ou com a pretensão do perfeccionismo. É um impulso de amor que estabelece a distinção entre o bom e o melhor, entre o útil em si mesmo e o útil agora, entre o que em geral pode estar bem e o que precisa de ser promovido agora».

Andar como os Três Reis Magos

Em terceiro lugar, o papa Francisco exortou os presentes a “caminhar” como fizeram os Três Reis Magos e disse que a chamada do Senhor “coloca-nos em viagem, tira-nos para fora das nossas áreas de segurança, põe em discussão as nossas aquisições e é precisamente assim que nos liberta, nos transforma, ilumina os olhos do nosso coração para nos fazer compreender a esperança a que Ele nos chamou”.

Ele disse que também no serviço na Cúria é importante permanecer no caminho, “não cessar de procurar e aprofundar a verdade, vencendo a tentação de ficar parado e «labirintar» dentro dos nossos recintos e dos nossos medos”

Para o papa, “os medos, a rigidez, a repetição dos esquemas geram uma situação estática, que tem a vantagem aparente de não criar problemas – quieta non movere –, mas levam-nos a girar sem resultado nos nossos labirintos, penalizando o serviço que somos chamados a oferecer à Igreja e ao mundo inteiro".

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“Permaneçamos vigilantes contra a fixidez da ideologia, que muitas vezes, sob a aparência das boas intenções, nos separa da realidade e impede de caminhar”, exortou o papa.

Para o papa, o discernimento começa “do alto”: “quando o serviço que realizamos corre o risco de se entibiar, de ‘labirintar’ na rigidez ou na mediocridade, quando nos encontramos emperrados nas redes da burocracia e da insignificância, lembremo-nos de olhar para o alto, recomeçar a partir de Deus, deixar-nos iluminar pela sua Palavra, a fim de encontrarmos sempre a coragem para partir de novo".

“É preciso coragem para caminhar, para ir mais longe. É uma questão de amor”, disse o papa, acrescentando que a dificuldade hoje “é transmitir paixão a quem já há muito tempo a perdeu”.

“À distância de sessenta anos do Concílio, ainda se debate sobre a divisão entre ‘progressistas’ e ‘conservadores’, mas esta não é a diferença: a verdadeira diferença é entre ‘apaixonados’ e ‘rotineiros’. Esta é a diferença. Só quem ama, pode caminhar”, disse.

Por fim, agradeceu aos membros da Cúria Romana pelo seu trabalho, especialmente aquele feito “em silêncio” e pediu-lhes também que não percam o sentido de humor.