Os especialistas nomeados pelo papa Francisco para uma visita de investigação ao Sodalício de Vida Cristã (SCV, na sigla em latim) concluíram recentemente sua viagem ao Peru, após uma série de encontros com membros da Sociedade de Vida Apostólica, bem como com denunciantes e vítimas.

O Sodalício de Vida Cristã é uma Sociedade de Vida Apostólica Laical fundada no Peru e aprovada por são João Paulo II em 1997. São leigos e sacerdotes que consagram suas vidas plenamente ao apostolado da Igreja Católica. No Brasil, estão na cidade de São Paulo (SP) e Petrópolis (RJ).

Os enviados de Francisco foram dom Charles J. Scicluna, arcebispo de Malta e secretário adjunto do Dicastério para a Doutrina da Fé, e monsenhor Jordi Bertomeu, oficial do mesmo dicastério.

Durante vários dias, dom Scicluna e monsenhor Bertomeu se reuniram dentro da nunciatura apostólica no Peru com denunciantes como Pedro Salinas, ex-membro do SCV, e a jornalista Paola Ugaz, que juntamente com Salinas publicaram em 2015 o livro Metade Monges, metade soldados. O livro contém uma série de acusações de abuso de poder e abuso sexual contra o fundador do Sodalício, Luis Fernando Figari, e desencadeou as investigações que levaram ao comissionamento pontifício do Sodalício, o mais alto nível de intervenção feito pela Santa Sé.

O processo foi concluído em 2019 com a eleição de um novo superior do SCV, o colombiano José David Correa, e novos membros de seu conselho superior em sua V Assembleia Geral que aconteceu em Aparecida (SP).

Também estiveram presentes, entre outros, José Enrique Escardó, que começou a publicar acusações de maus-tratos e abusos dentro do Sodalício há mais de duas décadas.

Segundo a agência Associated Press, entre os entrevistados estavam membros da comunidade camponesa de San Juan Bautista de Catacaos, município de Piura, no norte do Peru, que acusa a instituição católica de se apropriar irregularmente de suas terras.

Eles acusam instituições ligadas ao Sodalício de se apropriarem de cerca de 1.895 hectares de sua comunidade.

Os enviados da Santa Sé também se reuniram com vários membros do Sodalício, entre eles o superior-geral do SCV, José David Correa; o padre Jaime Baertl; e o arcebispo de Piura, dom José Antonio Eguren.

Em comunicado enviado à ACI Prensa, agência em espanhol do grupo ACI, na segunda-feira (7), José Antonio Dávila, assistente-geral de Temporalidades (economia) do SCV, rejeitou as denúncias de tráfico de terras: "nunca o Sodalício, nem qualquer instituição relacionada à sua missão apostólica, incorreu no crime de tráfico de terras, ou qualquer tipo de associação ilícita com quadrilhas criminosas, e muito menos abusou de camponeses dessa área ou de qualquer outra”.

Ele disse que “todos os projetos imobiliários ou agrícolas que qualquer instituição relacionada ao Sodalício fez em Piura e seus arredores, a fim de gerar recursos para a missão apostólica, foram realizados em conformidade com a lei. A aquisição de terrenos sempre foi feita legalmente, através de contratos de compra e venda que cumpriram todas as formalidades. Isso está absolutamente fundamentado nos Registros Públicos do Peru e pode ser consultado livremente por qualquer cidadão”.

A reportagem da Al Jazeera e as denúncias de tráfico de terras

As denúncias de tráfico de terras foram divulgadas em 2016 em uma reportagem do jornalista peruano Daniel Yovera em parceria com a rede Al Jazeera.

Após a divulgação da reportagem intitulada "O escândalo Sodalício", Carlos Alberto Gómez de la Torre, então representante da Associação Civil San Juan Bautista, instituição vinculada ao SCV e acusada no documentário de usurpar terras de camponeses, abriu processos por difamação agravada contra Yovera e outras pessoas que participaram da reportagem, incluindo Paola Ugaz, Samuel Alberca e Carmen Campodónico.

A acusação contra Yovera foi considerada prescrita pelo Judiciário em junho deste ano, mas Gómez de la Torre recorreu da prescrição. No ano passado, o processo contra Ugaz foi considerado prescrito e arquivado pela justiça peruana.

Samuel Alberca foi condenado em primeira instância e absolvido em segunda instância. Seu caso também prescreveu. Campodónico foi condenada a um ano de prisão e ao pagamento de mil soles (cerca de US$270) a título de reparação civil, sua sentença foi transitada em julgado.

Falando à ACI Prensa, Dávila também rejeitou as acusações do documentário de Yovera e disse que a reportagem contém "uma sucessão de falsidades, erros e omissões".

As versões daqueles que denunciam as empresas ligadas ao Sodalício, disse Dávila, “não foram devidamente contrastadas e corroboradas em uma investigação que supostamente busca ter rigor jornalístico. Como se não bastasse, não incluíram na reportagem os documentos de defesa que foram entregues ao jornalista responsável pela investigação, muito antes da reportagem ser veiculada".

O Sodalício agradece a visita

Ao final da visita de dom Scicluna e de monsenhor Bertomeu, o Sodalício publicou um comunicado assinado por seu superior-geral agradecendo aos enviados do papa “pela presença e trabalho durante a visita ao Peru”.

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Jose David Correa disse que deu aos enviados papais "informações atualizadas sobre o processo de atendimento e reparação das vítimas de abuso no Sodalício" e explicou que foram solicitadas informações adicionais sobre alguns assuntos econômicos, que nos comprometemos a fornecer de forma clara e completa dentro do prazo estabelecido pelos enviados do Santo Padre”.

Segundo Correa, eles incluirão pareceres de auditorias internacionais pelas quais essas instituições vêm passando há vários anos, além de relatórios que sustentam claramente alguns assuntos de interesse dos delegados”. Além disso, disse que “esta informação já foi apresentada ao cardeal Joseph W. Tobin, nosso delegado nomeado pela Santa Sé para os assuntos econômicos”.

Sobre o caso Sodalício

As acusações mais graves contra o SCV estão ligadas ao seu fundador, Luis Fernando Figari, e Germán Doig, que foi seu vigário-geral até sua morte repentina em 2001.

Um relatório do Sodalício publicado em 2017 reconhece os abusos sexuais e de poder de Figari, bem como os de Doig e dos ex-membros da instituição Virgilio Levaggi, Jeffrey Daniels e Daniel Murguía.

Segundo o Sodalício, eles têm um montante aprovado de US$ 2.842.000 para reparações econômicas e diferentes tipos de assistência às vítimas.

Uma nova investigação fiscal?

Durante a visita dos enviados do papa, em 1º de agosto, o jornal peruano La República noticiou que a promotora Manuela Villar Ramírez, especializada em lavagem de dinheiro, abriu uma investigação preliminar sobre Luis Baertl Jourde, primo do padre Jaime Baertl, e o sodálite Juan Len Álvarez e Carlos Neuenschwander Sahurie, que anos atrás foram assistentes gerais de Temporalidades (economia) do SCV.

La República cita uma publicação do portal Convoca.pe de novembro de 2021, sobre o vazamento dos documentos conhecidos como “Pandora Papers”, e a suposta criação de offshores ligadas ao Sodalício nas Ilhas Virgens Britânicas e em Panamá: Alma Minerals Limited e Providential Group Inc., respectivamente.

Essas organizações, por sua vez, estariam relacionadas com as empresas peruanas Alma Minerals Perú SA e Inversiones San José SA.

Segundo o La República, para a promotora peruana encarregada do caso, Manuela Villar, esse esquema corporativo poderia ter sido usado para que o Sodalício ocultasse receitas supostamente vinculadas às atividades de mineração.

O Sodalício responde

Em comunicação com a ACI Prensa Dávila rejeitou "qualquer acusação de que o Sodalício, qualquer um de seus membros e as instituições relacionadas com sua vida e missão, tenham cometido algum tipo de crime de usurpação e tráfico de terras, lavagem de dinheiro, fraude fiscal ou uso ilegal do acordo Igreja-Estado no Peru”.

“As informações econômicas do Sodalício e de suas instituições vinculadas passam anualmente por auditorias financeiras externas há mais de uma década —algumas inclusive são auditadas há mais de vinte anos—, as mesmas que atualmente são realizadas por instituições financeiras internacionais de primeiro nível”, continuou Dávila.

Ele também disse que "todas as informações históricas do Sodalício e instituições relacionadas foram entregues oportunamente ao cardeal Joseph W. Tobin, delegado ad nutum da Santa Sé para assuntos econômicos desde 2016, com quem temos reuniões constantes de informação e consulta”.

“Assim, por exemplo, está em andamento uma investigação preliminar que já foi arquivada três vezes na Promotoria do Crime Organizado. Em 2018, foi também instaurado um inquérito preliminar na Procuradoria Fiscal a 10 instituições relacionadas e, este ano, foi também instaurado um processo na Promotoria de Lavagem de Dinheiro".

“Na semana passada, três instituições relacionadas foram notificadas de uma nova investigação preliminar sobre lavagem de dinheiro. Notícia que veio depois do anúncio de alguns artigos de jornal”, disse.

A autoridade do Sodalício garantiu que “estas instituições enfrentarão esta investigação, confiando na lei e na justiça, e colaborando com o Ministério Público no que for solicitado, como tem feito nos últimos sete anos”.

“Reiteramos nosso absoluto repúdio de que o Sodalício, qualquer um de seus membros ou instituições afins, tenha cometido algum crime", concluiu.

Reações à visita

A visita de dom Scicluna e de mosenhor Bertomeu suscitou várias reações entre os que denunciaram o caso Sodalício.

“Não sei o que vai acontecer, mas saí mais do que satisfeito do encontro com os enviados do papa Francisco”, disse Pedro Salinas através da rede social X (antigo Twitter).

Paola Ugaz lembrou que se encontrou com o papa Francisco no Vaticano em novembro de 2022 e comemorou que oito meses depois o papa “enviou a missão que investigará o Sodalício”

Uma posição diferente foi expressa por Escardó, que publicou a carta que entregou a dom Scicluna e a monsenhor Bertomeu durante o seu encontro na nunciatura apostólica: "Não confio em vocês dois. Não confio em Jorge Mario Bergoglio, que os enviou (...) Desafio vocês a demonstrar que estou errado com as ações que tomarão quando deixarem meu país”.

O Sodalício também publicou uma foto do encontro de seu superior-geral com os investigadores da Santa Sé. Na publicação nas redes sociais, disseram que agradecem aos enviados do papa “por este espaço de diálogo sobre a realidade da nossa comunidade sodálite”.

“Também agradecemos ao papa Francisco por sua preocupação com a Igreja e com o Sodalício”, acrescentou a instituição católica.

Uma comissão de investigação do Congresso da República abordou o caso Sodalício. Seu relatório final está no arquivo do parlamento desde julho de 2019, aguardando sua discussão no Plenário.

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