Na manhã desta quinta-feira, junto com um pequeno número de membros da Cúria Romana e sacerdotes, o Papa Francisco presidiu a Missa Crismal na Basílica de São Pedro no Vaticano no marco da Quinta-feira Santa. Em sua homilia, o Santo Padre asseverou: na cruz "não há ambiguidade", "a cruz não se negocia”.

A seguir, a homilia do Santo Padre na íntegra:

“No Evangelho, vemos uma mudança de sentimentos nas pessoas que estavam a escutar o Senhor. É uma mudança dramática que nos mostra quão ligadas estão a perseguição e a cruz ao anúncio do Evangelho. A admiração suscitada pelas palavras repletas de graça que saíam da boca de Jesus durou pouco no espírito do povo de Nazaré. Uma frase que alguém murmurou em voz baixa: «Mas este, quem é? O filho de José?» (cf. Lc 4, 22).

Aquela frase tornou-se insidiosamente «viral»: «Mas, quem é este? Não é o filho de José?» Trata-se de uma daquelas frases ambíguas que se dizem por dizer. Uma pessoa pode usá-la para exprimir alegria: «Que maravilha ver alguém de origens tão humildes falar com esta autoridade!» Mas outra pode usá-la com desdém: «E isto, donde lhe veio? Que pensa ser?» Se notarmos bem, o caso repete-se quando os Apóstolos, no dia de Pentecostes, cheios do Espírito Santo, começam a pregar o Evangelho. Alguém disse: «Esses que estão a falar, não são todos galileus?» (At 2, 7).

E enquanto alguns acolheram a Palavra, outros consideraram-nos bêbados. Formalmente, parecia que se deixava em aberto uma escolha; mas, se considerarmos os frutos, naquele contexto concreto tais palavras continham um germe de violência que se desencadeou contra Jesus. É uma «frase motivadora», como quando se diz: «Isto é demais!» e agride o outro ou deixa-o e vai-se embora.

O Senhor, que às vezes ficava calado ou passava à outra margem, aqui não renunciou a comentar, desmascarando a lógica maligna que se escondia sob a aparência duma simples bisbilhotice de aldeia. «Certamente ides citar-me o provérbio: “Médico, cura-te a ti mesmo”. Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum, fá-lo também aqui na tua terra» (Lc 4, 23). «Cura-te a ti mesmo…» «Salve-se a si mesmo». Aqui está o veneno! É a mesma frase que acompanhará o Senhor até à cruz: «Salvou os outros; salve-Se a Si mesmo» (Lc 23, 35); «e – acrescentará um dos dois ladrões – salve a nós também» (23, 39). Como sempre faz, o Senhor não dialoga com o espírito maligno; responde apenas com a Sagrada Escritura. Nem mesmo os profetas Elias e Eliseu foram aceites pelos seus compatriotas, mas foram-no por uma viúva fenícia e um sírio leproso: dois estrangeiros, duas pessoas doutra religião. Os factos são contundentes e provocam o efeito que profetizara aquele idoso carismático do Simeão: Jesus seria «sinal de contradição» (Lc 2, 34).

A palavra de Jesus tem o poder de trazer à luz aquilo que uma pessoa guarda no coração, sendo habitualmente uma mistura de coisas como o trigo e o joio. E isto provoca luta espiritual. Ao ver os gestos de superabundante misericórdia do Senhor e ao ouvir as suas bem-aventuranças seguidas das invectivas «ai de vós!» no Evangelho, a pessoa vê-se obrigada a discernir e escolher. Neste caso, a sua palavra não foi acolhida, acabando a multidão, enfurecida, por tentar tirar-Lhe a vida. Mas ainda não era «a hora»; e o Senhor – diz-nos o Evangelho –, «passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho» (Lc 4, 30).

Não era a hora, mas a rapidez com que se desencadeou a fúria e a brutalidade do encarniçamento, capaz de matar o Senhor naquele preciso momento, mostra-nos que é sempre a hora. E isto mesmo é o que desejo partilhar hoje convosco, queridos sacerdotes: andam juntas a hora do anúncio jubiloso e a hora da perseguição e da cruz. A proclamação do Evangelho está sempre ligada ao abraço duma cruz concreta. A luz suave da Palavra gera clareza nos corações bem-dispostos, e confusão e rejeição naqueles que o não estão. Vemos isto constantemente no Evangelho. A boa semente lançada no campo dá fruto – cento, sessenta, trinta por um –, mas desperta também a inveja do inimigo que obsessivamente começa a semear joio durante a noite (cf. Mt 13, 24-30.36-43). A ternura do pai misericordioso atrai irresistivelmente o filho pródigo para que regresse a casa, mas suscita também a indignação e o ressentimento do filho mais velho (cf. Lc 15, 11-32). A generosidade do dono da vinha é motivo de gratidão nos trabalhadores da última hora, mas é motivo também de comentários azedos nos primeiros, que se sentem ofendidos porque o dono é bom (cf. Mt 20, 1-16).

A proximidade de Jesus, que vai comer com os pecadores, ganha corações como o de Zaqueu, o de Mateus, o da Samaritana..., mas provoca também sentimentos de desprezo naqueles que se consideram justos. A magnanimidade daquele homem que manda o seu filho pensando que seria respeitado pelos vinhateiros, desencadeia todavia neles uma brutalidade sem medida: estamos perante o mistério da iniquidade, que leva a matar o Justo (cf. Mt 21, 33-46). Tudo isto, queridos irmãos sacerdotes, nos mostra que a proclamação da Boa Nova está misteriosamente ligada à perseguição e à cruz.

Santo Inácio de Loyola, na contemplação do Presépio (desculpai-me a publicidade de família!), naquela contemplação do Presépio, exprime esta verdade evangélica quando nos faz observar e considerar o que fazem São José e Nossa Senhora, como, «por exemplo, caminham e trabalham porque o Senhor nasce na extrema pobreza e, no final de tantos trabalhos, de fome e sede, de calor e frio, de injúrias e afrontas, morre na cruz. E tudo isto por mim. Depois – acrescenta Inácio –, refletindo, tira algum proveito espiritual» (Exercícios espirituais, 116). A alegria pelo nascimento do Senhor, o sofrimento da Cruz, a perseguição.

Ora, a fim de «tirar algum proveito» para a nossa vida sacerdotal, que reflexão poderemos fazer ao contemplar esta presença precoce da cruz (da incompreensão, da rejeição, da perseguição) no início e no meio da pregação evangélica? Vêm-me à mente duas reflexões. A primeira: não nos deve maravilhar a constatação de estar presente a cruz na vida do Senhor no início de seu ministério, pois estava já antes do seu nascimento: já está presente no primeiro turbamento de Maria ao ouvir o anúncio do Anjo; está presente nas insónias de José, sentindo-se obrigado a abandonar a sua esposa prometida; está presente na perseguição de Herodes e nas agruras sofridas pela Sagrada Família, iguais às de tantas famílias que têm de exilar-se da sua pátria.

Esta realidade abre-nos ao mistério da cruz experimentada antes. Faz-nos compreender que a cruz não é um facto indutivo, um facto ocasional produzido por uma conjuntura na vida do Senhor.

É verdade que todos os crucificadores da história fazem aparecer a cruz como um dano colateral, mas não é assim: a cruz não depende das circunstâncias. As grandes cruzes da humanidade e as pequenas – digamos assim! – cruzes nossas, de cada um de nós não dependem das circunstâncias. Porque é que o Senhor abraçou a cruz em toda a sua integridade?

Porque é que Jesus abraçou a paixão inteira: abraçou a traição e o abandono dos seus amigos já desde a Última Ceia, aceitou a prisão ilegal, o julgamento sumário, a sentença desproporcionada, a malvadez sem motivo das bofetadas e cuspidelas?

Se as circunstâncias determinassem o poder salvífico da cruz, o Senhor não teria abraçado tudo. Mas quando chegou a sua hora, abraçou a cruz inteira. Porque a cruz não tolera ambiguidade; com a cruz, não se regateia!

E a segunda reflexão é esta. É verdade que há algo na cruz que é parte integrante da nossa condição humana, com os seus limites e fragilidades. Mas é verdade também que, daquilo que acontece na cruz, há algo que não é inerente à nossa fragilidade, mas é a mordedura da serpente que, vendo o Crucificado indefeso, morde-O e tenta envenenar e desacreditar toda a sua obra. Mordedura, que procura escandalizar – esta é uma época dos escândalos –, mordedura que procura imobilizar e tornar estéril e insignificante todo o serviço e sacrifício de amor pelos outros. É o veneno do maligno que continua a insistir: salva-te a ti mesmo. E nesta mordedura, cruel e dolorosa, que pretende ser mortal, aparece finalmente o triunfo de Deus. São Máximo, o Confessor, fez-nos ver que a situação se inverteu com Jesus crucificado: ao morder a carne do Senhor, o demónio não O envenenou – n’Ele, só encontrou mansidão infinita e obediência à vontade do Pai – antes, pelo contrário, unida ao anzol da cruz engoliu a carne do Senhor, que foi veneno para ele e tornou-se para nós o antídoto que neutraliza o poder do maligno.

Estas são as reflexões que me vieram à mente. Peçamos ao Senhor a graça de tirar proveito destes ensinamentos: é verdade que, no anúncio do Evangelho, há cruz; mas é uma cruz que salva. Pacificada com o Sangue de Jesus, é uma cruz com a força da vitória de Cristo que vence o mal e liberta-nos do maligno. Abraçá-la com Jesus e como Ele, desde «antes» de ir pregar, permite-nos discernir e repelir o veneno do escândalo com que o demónio procurará envenenar-nos quando chegar inesperadamente uma cruz na nossa vida. «Nós, porém, não somos daqueles que voltam atrás (hypostolos)»: diz o autor da Carta aos Hebreus (10, 39). «Nós, porém, não somos daqueles que voltam atrás», é o conselho que nos dá: nós não nos escandalizamos, porque Jesus não Se escandalizou ao ver que o seu jubiloso anúncio de salvação aos pobres não ressoava puro, mas no meio dos gritos e ameaças de quem não queria ouvir a sua Palavra ou queria reduzi-la a legalismos (moralistas, clericalistas…).

Não nos escandalizamos porque Jesus não Se escandalizou por ter de curar doentes e libertar prisioneiros no meio das discussões e controvérsias moralistas, legalistas e clericais que suscitava sempre que fazia o bem. Não nos escandalizamos porque Jesus não Se escandalizou por ter de dar a vista a cegos no meio de gente que fechava os olhos para não ver ou olhava para o lado. Não nos escandalizamos porque Jesus não Se escandalizou pelo facto da sua proclamação do ano de graça do Senhor – um ano que é a história inteira – ter provocado um escândalo público que hoje ocuparia apenas a terceira página dum jornal de província.

E não nos escandalizamos porque o anúncio do Evangelho não recebe a sua eficácia das nossas palavras eloquentes, mas da força da cruz (cf. 1 Cor 1, 17). Pelo modo como abraçamos a cruz ao anunciar o Evangelho – com as obras e, se necessário, com as palavras –, manifestam-se duas coisas: primeira, os sofrimentos que derivam do Evangelho não são nossos, mas «os sofrimentos de Cristo em nós» (2 Cor 1, 5), e, segunda, «não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor» e somos «servos, por amor de Jesus» (2 Cor 4, 5).

Quero concluir com uma recordação que tenho dum momento muito escuro da minha vida. Eu pedia ao Senhor a graça de me libertar daquela situação dura e difícil. Era um momento negro. Uma vez, fui pregar o Retiro a algumas religiosas, que, no último dia – como era costume então –, se confessaram. Veio uma irmã muito idosa, com olhos límpidos, mesmo luminosos. Era uma mulher de Deus. No fim, senti vontade de lhe pedir que rezasse por mim, dizendo-lhe: «Irmã, como penitência reze por mim, porque preciso duma graça. Peça-a ao Senhor. É que, se for a Irmã a pedila, com certeza o Senhor me la dará». Ela ficou em silêncio, parou um bom bocado, como se estivesse a rezar, depois olhou para mim e disse-me: «Certamente o Senhor conceder-lhe-á a graça, mas não se engane: dá-la-á segundo o seu modo divino». Isto fez-me muito bem: ouvir que o Senhor nos dá sempre o que Lhe pedimos, mas fá-lo ao modo divino. Este modo envolve a cruz. Não por masoquismo, mas por amor, por amor até o fim”.

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