O cardeal Angelo Becciu, ex-prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e ex-vice-substituto da Secretaria de Estado da Santa Sé, será julgado no Vaticano pelos crimes de apropriação indébita, prevaricação e suborno no caso dos investimentos da Secretaria de Estado em um imóvel de luxo em Londres.

O presidente do Tribunal do Vaticano recebeu um pedido de convocação a juízo do escritório do Promotor de Justiça após a conclusão de inquéritos que contaram com a colaboração das autoridades vaticanas e italianas. O presidente do tribunal determinou que a primeira audiência seja no dia 27 de julho.

A Sala de Imprensa do Vaticano emitiu um comunicado dizendo que “surgiram elementos contra o cardeal Giovanni Angelo Becciu, contra quem se está procedendo, como previsto na norma”. Em seguida, explica que as investigações, que começaram em julho de 2019 por denúncia do Instituto para as Obras de Religião, conhecido como Banco do Vaticano, e do gabinete do Revisor Geral, foram realizadas com a total colaboração entre os órgãos controladores do Vaticano e as autoridades italianas, como a Procuradoria de Roma, o Núcleo de Polícia Econômico-Financeira - G.I.C.E.F. da Guarda de Finanças de Roma, os ministério públicos de Milão e de outras cidades italianas, com suas respectivas seções da Polícia Judiciária.

Além da Itália, as investigações foram realizadas nos Emirados Árabes Unidos, Grã-Bretanha, Luxemburgo, Eslovênia e Suíça, e “permitiram trazer à tona uma vasta rede de relações com operadores dos mercados financeiros, que geraram perdas substanciais para as finanças vaticanas, tendo também se valido dos recursos destinados à obra de caridade pessoal do Santo Padre”, afirmou o comunicado.

O cardeal Becciu renunciou, em 24 de setembro de 2020, ao cargo de prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e aos seus direitos de cardeal, após revelações sobre seu envolvimento nos casos de corrupção relacionados com o investimento financeiro no imóvel em Londres e o desvio de dinheiro do Óbolo de São Pedro, fundo para a caridade do papa, que foram destinados aos negócios empreendidos pelos irmãos do cardeal.

Segundo informações da Catholic News Agency (CNA), agência em inglês do grupo ACI, o cardeal teria desviado US$ 300 milhões provenientes da Secretaria de Estado, entre os anos de 2014 e 2018, na compra de um imóvel de luxo localizado na Sloane Avenue, em Londres.

A compra foi feita quando o cardeal era substituto da Secretaria de Estado do Vaticano. O empresário italiano Raffaele Mincione participou da operação, que foi intermediada por Gianluiggi Torzi, agente imobiliário que administrava fundos importantes da Secretaria de Estado.

Para completar a quantia de 300 milhões de euros, Becciu solicitou 150 milhões de euros ao Instituto de Obras de Religião sem justificação. Outros 200 milhões de euros teriam sido obtidos através de um crédito concedido pelo banco suíço BSI, envolvido em casos de violação das leis contra lavagem de dinheiro e fraude.

O arcebispo Becciu entregou o controle de milhões de euros dos fundos de investimento do Vaticano provenientes da Secretaria de Estado e do Óbolo de São Pedro ao empresário Enrico Crasso, ex-diretor do Credit Suisse.

O cardeal também maquiou as contas do Vaticano para camuflar operações no mercado de ações, emprestando valores que eram registrados como parte do investimento imobiliário em Londres. Na operação, os empresários Mincione e Torzi podem ter lucrado até 10 milhões de euros comprando ações no mercado e vendendo-as a preços inflacionados.

Segundo a CNA, o cardeal George Pell detectou a operação quando exercia o cargo de prefeito para a Economia e pediu explicações ao então arcebispo Becciu. Iniciou-se um confronto entre ambos. Em seguida, sem consultar o papa nem o cardeal Pell, Becciu cancelou unilateralmente uma auditoria externa de todos os departamentos do Vaticano.

Outras acusações contra Becciu referem-se à utilização de dinheiro do Óbolo de San Pedro para financiar projetos empresariais de três dos seus irmãos. Ele convenceu a Conferência Episcopal Italiana a doar 300 mil euros, entre 2013 e 2015, à Cooperativa Spes, braço operacional da Cáritas Diocesana da diocese de Ozieri, na ilha da Sardenha, à qual o cardeal pertencia. Um dos seus irmãos estava à frente da cooperativa.

Após a doação, Becciu também entregou 100 mil euros dos fundos do Óbolo de São Pedro para a Cooperativa Spes, quando era controlada por ele mesmo como substituto da Secretaria de Estado.

Outro irmão do cardeal, dono de uma empresa de carpintaria, teria sido beneficiado em contratos para reformar e mobiliar várias igrejas na Angola e em Cuba, quando Becciu era núncio apostólico nesses países.

O cardeal também teria ajudado a conseguir clientes para a empresa Angel’s SRL, distribuidora de cerveja na qual outro dos irmãos Becciu era sócio majoritário e representante legal.

Os irmãos Becciu teriam reinvestido os lucros, obtidos graças aos favores do cardeal, em produtos financeiros, de participação e em valores de refúgio de baixo risco. As receitas geradas por esses investimentos teriam sido reinvestidas em fundos de investimento da Secretaria de Estado.

Além disso, o cardeal Becciu, segundo informaram vários meios de comunicação italianos, enviou dinheiro da Secretaria de Estado durante quatro anos a uma de suas colaboradoras na Sardenha, Cecilia Marogna, residente na Eslovênia.

Segundo Marogna, ela recebia um salário como consultora diplomática para o Vaticano. Ela também reconheceu que o dinheiro foi gasto na compra de artículos de luxo, como bolsas de marcas famosas, mas justificou que isso era necessário para o desenvolvimento do seu trabalho.

Marogna foi detida em Milão, em 14 de outubro de 2020, após medidas cautelares emitidas contra ela por ter desviado, declaradamente, 500 mil euros da Secretaria de Estado, mas foi liberada no dia 30 do mesmo mês.

O cardeal Becciu sempre alegou inocência e negou as denúncias por maus procedimentos dos fundos do Vaticano. Ele chegou a anunciar medidas legais contra vários meios de comunicação que noticiaram as acusações.

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Em um comunicado de 7 de outubro de 2020, insistiu na “absoluta falsidade das acusações contra ele difundidas pela imprensa, confirmando o desconhecimento de qualquer ato ilícito”.

O texto do comunicado afirma que “nem o cardeal nem seus irmãos possuem ações ou obrigações, nem tampouco participam, em fundos de investimento ou possuem contas estrangeiras”. “Nunca foram transferidos fundos procedentes da Secretaria de Estado para uso privado e pessoal dos familiares do cardeal”.

O comunicado repudia as acusações contra Cecilia Marogna, colaboradora do cardeal, e afirma que “investimentos da Santa Sé nunca foram dirigidos à sociedade Angel’s, ligada à produção de cerveja ou à sua comercialização”.

Por fim, “nem o cardeal nem seus irmãos investiram renda de atividades familiares em fundos financeiros de qualquer natureza”, diz o texto.

Além do cardeal Becciu, serão julgados o empresário Raffaele Mincione, acusado de desvio, lavagem de dinheiro e apropriação indébita, fraude e abuso de poder; Gianluigi Torzi, acusado de extorsão, estelionato, peculato e lavagem de dinheiro; Enrico Crasso, acusado de corrupção, extorsão, burla, prevaricação, falsidade ideológica, desvio, lavagem de dinheiro; e Cecilia Marogna, acusada de desvio de dinheiro.

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