O cardeal George Pell escreveu um memorando crítico sobre o pontificado do papa Francisco.

O memorando do cardeal australiano que morreu em Roma no último dia 10 foi publicado pelo vaticanista italiano Sandro Magister em seu blog Settimo Cielo em 15 de março de 2022, durante a Quaresma. Na ocasião o texto foi assinado com o pseudônimo Demos (povo).

Em 11 de janeiro de 2023, um dia após a morte do, Magister anunciou que "Pell foi o autor daquele memorando assinado por 'Demos', que circulou entre os cardeais na primavera passada, em vista de um futuro conclave.

O texto se divide em duas partes: “O Vaticano hoje” e “O próximo conclave”.

"Os comentaristas de todas as escolas, ainda que por razões diferentes, com a possível exceção do padre (Antonio) Spadaro, SJ, concordam que este pontificado é um desastre em muitos aspectos, uma catástrofe", disse Pell no início do texto.

No memorando, o cardeal diz que "o sucessor de são Pedro é a rocha sobre a qual está edificada a Igreja, uma grande fonte e causa da unidade mundial", e diz que "anteriormente o lema era: 'Roma locuta. Causa finita est’ [Roma falou, a discussão acabou]. Hoje é: ‘Roma loquitur. Confusio augetur' [Roma fala. A confusão aumenta].”

O cardeal Pell disse que o Caminho Sinodal da Igreja na Alemanha, um processo iniciado em 2018, “fala de homossexualidade, de mulheres sacerdotes, de comunhão para os divorciados recasados. Mas o papado se cala”.

“A Congregação para a Doutrina da Fé deve agir e falar”, disse depois, referindo-se às declarações contrárias à doutrina católica do cardeal Jean Claude Hollerich, relator geral do Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade.

Para o cardeal Pell, neste pontificado “a centralidade de Cristo no ensino se enfraquece; Cristo é removido do centro”.

Pell diz também que “a Pachamama é idolatria, embora talvez não tenha sido inicialmente entendida como tal”. A referência à Pachamama tem a ver com imagens polêmicas de uma mulher grávida, presentes no Vaticano durante o Sínodo da Amazônia em outubro de 2019.

O cardeal Pell também escreve que neste pontificado "as freiras contemplativas são perseguidas e existem tentativas para mudar os ensinamentos dos carismáticos".

“A herança cristocêntrica de são João Paulo II na fé e na moral é objeto de ataques sistemáticos. Muitos professores do instituto romano para a Família foram demitidos; a maioria dos estudantes foi embora”, lamenta.

Em meados de 2019, a Santa Sé modificou os estatutos do Pontifício Instituto João Paulo II para o Matrimônio e a Família, levando centenas de estudantes a manifestar preocupação e algumas autoridades a denunciar as mudanças como "um perigo para manter a herança" do santo polonês.

O cardeal Pell também disse que “a Academia para a Vida está em grave desordem; por exemplo, alguns de seus membros apoiaram recentemente o suicídio assistido. As Academias Pontifícias têm membros oradores convidados que apoiam o aborto”.

Há algum tempo, a Pontifícia Academia para a Vida (PAV), criada por São João Paulo II, vem promovendo uma “mudança de paradigma” na teologia moral, que incluiria o afastamento do ensinamento católico sobre a contracepção e a eutanásia.

A PAV publicou em julho o livro Ética Teológica da Vida: Escritura, Tradição e Desafios Práticos (em tradução livre. O livro só foi publicado em italiano)”, com conteúdos contrários ao Magistério da Igreja.

Decisões “politicamente corretas”

O cardeal australiano disse que “a influência política do papa Francisco e do Vaticano é insignificante. Intelectualmente, os escritos papais mostram um declínio em relação aos níveis de são João Paulo II e do papa Bento.

"As decisões e políticas são muitas vezes 'politicamente corretas', mas houve falhas graves na defesa dos direitos humanos na Venezuela, Hong Kong, China continental e agora na invasão russa" da Ucrânia.

“A crise da covid encobriu a forte queda no número de peregrinos presentes nas audiências papais e nas missas”, disse.

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“O Santo Padre tem pouco apoio entre os seminaristas e jovens sacerdotes e há uma insatisfação geral na cúria vaticana”, disse Pell.

No memorando, o cardeal Pell disse que “a falta de respeito à lei no Vaticano corre o risco de se tornar um escândalo internacional. Esses problemas foram concretizados no processo em andamento no Vaticano contra dez acusados ​​de negligência financeira, mas o problema é mais antigo e mais amplo”.

Depois de observar que “o papa mudou a lei quatro vezes durante o processo, para ajudar a acusação”, o cardeal lamenta que “o cardeal Becciu não foi tratado com justiça porque foi destituído do cargo e destituído de sua dignidade cardinalícia sem nenhuma prova. Ele não recebeu um julgamento justo. Todos têm direito a um julgamento justo".

O cardeal Angelo Becciu foi substituto da Secretaria de Estado da Santa Sé desde 2011. Em 2018, o papa Francisco o criou cardeal e o nomeou prefeito da Congregação para as Causas dos Santos.

O cardeal Becciu permaneceu no cargo até 2020, quando o papa Francisco aceitou sua renúncia após ser acusado de corrupção, por isso agora enfrenta um julgamento. Ao aceitar sua renúncia, o papa também o destituiu de seus direitos cardinalícios, incluindo sua futura participação no conclave que elegerá o próximo papa.

No memorando, o cardeal Pell disse que "como chefe do Estado do Vaticano e fonte de toda autoridade legal, o papa usou esse poder para interferir nos procedimentos judiciários".

“Às vezes, se não frequentemente, o papa governa com decretos pontifícios, motu proprio, que eliminam o direito de apelação das pessoas afetadas”, continua.

“Muitos membros do pessoal, muitas vezes sacerdotes, foram expulsos às pressas da cúria vaticana, muitas vezes sem um bom motivo”, disse o cardeal.

“As escutas telefônicas são praticadas regularmente. Não tenho certeza de quão frequentemente isso é autorizado", acrescenta.

A “grave” situação econômica do Vaticano

“A situação financeira do Vaticano é terrível. Pelo menos nos últimos dez anos quase sempre houve déficits financeiros. Antes da COVID, esses déficits eram em torno de 20 milhões de euros por ano”, diz o ex-prefeito da secretaria de Economia da Santa Sé.

“Nos últimos três anos foram cerca de 30-35 milhões de euros por ano. Os problemas remontam a antes do papa Francisco e do papa Bento”, disse.

Depois de comentar que também existe um grave problema com o fundo de pensões do Vaticano, o cardeal disse que “o papel mutável do Papa Francisco nas reformas financeiras” é “um mistério e um enigma”.

“Inicialmente, o Santo Padre apoiou fortemente as reformas. Depois, impediu a centralização dos investimentos, opôs-se às reformas e à maioria das tentativas de desmascarar a corrupção e defendeu o (então) arcebispo Becciu, no centro do establishment financeiro do Vaticano”, disse o cardeal.

“Os auditores da Price Waterhouse e Cooper foram afastados e o auditor geral Libero Milone foi forçado a renunciar em 2017, com acusações inventadas. Estavam chegando perto demais da corrupção na Secretaria de Estado”, continua.

O próximo conclave

A segunda parte do memorando do cardeal Pell fala sobre o próximo conclave.

“O Colégio dos Cardeais foi enfraquecido por nomeações excêntricas” e “muitos cardeais são desconhecidos uns dos outros, o que acrescenta uma nova dimensão de imprevisibilidade ao próximo conclave”, disse o cardeal australiano.

“Estamos mais fracos do que há 50 anos e há muitos fatores fora de nosso controle, pelo menos no curto prazo, por exemplo, a queda do número de fiéis, a frequência das presenças nas missas, o desaparecimento ou a extinção de muitas ordens religiosas”, continuou Pell.

“O novo papa deve entender que o segredo da vitalidade cristã e católica vem da fidelidade aos ensinamentos de Cristo e às práticas católicas. Não vem da adaptação ao mundo ou do dinheiro”, disse Pell.

Depois de expor o perigo dos Sínodos nacionais ou continentais, Pell incentiva a correção de "heresias" e a lembrança da doutrina católica, e cita como um desses pontos críticos a "moralidade da atividade homossexual".

O cardeal Pell também fala do perigo de um cisma, mas não o vê da "esquerda", mas da "direita", e disse que "isso é sempre possível quando as tensões litúrgicas são inflamadas e não são atenuadas".

Visita apostólica aos jesuítas

O cardeal sugere ainda uma visita ou investigação apostólica à Companhia de Jesus (jesuítas), pela sua importância e porque “a Ordem é altamente centralizada, suscetível de reforma ou ruína de cima”.

Nos últimos dias, os jesuítas estiveram no olho do furacão pelo caso do padre e artista esloveno Marko Rupnik, acusado de abusar de freiras adultas, um escândalo que surgiu na imprensa italiana no início de dezembro e que ainda não está totalmente esclarecido.

O cardeal exortou a “enfrentar a desastrosa queda numérica dos católicos e a expansão dos protestantes na América do Sul. Isso foi muito pouco mencionado no Sínodo da Amazônia”.

O Sínodo da Amazônia aconteceu no Vaticano em outubro de 2019. As questões centrais para a maioria dos bispos participantes foram a possibilidade de um sacerdócio casado e a ordenação de diaconisas.

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