O papa Francisco falou de “clima de fechamento” nos EUA, que, segundo ele, substitui a fé pela ideologia.

“Você diz sentir um clima de fechamento [nos EUA]”, disse o papa, em uma conversa com jesuítas em Portugal no início de agosto, respondendo a uma pergunta de um irmão jesuíta.

“Sim, esse clima pode ser vivenciado em algumas situações. E aí você pode perder a verdadeira tradição e recorrer a ideologias em busca de apoio. Em outras palavras, a ideologia substitui a fé, o pertencimento a um setor da Igreja substitui o pertencimento à Igreja.”

O papa Francisco, que é jesuíta, mantém encontros fechados com jesuítas em todos os países que visita. O teor das conversas que tem com seus irmãos de ordem é publicado depois na Civiltá Cattolica, revista dos jesuítas.

Os comentários do papa Francisco foram feitos durante uma reunião com os jesuítas no dia 5 de agosto no colégio de São João de Brito, uma escola primária e secundária gerida pelos jesuítas em Lisboa, Portugal. Uma tradução para o inglês da conversa privada de Francisco com membros da companhia de Jesus foi publicada ontem (28) pela revista jesuíta La Civiltà Cattolica.

Ele disse que a situação nos EUA não é fácil devido a “uma atitude reacionária muito forte”, que “é organizada e molda a forma como as pessoas pertencem, até mesmo emocionalmente”.

E referiu-se ao que chama de “indietrismo”, palavra que inventou em italiano que se poderia traduzir por “paratrasismo”.

“Precisamos compreender que há uma evolução adequada na compreensão das questões de fé e de moral, desde que sigamos os três critérios que Vicente de Lérins já indicava no século V: A doutrina evolui 'ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate.'”

“Ou seja, a doutrina também avança, se expande e se consolida com o tempo e se fortalece, mas está sempre progredindo”, explicou.

São Vicente de Lérins foi um monge cristão do século V. Na contemporaneidade, ele é considerado a principal autoridade da Igreja primitiva na teologia da tradição e no desenvolvimento da doutrina, embora existam interpretações divergentes de seu pensamento.

A citação que o papa faz de Vicente de Lérins na sua conversa com os jesuítas em Portugal provém da obra teológica do monge, o “Commonitorium”, onde se encontra uma das suas declarações mais conhecidas: “Além disso, no Igreja Católica, todos os cuidados possíveis devem ser tomados para que mantenhamos aquela fé que foi acreditada em todos os lugares, sempre, por todos”.

O papa Francisco fez referência a Vicente de Lérins sobre o desenvolvimento da doutrina no passado também na conversa com jesuítas do Canadá em julho de 2022.

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Em Portugal, o papa disse que algumas pessoas “optam por não aderir” aos critérios de evolução doutrinária de Vicente de Lérins. Estas, disse ele, são as pessoas que ele chama de “indietristas”.

“Quando você retrocede, forma algo fechado, desconectado das raízes da Igreja e perde a seiva da revelação. Se você não mudar para cima, você irá retroceder e então adotar critérios de mudança diferentes daqueles que nossa fé oferece para crescimento e mudança”, disse ele.

Francisco disse que os efeitos deste atraso na moralidade “são devastadores”.

“Os problemas que os moralistas têm de examinar hoje são muito graves e, para lidar com eles, têm de correr o risco de fazer mudanças, mas na direção que eu estava a dizer”, disse.

Sinodalidade

Ao ser questionado por outro jesuíta sobre as suas maiores alegrias neste momento, o papa Francisco apontou para a primeira das duas assembleias de um mês do Sínodo sobre a Sinodalidade, que terá lugar em outubro. A sua alegria, disse ele, está presente apesar de algumas imperfeições na forma como o Sínodo está a ser gerido.

“A alegria que mais sinto neste momento vem da preparação para o Sínodo, embora às vezes veja, em algumas partes, que há deficiências na forma como está sendo conduzido”, disse ele.

"A alegria de ver como dos pequenos grupos paroquiais, dos pequenos grupos eclesiais emergem reflexões muito bonitas e há uma grande fermentação”.

Francisco disse que não foi ele quem inventou o sínodo. “Foi Paulo VI, no final do Concílio, que percebeu que a Igreja Católica havia perdido o sentido da sinodalidade. A parte oriental da Igreja mantém isso”, disse o papa.

Ele relembrou o seu papel como relator geral assistente no sínodo dos Bispos de 2001.

“No momento em que eu estava preparando as coisas para a votação do que havia vindo dos grupos, o cardeal encarregado do Sínodo me disse: 'Não, não coloque isso. Retire'. Em suma, eles queriam um sínodo com censura, uma censura curial que bloqueasse as coisas”, observou Francisco.

O papa disse que embora houvesse imperfeições no caminho para a sinodalidade desde que o papa são Paulo VI estabeleceu o Sínodo dos Bispos em 1965, “nos últimos dez anos temos progredido, até alcançarmos, penso eu, uma expressão madura de o que é sinodalidade.”

“A sinodalidade não consiste em ir atrás de votos, como faria um partido político”, enfatizou. “Não se trata de preferências, de pertencer a este ou aquele partido. Num sínodo, a figura principal é o Espírito Santo. Ele é o protagonista. Então você tem que deixar o Espírito guiar as coisas. Deixe-o se expressar como fez na manhã de Pentecostes. Acho que esse é o caminho mais forte.”

Conselhos aos jesuítas

Durante a conversa, o papa Francisco também deu conselhos aos jesuítas sobre como viver a sua vocação, incluindo a exortação a evitar o mundanismo.

“O mundanismo espiritual é uma armadilha frequentemente recorrente. É preciso aprender a distinguir: uma coisa é preparar-se para o diálogo com o mundo – como se faz com o diálogo com os mundos da arte e da cultura – outra coisa é comprometer-se com as coisas do mundo, com o mundanismo”, disse.

Quando se trata de se proteger contra o mundanismo, bem como de viver castamente, o papa enfatizou a importância de fazer um exame de consciência diário, conforme recomendado pelo fundador da companhia de Jesus.

“Hoje o grave problema diz respeito aos refúgios ocultos do egoísmo, que muitas vezes envolvem a sexualidade, mas também outros assuntos. O que fazer? Encontro ajuda no exame de consciência, como pediu Santo Inácio”, disse Francisco, notando que Inácio de Loyola “muito raramente” dispensava esta obrigação para os membros da companhia de Jesus.

“Seu objetivo é ver o que está acontecendo dentro de você. E há pessoas consagradas que têm o coração exposto aos quatro ventos, com as janelas abertas, as portas abertas. Em suma, eles não têm consistência interna.”

Francisco disse que a oração também é muito importante: “Com a oração o jesuíta avança, sem medo de nada, porque sabe que o Senhor irá inspirá-lo no devido tempo sobre o que deve fazer”.

"Quando um jesuíta não reza, ele se torna um jesuíta ressecado. Em Portugal diz-se que se tornou num 'baccalà ', um bacalhau seco e salgado”, disse, referindo-se ao famoso prato lisboeta.