O bispo de Leiria-Fátima, dom José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), descartou qualquer revisão no segredo de confissão por causa das denúncias de abusos sexuais na Igreja em Portugal. “O segredo da confissão é tão velho como a Igreja e não vai mudar, isso posso garantir”, disse ontem (2) durante audição parlamentar da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, na Assembleia da República.

Dom José Ornelas, o cardeal-patriarca de Lisboa, dom Manuel Clemente, e representantes da antiga Comissão Independente (CI) para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja em Portugal foram ouvidos na Sala do Senado, após requerimentos dos grupos parlamentares dos partidos Chega, de direita, Partido Socialista (PS) e Partido Social Democrata (PSD).

A comissão independente encerrou o seu trabalho em fevereiro, com a publicação do relatório final, segundo o qual há ao menos 4.815 vítimas de abusos na Igreja em Portugal, entre 1950 e 2022.

Durante a audição de ontem no Parlamento, vários deputados questionaram o segredo de confissão em relação a denúncias de abusos sexuais.

O presidente da CEP, dom José Ornelas, respondeu à deputada Inês de Sousa Real, do Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN). O partido propôs “a revisão da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa e a criação de uma Comissão de Reparação para indemnização das vítimas de crimes sexuais”.

A Concordata foi assinada em 2004 e em seu artigo 5º determina que “os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre fatos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério”.

Dom José Ornelas deixou claro que “o segredo da confissão não depende da Concordata” e “não vai mudar”.

 “Quando eu ponho a minha vida na mão de alguém tenho de ter a confiança de que essa vida é tida como preciosa e não para ser enxovalhada”, disse. “Foi dita com a intenção de que é segredo e nós guardamos segredo, e sobre isso não voltamos atrás, porque seria negar e ser infiel e não ter respeito pela dignidade da pessoa que me confiou esse segredo. Esse segredo não é para mim, é para Deus e, portanto, eu não sou senhor dele”, acrescentou.

O cardeal-patriarca de Lisboa, dom Manuel Clemente, disse que o segredo de confissão é “absoluto”. “O papa Francisco nisto é determinante. Aliás, devo dizer-vos que é por causa do segredo da confissão que muitas pessoas desabafam, exatamente porque sabem, que é segredo”, afirmou.

Dom Clemente destacou ainda que, quando o padre ouve “alguma coisa destas em segredo de confissão”, tem “a obrigação de dizer à pessoa que se está a confessar: agora o senhor ou a senhora vai à autoridade competente dizer o que aconteceu porque isto é um crime público”.

O Catecismo da Igreja Católica diz no parágrafo 1467: “Dada a delicadeza e a grandeza deste ministério e o respeito devido às pessoas, a igreja declara que todo o sacerdote que ouve confissões está obrigado a guardar segredo absoluto sobre os pecados que os seus penitentes lhe confessaram, sob penas severíssimas. Tão pouco pode servir-se dos conhecimentos que a confissão lhe proporciona sobre a vida dos penitentes. Este segredo, que não admite exceções, é chamado ‘sigilo sacramental’, porque aquilo que o penitente manifestou ao sacerdote fica ‘selado’ pelo sacramento”.

Segundo o cânone 1388 do Código de Direito Canônico, “o confessor que violar diretamente o sigilo sacramental, incorre em excomunhão latae sententiae, reservada à Sé Apostólica”.

Em julho de 2019, a Penitenciaria Apostólica da Santa Sé publicou uma nota em que reafirmou a inviolabilidade do segredo de confissão. “O inviolável sigilo da confissão provém diretamente do direito divino revelado e está enraizado na própria natureza do sacramento, a ponto de não admitir qualquer exceção no âmbito eclesial, nem, ainda menos, na esfera civil”, diz o documento.

A nota diz que o sigilo da confissão se refere "a própria essência do cristianismo e da Igreja". Na confissão, o padre age “na pessoa própria de Cristo” e “cada penitente que humildemente vai ao sacerdote para confessar seus próprios pecados, testemunha assim o grande mistério da encarnação e a essência sobrenatural da Igreja e do sacerdócio ministerial”.

Ainda segundo o documento, “na presença de pecados que integram as ofensas, nunca é permissível colocar o penitente, como condição de absolvição, a obrigação de estabelecer-se para a justiça civil, em virtude do princípio natural, incorporado em toda ordem, segundo a qual ‘nemo tenetur se detegere’”, isto é, o direito da pessoa não produzir provas contra si mesma.

“Ao mesmo tempo, porém, pertence à própria ‘estrutura’ do Sacramento da Reconciliação, como condição para sua validade, o sincero arrependimento, juntamente com o firme propósito de emendar e não reiterar o mal cometido”, acrescenta a nota.

O documento diz também que, “qualquer ação política ou iniciativa legislativa voltada a ‘forçar’ a inviolabilidade do sigilo sacramental, constituiria uma inaceitável ofensa contra a libertas Ecclesiae (liberdade da Igreja), que não recebe a própria legitimidade de Estados individuais, mas de Deus; constituiria também uma violação da liberdade religiosa, juridicamente fundante de todas as outras liberdades, incluída a liberdade de consciência de cada cidadão, quer penitente como confessor”.

Membros da comissão independente que investigou os abusos pelo clero em Portugal defenderam durante a audiência de ontem mudanças no sigilo sacramental. O coordenador da comissão, o psiquiatra Pedro Strecht, se referiu “à importância de alterar o segredo da confissão, porque ela também está prevista em outras estruturas profissionais, incluindo a dos próprios médicos quando há questões que se sobrepõem a tudo isto”.

O jurista Laborinho Lúcio lembrou que o próprio relatório da comissão final propôs “rever a imposição de sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças por membros da Igreja Católica”. Ontem, porém, ele admitiu que “há obstáculos enormes do ponto de vista do direito canônico” e que “essa é uma decisão interna da Igreja”.

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