Com o Sínodo da Sinodalidade, convocado pelo papa Francisco para outubro do ano que vem, a Igreja Católica está diante de ‘uma aquisição hostil’ por pessoas que ‘pensam que a doutrina é como o programa de um partido político’, disse o cardeal Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Aquisição hostil é o nome que se dá ao processo usado por investidores, por exemplo, para adquirir o controle de uma empresa por ações que não está à venda.

Müller deu uma longa entrevista ao programa The World Over, de Raymond Arroyo, da EWTN, organização de comunicação católica a que pertence ACI Digital, no dia 6 e falou do Sínodo da Sinodalidade, do silêncio do papa sobre a prisão do cardeal Joseph zen pelo governo comunista chinês e sobre a crise que a Igreja atravessa.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

 

Raymond Arroyo - Nos últimos dois anos, a Igreja tem ouvido católicos em todo o mundo, e não-católicos, podemos acrescentar, sobre seus desejos na Igreja e da Igreja. Agora, esses relatórios nacionais foram enviados a Roma. Internacionalmente, uma média de 1% a 10% dos católicos batizados realmente participou desses grupos de discussão sinodais. Com um grupo representativo tão pequeno, essas pesquisas nacionais significam muito? Eles realmente refletem aquilo com que os católicos estão mais preocupados?

Gerhard cardeal Müller - Acho que a abordagem está errada. Temos que ouvir é a palavra de Deus. E depois colocar em prática.

 

Arroyo - As preocupações nesses relatórios são curiosas. Na Inglaterra, Irlanda, França e outros lugares, cita-se a necessidade de uma Igreja mais acolhedora. Em particular, as sínteses identificam a “comunidade LGBTQ”, católicos divorciados, mulheres na Igreja. Em relação à “comunidade LGBTQ”, o relatório dos EUA afirma o seguinte: “A esperança de uma Igreja acolhedora se expressou claramente com o desejo de acompanhar, com autenticidade, pessoas LGBTQ+ em suas famílias. Para ser uma Igreja mais acolhedora, há uma profunda necessidade de discernimento contínuo de toda a Igreja sobre como acompanhar melhor nossos irmãos e irmãs LGBTQ+.” O que o senhor acha desse foco na “comunidade LGBTQ”? E como vê o sínodo em curso assumindo essas preocupações?

Cardeal Müller - O objetivo dessa ideologia é instrumentalizar o valor nominal da Igreja Católica para promover suas próprias ideias. Na realidade, todos são bem-vindos na Igreja. Mas, antes, cada um deve se arrepender de seus pecados e mudar sua vida de acordo com os mandamentos de Deus. É melhor para nós, seres humanos, seguir o caminho de Jesus Cristo e mudar nossa vida de acordo com seus mandamentos e com o Evangelho de Jesus Cristo.

Arroyo - Esses relatórios todos parecem tender na direção de uma liderança mais forte e maior presença na tomada de decisões para as mulheres. Os australianos solicitam especificamente uma discussão sobre a ordenação de mulheres. Essa questão da ordenação feminina não foi resolvida pelos últimos pontificados, incluindo o papa Francisco?

Cardeal Müller - Na Igreja, não temos nada a ver com poder político e auto-representação, mas temos que seguir a vontade de Deus e sermos responsáveis ​​pela salvação de toda a humanidade; e temos que cooperar com a vontade de Deus. Temos a missão de Jesus Cristo, levar todos à salvação, a Jesus Cristo, que é o único Redentor, não à autocriação, à auto-redenção. Essas ideologias não têm nada a ver com o Evangelho e a doutrina da Igreja Católica.

 

Arroyo – O senhor era chefe da Congregação para a Doutrina da Fé da Santa Sé. O que senhor pensa quando vê um sistema sendo criado no qual toda essa doutrina parece estar abertas à discussão?

Cardeal Müller - A base da Igreja é a palavra de Deus como revelação. Não nossas reflexões estranhas. Esssa [agenda] é um sistema de auto-revelação. Essa ocupação da Igreja Católica é uma asquisição hostil da Igreja de Jesus Cristo. Se você olhar apenas uma página, ou ler uma página do Evangelho, verá que isso não tem nada a ver com Jesus Cristo. Eles pensam que a doutrina é apenas como um programa de um partido político, que pode ser mudado por meio de votações.

 

Arroyo - O cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, falou para 200 líderes católicos dos EUA no mês passado em Roma. Ele falou de “questões complicadas”, é assim que ele as chamou –como pessoas divorciadas e recasadas recebendo a comunhão, bênçãos a pares do mesmo sexo– e disse o seguinte: “Isso não deve ser entendido simplesmente em termos de doutrina, mas em termos do encontro contínuo de Deus com os seres humanos. O que a Igreja tem a temer se esses dois grupos de fiéis tiverem a oportunidade de expressar seu sentido íntimo das realidades espirituais que vivenciam? Que esta seja uma oportunidade para a Igreja ouvir o Espírito Santo, falando também por meio deles”. O que o senhor pensa quando ouve isso, opor a doutrina à experiência de Deus com a humanidade em curso?

Cardeal Müller - Essa é uma hermenêutica do antigo protestantismo cultural. E note o modernismo: a experiência individual no mesmo nível da revelação objetiva de Deus. E Deus seria só uma parede, na qual se podem projetar as próprias ideias, e fazer certo populismo na Igreja. E certamente todos fora da Igreja que querem destruir a Igreja Católica e os seus fundamentos, estão muito contentes com essas declarações. Mas é óbvio que é absolutamente contra a doutrina católica. Temos a Revelação de Deus em Jesus Cristo. E está definitivamente encerrada e terminada em Jesus Cristo. Isso é absolutamente claro: Jesus falou sobre a indissolubilidade do matrimônio. E como é possível que o cardeal Grech seja mais inteligente do que Jesus Cristo? De onde tira sua autoridade para relativizar, subverter Deus?

 

Arroyo - Devo dizer, fico abalado quando o senhor diz, e o senhor acaba de estar em um consistório, sobre o qual falaremos em um momento, que o senhor acredita que o processo sinodal está ganhando a forma de uma aquisição hostil, de uma tentativa de destruir a Igreja. É isso que o senhor vê aqui?

Cardeal - Se conseguirem, será o fim da Igreja Católica. E devemos resistir como aos antigos hereges do arianismo. Quando Ário pensou, segundo suas ideias, o que Deus pode e não pode fazer. E é o irracionalismo: o intelecto decidir o que é verdade e o que é errado.

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Arroyo - Todos esses relatórios nacionais estão sendo sintetizados em um documento de trabalho, chamado em Roma de Instrumentum laboris. Este documento guiará as discussões do sínodo em Roma. Isso está sendo elaborado pela liderança e pelo comitê consultivo do sínodo e por um grupo de aproximadamente 20 assim chamados especialistas. São leigos, religiosas, padres católicos, um arcebispo. Quem são essas pessoas e por que foram escolhidas para elaborar este documento de trabalho? Por que não um grupo de cardeais para fazer isso?

Cardeal Müller - Eles estão sonhando com outra igreja que não tem nada a ver com a fé católica. E querem usar esse processo, para mudar a Igreja Católica – e não apenas em outra direção, mas para a destruição da Igreja Católica. Ninguém pode fazer uma mudança absoluta e substituir a doutrina revelada da Igreja, mas eles têm essas ideias estranhas, como se a doutrina fosse apenas uma teoria de alguns teólogos. A doutrina dos apóstolos é reflexo e manifestação da Revelação da palavra de Deus. Devemos ouvir a palavra de Deus na autoridade da Bíblia Sagrada, da tradição apostólica e do magistério. E todo o Concílio disse antes: não é possível substituir a Revelação, dada de uma vez por todas em Jesus Cristo, por outra revelação.

 

Arroyo – E por que o senhor acha que o papa está permitindo isso?

Cardeal Müller - Essa é uma pergunta difícil. Eu não consigo entender. Devo dizê-lo abertamente, porque a definição do papa é, com base no Concílio Vaticano II e também na história da teologia católica, que ele tem que garantir a verdade do Evangelho e a unidade de todos os bispos, e na Igreja, da verdade revelada. E [Jesus] perguntou a Pedro, e a todos os apóstolos: “Quem é Jesus Cristo? Ele é um profeta ou é um novo Elias, outro homem religioso?” E Pedro disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. E nesta confissão estão incluídas todas as outras verdades dos mistérios da fé católica ou cristã: a Trindade, a encarnação, a graça e os sacramentos. Tudo está incluído aí.

 

Arroyo - Eu ouço de pastores protestantes, de rabinos, sobre a forma como eles consideram a importância da Igreja Católica. Eles dizem: “temos que orar pela Igreja, porque se a Igreja desmorona, todos nós desmoronamos de alguma forma”. Nesta semana, a conta oficial do Sínodo do Vaticano no Twitter tuitou o seguinte do Cardeal Grech sobre o Sínodo e o Concílio Vaticano II. Ele disse: “Uma correta recepção da eclesiologia do concílio está ativando processos tão frutíferos que abrem cenários que nem mesmo o concílio havia imaginado, e nos quais se manifestam as ações do Espírito que guia a Igreja”. O que isso significa para o senhor?

Cardeal Müller - Isso vem da autoridade do cardeal Grech, da revelação particular para ele. E não só isso: é uma teoria sobre os chamados processos, que está superando a Revelação. E todo mundo que estudou o primeiro semestre de sociologia sabe: A Igreja e as autoridades da Igreja não podem mudar a Revelação, fundar uma nova igreja de acordo com as coisas e depois usar todas as agências, falando sobre o Espírito Santo. O Espírito Santo não é uma forma de presbiterianismo, ou todos esses movimentos pneumáticos fora da Igreja Católica... substituindo Jesus Cristo. É o Espírito do Pai e do Filho e o Espírito Santo que nos introduz em verdades plenas, mas ditas uma vez para sempre, reveladas em Jesus Cristo e, portanto, não apenas um impulso para um processo que nos leva, no final, contra o Revelação. E por isso temos um Credo Apostólico claro. Fico pensando que, ao mesmo tempo que o Cardeal Grech aqui se apresenta como uma super-autoridade, ele não é um teólogo reconhecido, não tem importância na teologia acadêmica. E está apresentando uma nova hermenêutica da fé católica só porque é o secretário do sínodo, que não tem autoridade sobre a doutrina da Igreja. Todos esses sínodos dos bispos e o processo não têm autoridade magisterial.

 

Arroyo - Quero mostrar algo da semana passada: várias imagens foram postadas na página do Facebook do Sínodo dos Bispos, da Santa Sé, ilustrando o Sínodo da Sinodalidade. Um retratava uma sacerdotisa em destaque, junto com um jovem com uma camiseta do orgulho LGBT. A ilustração diz: “Nós somos os jovens do futuro. E o futuro está agora animando esta missão florescente que é maior do que qualquer um de nós. Desejamos estar em conselhos consultivos e tomar decisões.” Ora, esta ilustração tinha o timbre do Sínodo dos Bispos no canto superior. Qual é a mensagem aqui e como isso é visto em Roma?

Cardeal Müller - É um desejo de assumir um poder que não existe, um desejo de ser mais inteligente que o próprio Deus. É como a forma marxista de criar a verdade demonstrando seu próprio poder. Eles têm a intenção de substituir som suas próprias ideias subjetivas uma realidade revelada de Jesus Cristo. É o caminho para a destruição da Igreja Católica.

 

Arroyo - Isso é uma jogada para o Vaticano III? É isso que eles estão tentando aqui, meio que criar uma cultura pop para o Vaticano III?

Cardeal Müller - Sim, com certeza é. É muito surpreendente que seja permitido sob a autoridade, neste contexto, do Vaticano. Dá a impressão de que é realmente possível que a Igreja [possa mudar] ... [que os organizadores do sínodo] estão autorizados a ser os ouvintes do Espírito Santo, e o Espírito Santo é apenas uma função para eles. Isso não tem nada a ver com o Espírito Santo, que se revela como Pai e Filho e Espírito Santo. Isso é uma forma de minar a fé católica e a Igreja Católica.

 

Arroyo - O senhor ficou perturbado que no último consistório [em agosto], não tenha havido menção ao cardeal Joseph Zen, [arcebispo emérito de Hong Kong] que está sendo julgado agora, preso sob falsas acusações pelos comunistas chineses. Seu nome não foi evocado no consistório. Não houve uma iniciativa de oração. Na verdade o papa disse, quando lhe perguntaram se ele achava que prender o cardeal Zen era uma violação da liberdade religiosa: “Caracterizar a China como antidemocrática, não me agrada. Porque é um país tão complexo com ritmos próprios. Sim, é verdade que há coisas que nos parecem não democráticas. Isso é verdade. O cardeal Zen, que é idoso, será julgado em poucos dias, creio. Ele diz o que sente; sente-se que há limitações aí.”

Cardeal Müller - A China não é um sistema democrático. Eles não respeitam os direitos humanos básicos de vida e liberdade. Por outro lado, ninguém precisa de 100 anos para entender a China, essa cultura, porque todos os chineses são seres humanos como nós. E estamos convencidos de que todos os seres humanos são iguais em dignidade. E todos são chamados por Deus, para se tornarem filhos e filhas de Deus. A Igreja é uma Igreja universal em todo o mundo. Temos que defender os direitos humanos básicos e nosso direito absoluto de pregar o Evangelho a todos. E por isso pensamos que todos são irmãos e irmãs em Jesus Cristo. E de modo especial temos que defender, também, nossos próprios irmãos e irmãs em Cristo, especialmente altos representantes da Igreja. O Cardeal Zen não é apenas um representante da Igreja, mas também um representante da liberdade e da liberdade do povo chinês e da dignidade do ser humano. ... E não podemos esperar esses políticos, de Pequim a Moscou a Bruxelas e a Washington. Eles não podem redimir o mundo. Esses políticos são responsáveis ​​pela situação em que nos encontramos agora, com uma possível guerra atômica. E, portanto, nosso Redentor, nossa ajuda, é Deus, e esses políticos são os responsáveis ​​pelo caos em que nos encontramos.

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