No primeiro dia de sua visita a Portugal, para a Jornada Mundial da Juventude, o papa Francisco teve o tradicional encontro com as autoridades, a sociedade civil e o corpo diplomático.

Em seu discurso, inspirado na vocação oceânica do país, fez uma reflexão sobre a alma da Europa e propôs três “laboratórios de esperança”: o meio ambiente, o futuro e a fraternidade.

A seguir, as palavras pronunciadas pelo papa Francisco no Centro Cultural de Belém hoje (2):

Senhor presidente da República, senhor presidente da Assembleia da República, senhor primeiro-ministro, membros do Governo e do Corpo Diplomático, autoridades, representantes da sociedade civil e do mundo da cultura, senhoras e senhores:

Saúdo-vos cordialmente a todos vocês e agradeço ao senhor presidente o acolhimento e as amáveis palavras que me dirigiu. Estou feliz por estar em Lisboa, cidade do encontro que abraça vários povos e culturas e que, nestes dias, se mostra ainda mais universal; torna-se, de certo modo, a capital do mundo.

Isto condiz bem com o seu caráter, porque os jovens são o futuro, multiétnico e multicultural - penso, por exemplo, no bairro da Mouraria, onde vivem em harmonia pessoas provenientes de mais de sessenta países - e revela os traços cosmopolitas de Portugal, que afunda as suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e explorá-lo, navegando rumo a novos e amplos horizontes. Navegando.

Não muito longe deste lugar, no Cabo da Roca, há um monumento com uma lápide onde está gravada a frase dum grande poeta desta cidade: «Aqui… onde a terra se acaba e o mar começa» (L. Vaz de Camões, Os Lusíadas, canto III, 20).

Durante séculos, acreditou-se que lá estivessem os confins do mundo. E em certo sentido é verdade, estamos no fim do mundo, porque este país confina com o oceano, que delimita os continentes. E, do oceano, Lisboa conserva o abraço e o perfume. Faço meu, com muito gosto, aquilo que os portugueses costumam cantar: «Lisboa tem cheiro de flores e de mar» (A. Rodrigues, Cheira bem, cheira a Lisboa, 1972).

Um mar que é muito mais do que um elemento paisagístico, o mar é uma vocação impressa na alma de cada português «mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim» (S. de Mello Breyner Andresen, Mar sonoro).

À vista do oceano, os portugueses são levados a refletir sobre os imensos espaços da alma e sobre o sentido da vida no mundo. Nesta linha, gostaria também eu de partilhar convosco algumas reflexões, deixando-me levar pela imagem do oceano.

Segundo a mitologia clássica, Oceano é filho do céu (Urano): a sua vastidão leva os mortais a olharem para cima elevando-se para o infinito. Ao mesmo tempo, porém, Oceano é filho da terra (Gea) que abraça, convidando assim a envolver de ternura todo o mundo habitado. Com efeito, o oceano não liga apenas povos e países, mas também terras e continentes; por isso Lisboa, cidade do oceano, lembra a importância do conjunto, a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contato.

Sabemos que os grandes problemas de hoje são globais, mas muitas experimentamos a nossa insuficiência à hora de responde a eles, precisamente porque o mundo, diante de problemas comuns, se mantém dividido ou pelo menos não suficientemente unido, incapaz de enfrentar juntos aquilo que nos põe em crise a todos. Parece que as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias correm mais rapidamente do que a capacidade e, muitas vezes, a vontade de enfrentar em conjunto tais desafios.

Lisboa pode sugerir uma mudança de ritmo. Em 2007, foi assinado aqui o homônimo Tratado de reforma da União Europeia. Nele se lê que “a União tem por objetivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos” (Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, art. 1.4/2.1); mas vai mais longe afirmando que, “nas suas relações com o resto do mundo (…), contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos humanos” (art. 1,4/2.5).

Não se trata apenas de palavras, mas de marcos miliários no caminho da comunidade europeia, esculpidos na memória desta cidade. Este é o espírito do conjunto, animado pelo sonho europeu dum multilateralismo mais amplo do que o mero contexto ocidental. 

Segundo uma etimologia controversa, o nome Europa derivaria duma palavra que indica a direção do ocidente. O certo é que Lisboa constitui a capital mais ocidental da Europa continental, lembrando a necessidade de abrir caminhos de encontro mais vastos, como aliás Portugal está a fazer sobretudo com os países de outros continentes irmanados pela mesma língua.

Espero que a Jornada Mundial da Juventude seja, para o “velho continente”, um impulso de abertura universal, um impulso de abertura que vai dirigido aos jovens. Porque o mundo tem necessidade da Europa, da Europa verdadeira: precisa do seu papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterrâneo, na África e no Médio Oriente.

Assim poderá a Europa trazer, para o cenário internacional, a sua originalidade específica; vimo-la delineada no século passado quando, do crisol dos conflitos mundiais, fez saltar a centelha da reconciliação, tornando verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem, o sonho de abrir percursos de diálogo e inclusão, desenvolvendo uma diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais tortas da realidade.

No oceano da história, estamos a navegar num momento tempestuoso e sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a caracteriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo?

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E ainda, alargando o campo: Que rota segues, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o estado social. Fica-se preocupado ao ler que, em muitos lugares, se investem continuamente os recursos em armas e não no futuro dos filhos.

É verdade, dizia um economista. O melhor investimento é a fabricação de armas. Investe-se mais em armas e não no futuro dos filhos.

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Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; uma Europa que inclua povos e pessoas, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas, respeitando a sua própria cultura. Nisso vão nos ajudar os pais fundadores da Europa. Tinham uma grande criatividade.

Com a sua imensa vastidão de água, o oceano recorda as origens da vida. No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam, a cultura da morte. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos.

Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar? Penso em tantas leis sofisticadas a esse respeito.

Mas Lisboa, abraçada pelo oceano, oferece-nos motivos de esperança. É uma cidade da esperança. Há uma maré de jovens que se espraia sobre esta cidade acolhedora. Quero agradecer o grande trabalho e generoso empenho empreendidos por Portugal para acolher um evento tão complexo de gerir, mas fecundo de esperança, pois – como se diz por aqui – «ao lado dos jovens, não se envelhece». Jovens provenientes de todo o mundo que cultivam anseios de unidade, paz e fraternidade, desafiam-nos a realizar os seus sonhos bons. Não andam pelas ruas a gritar sua raiva, mas a partilhar a esperança do Evangelho. E se, em muitos lugares, se respira hoje um clima de protesto e insatisfação, terreno fértil para populismos e conspirações, a Jornada Mundial da Juventude é ocasião para construir juntos. Reaviva o desejo de criar coisas novas, fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro.

Vêm à mente algumas palavras ousadas de Fernando Pessoa: «Navegar é preciso; viver não é preciso (…); o que é necessário é criar» (Navegar é preciso). Trabalhemos, pois, com criatividade para construirmos juntos! Imagino três estaleiros de construção da esperança onde podemos trabalhar todos unidos: o meio ambiente, o futuro, a fraternidade.

O meio ambiente. Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da criação. Mas o problema global continua extremamente grave: os oceanos aquecem e, das suas profundezas, sobe à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico. O oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes dermos um espaço sadio para construir o seu futuro? Esse é o meio ambiente.

O futuro é o segundo estaleiro de obras. E o futuro são os jovens. Mas muitos fatores os desanimam, como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo. Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma triste fase descendente na curva demográfica: o progresso parece ser uma questão que diz respeito ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver.

A boa política pode fazer muito neste sentido; pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios econômicos dum mercado que produz riquezas, mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos. É chamada a voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação, a investir com clarividência no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre jovens e idosos.

A isto mesmo faz apelo o sentimento da saudade portuguesa, que exprime nostalgia, desejo dum bem ausente, que só renasce em contato com as próprias raízes. Os jovens têm que encontrar suas raízes nos idosos. Neste sentido, é importante a educação, que não pode limitar-se a fornecer noções técnicas para se progredir economicamente, mas destina-se a introduzir numa história, transmitir uma tradição, valorizar a necessidade religiosa do homem e favorecer a amizade social.

O último estaleiro de esperança é o da fraternidade, que nós, cristãos, aprendemos do Senhor Jesus Cristo. Em muitas partes de Portugal, está ainda muito vivo o sentido de vizinhança e solidariedade. Contudo, no contexto geral duma globalização que nos aproxima mas não nos dá uma proximidade fraterna, somos todos chamados a cultivar o sentido da comunidade, começando por ir ter com quem vive ao nosso lado. Com efeito, como observou Saramago, «o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto» (Todos os nomes, 1997). Como é bom voltar a descobrir-nos irmãos e irmãs, trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e diferenças de visão! Também aqui servem de exemplo os jovens que nos levam, com o seu grito de paz e ânsia de vida, a derrubar as rígidas divisórias de pertença erguidas em nome de opiniões e crenças diversas.

Soube de muitos jovens que cultivam, aqui, o desejo de se fazerem próximo dos outros; penso na iniciativa «Missão País», que leva milhares de jovens a viver no espírito do Evangelho experiências de solidariedade missionária em zonas periféricas, sobretudo nas aldeias do interior, indo ao encontro de muitos idosos sozinhos. Isso é uma unção para a juventude.  Quero agradecer e encorajar a tantos que na sociedade portuguesa se preocupam com os outros, nomeadamente a Igreja, e que fazem tanto bem mesmo longe dos holofotes. Sintamo-nos chamados, todos juntos fraternalmente, a dar esperança ao mundo em que vivemos e a este magnífico país. Deus abençoe Portugal!

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