A procissão do fogaréu volta a acontecer e deve reunir cerca de 30 mil pessoas na madrugada da Quinta-Feira Santa na cidade de Goiás (GO). A tradição da procissão vem desde 1745 e marca as celebrações da Semana Santa.

Nos dois últimos anos, a procissão não foi realizada devido às medidas impostas por temor da pandemia de covid-19. “Voltar a celebrar essa procissão depois de dois anos parados é algo que balança com seu emocional. Estamos sentindo isso com todo o povo”, conta Heber da Rocha Rezende Junior, diácono e integrante da Organização Vilaboense de Artes e Tradições - Ovat, que organiza o fogaréu.

Na Idade Média, penitentes de grandes irmandades na Europa, principalmente na Espanha e Portugal, saíam nas madrugadas da Quinta-Feira Santa carregando tochas e se autoflagelando. Entravam pela porta da frente das Igrejas e saíam pelas portas à direita.

Depois, essas irmandades passaram a usar roupas rústicas. Daí se originou o hábito do farricoco, com capuz e túnica, passando de uma procissão de penitentes à encenação da perseguição do Cristo. Hoje, as grandes irmandades de Toledo e Sevilla, cidades espanholas, têm os seus próprios farricocos.

A procissão chegou ao Brasil no século XVI, em Pernambuco. De lá foi para a Bahia até chegar em Minas Gerais. A tradição na cidade de Goiás foi criada pelo padre espanhol João Perestelo de Vasconcelos Espíndola em 1745. Ele foi para o município como vigário e, a partir da tradição oral, criou a procissão para matar a saudade que tinha da Espanha.

Padre João não criou somente a procissão do fogaréu, mas fez toda a estrutura básica da encenação da Semana Santa que se realiza até hoje na cidade. Foi ele também quem criou a Irmandade dos Passos no mesmo ano da encenação, responsável pelas cerimônias até hoje, ao lado da Ovat.

“Aqui em Goiás nós celebramos a Semana Santa em três semanas. A primeira é a Semana dos Passos que é totalmente organizada pela Irmandade dos Passos juntamente com a Igreja. A segunda é a Semana das Dores em que são cantados os motetos dos passos e das dores. São motetos compostos em 1825 por Basílio Martins Braga Serra Dourada e o filho dele, cônego José Iria Braga Serra Dourada. São cantados até hoje em latim”, explica o diácono Heber. 

No Domingo de Ramos, começa efetivamente a Semana Santa e, na madrugada de quarta para quinta-feira, a cidade inteira acompanha a Procissão do Fogaréu.

Em 1960, um grupo de intelectuais liderado por Elder Camargo de Passo resolveu dar um pulso novo para a Procissão do Fogaréu que até então, com o passar dos anos, tinha uma versão bem mais resumida. A Ovat foi criada e teve a ajuda da artista Goiandira do Couto que fez um estudo sobre a o farricoco, partindo dos relatos em Goiás e das celebrações da Espanha.

A Ovat criou a cerimônia do Descendimento da Cruz em que um grupo de homens desce a imagem de Jesus Cristo da cruz e saem em procissão com todos os personagens que estão na passagem correspondente do evangelho de João.

Segundo Rezende, em 1965 começou uma nova etapa da Procissão do Fogaréu. Nas primeiras procissões as celebrações contavam com apenas seis farricocos e uma fanfarra. À frente, havia um berrante, tocado para que as pessoas fizessem silêncio. Hoje são 40 farricocos que representam os homens que foram, munidos de tochas, prender Jesus no Horto das Oliveiras.

A Procissão sai da porta do Museu da Boa Morte, que era uma Igreja, e vai até a praça Passo Camargo, no centro da cidade. Antes de sair, é cantado o Moteto dos Passos e se desce pelo lado direito da praça em direção à casa da poetisa Cora Coralina. Daí, a procissão segue até o Santuário do Rosário, onde há uma parada e o canto do segundo moteto. Nesta parada, os perseguidores procuram Jesus na Última Ceia.

A procissão segue, então, pela rua Eugênio Jardim até a esquina da rua do Carmo e vai até a Igreja São Francisco de Paula, que está em uma altura mais elevada e representa o Monte das Oliveiras. Então, há o momento da prisão do Cristo. Um farricoco vestido de vermelho toca um clarim pedindo silêncio. Em um segundo toque, aparece um farricoco de túnica branca segurando um estandarte com a imagem de Jesus flagelado. Terminado o toque, o coral canta um último moteto e o bispo faz uma homilia. Depois, a procissão segue até a Catedral de Sant'Ana.

As procissões da Semana Santa da cidade de Goiás estão em processo de registro como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A documentação encaminhada ao órgão em 2020, já teve a análise técnica preliminar da superintendência em Goiás, e agora o pedido aguarda o posicionamento da Câmara Setorial do Patrimônio Imaterial, grupo vinculado ao Conselho Consultivo e responsável pela decisão sobre os processos de reconhecimento dos bens de natureza imaterial.