“O catolicismo não é religião do opressor e o negro que é católico não está traindo a sua raça”, disse a socióloga Patricia Silva em entrevista à ACI Digital na semana em que se celebrou a consciência negra com um feriado em vários Estados do Brasil.

“Eu sou católica, a nossa religião foi desenvolvida no continente africano”, diz a pesquisadora, autora de O que não te contaram sobre o movimento antirracista e Bell hooks além do espelho. “Claro que teve participação de outras regiões do globo, mas ela tem uma forte raiz africana”

Para ela, o entendimento que parte do movimento negro no Brasil tem sobre o catolicismo como opressão “faz parte de uma narrativa iletrada, ignorante, infantil do movimento negro contemporâneo”.

“As pessoas ficam muito surpresas quando digo que a Sagrada Família criou Nosso Senhor Jesus Cristo no Egito”, por exemplo. “Também ficam pasmas quando digo que foi são Mateus que evangelizou santa Ifigênia, uma santa negra africana”, disse a pesquisadora.

“Se a gente for olhar para o histórico das três religiões, candomblé, umbanda e cristianismo a gente vai concluir rapidamente que o cristianismo tem mais matrizes africanas do que essas duas, já que candomblé e umbanda nasceram no Brasil”, diz Patrícia. “Com certeza, as religiões afro-brasileiras são representativas dos negros, o que eu discordo é que elas não são as únicas representativas do negro”.

Para a pesquisadora, “a história do cristianismo pertence à África como pertence ao resto do mundo. O cristianismo não é preto, nem branco. O cristianismo é do mundo. Jesus Cristo é do mundo, é para todos nós”, enfatizou.

Segundo Patricia Silva, o movimento negro assim “como qualquer movimento social faz uma “narrativa” e suprime “determinadas partes da história”.

“Eles acabam obliterando essa parte da história também, que negros vendiam outros negros na África para europeus”, disse a pesquisadora.

Para ela, há uma dose de razão porque “muitas pessoas mal-intencionadas utilizam esse fato para justificar o racismo, mas isso não é desculpa”.

“A escravidão existe desde que o mundo é mundo e não é por isso que se está desculpado ou justificado em ser racista. Então, da mesma forma que o movimento negro oblitera esse dado, o movimento que critica o movimento negro também oblitera o enfrentamento ao racismo”, disse Silva.

O feriado de 20 de novembro comemora a figura de Zumbi, líder do quilombo de Palmares no século XVII. Para Silva, o movimento negro contemporâneo substituir a figura da princesa Isabel, herdeira do trono imperial brasileiro e regente que assinou a Lei Áurea, que pôs fim à escravidão no Brasil por Zumbi por que entende princesa Isabel como “branca, conservadora, eurocêntrica, elitista, enfim, todos esses adjetivos que a gente vê sendo reproduzidos sem a menor precaução no meio social”.

“O que as pessoas estão obliterando, e aí eu já acho que não é uma questão de ignorância, mas de má fé mesmo, é que o movimento abolicionista foi muito longevo e contou com a participação de inúmeras pessoas. Tanto negros liberais, negros conservadores, aristocratas, teve participação de muita gente. Assim como é errado o movimento negro contemporâneo assumir essa posição, também é errado o conservadorismo recém-nascido brasileiro assumir que foi a princesa Isabel que concedeu liberdade para os negros, ela sozinha e não é verdade, foi um movimento de inúmeras frentes que não seria possível se não tivesse havido essas inúmeras frentes”.

Patrícia Silva critica o fato de “que o movimento antirracista tem se afastado do seu propósito antirracista e se somado mais aos interesses de um progressismo identitário do que propriamente dos interesses da população negra”.

“O combate ao racismo não tem nada a ver com o movimento pró-aborto, luta contra o patriarcado, LGBTQIA+”, disse. “Essa combinação de pautas é um movimento recente e que tem interesse no próprio progressismo”.

“Eu sou exemplo vivo, eu sou antirracista e eu sou contra o aborto”. Patrícia acredita que o progressismo, quando tenta alinhar a luta antirracista com a defesa do aborto mostra dados de que mulheres negras vítimas mais frequentes em abortos ilegais. “Só que a gente pode analisar esses dados pela ótica do nascituro”, argumenta a pesquisadora. “Na tábua que coloca mulheres negras, os bebês negros também são mortos: o aborto legalizado vai continuar levando a morte, que é a morte do bebê”.

Um estudo recente publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) de setembro deste ano mostra que as mulheres negras têm 46% mais de chance de fazer um aborto no Brasil do que as mulheres brancas.

É “historicamente o movimento feminista se alinhou com o movimento eugenista para reduzir a população negra nos Estados Unidos e em outras partes do mundo e o aborto foi uma das estratégias para isso”. A maior multinacional de abortos do mundo, Planned Parenthood, foi fundada nos EUA em 1916 por Margaret Sanger para diminuir a natalidade entre a população negra do país.

“Obliterar essa história, não é interessante, e não é justo para a discussão. As feministas precisam entender que, quando uma população negra é contra o aborto, ela tem razão”.

“Quando as feministas falam que a legalização do aborto é necessária para as mulheres negras em situação de pobreza, em nome da situação de pobreza é basicamente só mais um alinhamento com a eugenia. Elas estão dizendo de uma maneira bem básica que as mulheres negras e as mulheres pobres não devem engravidar, porque elas são negras e são pobres. Ora, se isso não é racismo, o que é?! Na verdade, é um elitismo que considera que ter família é um privilégio para algumas mulheres que são brancas e burguesas”, sublinhou.