As diretrizes de saúde pública para limitar a disseminação do novo coronavírus levantam perguntas importantes sobre a Constituição dos Estados Unidos e a liberdade religiosa e, portanto, o professor da Faculdade de Direito de Stanford, Michael McConnell, realizou uma orientação sobre estes temas.

"Não cabe ao estado decidir que o culto religioso não é importante. Cabe ao estado decidir se as formas particulares que o culto religioso poderia adotar poderiam ser perigosas para a saúde pública”, disse McConnell em uma reunião online em 13 de maio.

"O negócio do governo é decidir o que é saudável. Cabe à igreja decidir o que é importante”, disse em resumo.

McConnell, ex-juiz federal do Tribunal de Apelações do Décimo Circuito dos Estados Unidos, uniu-se ao Arcebispo de São Francisco, Dom Salvatore Cordileone, como um dos principais expositores de uma coletiva de imprensa intitulada “A Igreja, o Estado e a Pandemia". O evento foi moderado por Maggie Gallagher, diretora executiva do Instituto Bento XVI de Música Sacra e Adoração Divina, com sede em São Francisco.

O ex-juiz disse que os governos estaduais e locais têm autoridade significativa para limitar as reuniões religiosas em uma epidemia, mas devem limitá-las da mesma maneira que outras atividades comparáveis.

"Tivemos pandemias antes, mas nenhuma quarentena dessa magnitude. Nunca o que equivale ao fechamento de sinagogas, igrejas e mesquitas em todo o espectro", refletiu McConnell.

Ele disse que, embora existam algumas normas relevantes no direito constitucional, "não existe um livro de regras por aí". Essas normas não são "simples", mas "um marco para o debate, a argumentação e a tomada de decisão".

“Apesar da nossa promessa constitucional de livre exercício da religião e o non-establishment, que às vezes descrevemos como a separação da igreja e do estado, não há separação absoluta. O estado tem uma autoridade reguladora significativa mesmo no que diz respeito às atividades religiosas, e isso é especialmente verdadeiro em tempos de emergência como uma pandemia”, continuou McConnell.

O precedente principal tem mais de um século: a decisão de 1905 da Suprema Corte dos Estados Unidos no processo Jacobson vs. Massachusetts, quando o estado de Massachusetts exigiu que os cidadãos fossem vacinados durante uma epidemia de varíola.

Apesar das objeções, incluindo as objeções religiosas, "a Suprema Corte decidiu que o Estado tinha autoridade constitucional para ordenar que todos fossem vacinados contra a varíola", disse McConnell. Ao mesmo tempo, assinalou que essa decisão foi tomada "muito antes da explosão de litígios sobre liberdades civis na Suprema Corte".

O ex-juiz duvida que a Corte repita sua antiga decisão da mesma maneira, considerando os padrões atuais. Ao mesmo tempo, todas as decisões do tribunal de primeira instância sobre as objeções aos limites do coronavírus nas últimas semanas citaram este precedente.

Para McConnell, a conclusão é que "quando se enfrenta uma epidemia que ameaça a sociedade, o Estado pode implementar medidas que restrinjam os direitos constitucionais, desde que as medidas tenham uma relação real ou substancial com a crise de saúde pública" e "não sejam, sem dúvida alguma, uma violação dos direitos garantidos pela lei fundamental”.

“A igreja está sujeita à autoridade reguladora de saúde do estado. Não é absoluto, mas é uma autoridade muito substancial”, acrescentou.

Ao mesmo tempo, a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos fornece orientações significativas em meio a medidas diante das epidemias. Do ponto de vista de McConnell e de vários tribunais federais, a Primeira Emenda significa que "o culto religioso é essencial" e é "um dos direitos constitucionais mais altamente protegidos".

"Na medida em que essas ordens denigram a capacidade de praticar a religião, devido à suposição de que a religião é 'menos essencial' do que, por exemplo, as lojas de material de construção, acho que é inadmissível, inconstitucional e será castigada pela maioria dos tribunais. Por outro lado, se o estado está fazendo uma avaliação com base no risco à saúde pública, então acho que é outra história", indicou.

McConnell explica que o Estado tem o direito de impor o que a Suprema Corte chama de "leis neutrais de aplicabilidade geral". As proibições de grandes reuniões de pessoas, ou os requisitos que atendem apenas a certos protocolos de segurança, costumam afetar as atividades religiosas e não religiosas por igual.

Contudo, surgem questões de duplo padrão quando os governadores e outros funcionários públicos eximem a categorias amplas de outras atividades por ser conceitos “essenciais” ou de “manutenção da vida”, que McConnel disse que introduzem um elemento de “subjetividade”.

As ordens do estado de Kentucky, revogadas recentemente na corte federal, não eximiram as igrejas do fechamento, mas permitiram a abertura de estabelecimentos para "o sustento da vida", desde que seguissem o distanciamento social e outros regulamentos de higiene. Esses estabelecimentos incluíam lojas de material de construção, lavanderias, escritórios de advocacia e lojas de bebidas.

As igrejas podem expor perante os tribunais que são mais parecidas com essas instituições do que qualquer outra e, portanto, devem abrir seguindo precauções semelhantes.

O Arcebispo Cordileone também viu um problema com o governo "dizendo à Igreja o que é essencial", quando apenas a Igreja tem essa autoridade. Também viu um problema no governo ao decidir o que são “essenciais” para as pessoas, devido à subjetividade do conceito.  

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"O papel do governo é dizer o que é seguro e dizer que deve cumprir com essas normas de segurança. Se você puder cumprir estas normas de segurança, pode continuar funcionando. Se não puder, então, não poderia fazê-lo”, disse o arcebispo na coletiva de imprensa.

McConnell estava preocupado com o fato de alguns funcionários do governo terem um profundo mal-entendido religioso.

“O verdadeiro problema aqui, que é bastante perturbador do ponto de vista constitucional, é que muitos governadores opinaram que a atividade religiosa pode ser completamente proibida porque é essencialmente voluntária. É tratada como se você estivesse indo ao cinema”, disse McConnell.

Se bem as limitações às igrejas não pareciam inusualmente exigentes para as pessoas (já que tantas outras conglomerações semelhantes foram proibidas), McConnel disse que isto se converterá em um problema à medida que os estados comecem a liberar cada vez mais as atividades econômicas e sociais e as religiosas continuem vetadas.

A dificuldade de manter limites nas atividades das pessoas a longo prazo também mostrará a necessidade de uma melhor adaptação dos direitos constitucionais, como o exercício religioso, afirmou.

Dado que o estado pode decidir a questão de saber se os fiéis reunidos para o culto podem criar mais perigo do ponto de vista da saúde pública do que os clientes de uma loja reunidos para comprar mercadorias, McConnell disse que ainda seria cético. Tentaria confirmar que as autoridades de saúde pública fizeram esse julgamento e tentaria confirmar que julgaram corretamente.

"Eu também gostaria de saber por que estamos generalizando para todas as assembleias religiosas", disse.

"Há uma grande diferença entre mil pessoas reunidas nas bancas juntas, e uma igreja que delimitou cuidadosamente áreas de 1,5 por 1,5 metro onde uma família pode se reunir ali e não estar perto de nenhuma outra ou, por exemplo, realizar serviços ao ar livre em circunstâncias apropriadas”, acrescentou.

Qualquer generalização de que todos os serviços religiosos sejam realizados de maneira perigosa sugere uma significativa falta de interesse na liberdade religiosa, disse McConnell.

Dom Cordileone, citando interações com líderes governamentais, sugeriu que os funcionários públicos "não entendem o que podemos fazer para manter as pessoas seguras".

“Os líderes da igreja precisam se comunicar com as autoridades e informá-las sobre o que é possível. Quando pensam em um serviço de adoração, pensam em algo como uma megaigreja, de mil a 2 mil pessoas que se aglomeram em uma área cheia de gente. Não acreditam que podemos ter distância nas nossas igrejas, ou que podemos ter serviços ao ar livre”, disse o arcebispo.

Dom Cordileone citou sugestões do Instituto Tomista da Casa de Estudos Dominica, que publicou um guia sobre coronavírus e igrejas composto por um grupo de trabalho de teólogos, liturgistas e especialistas cuidados médicos.

"É um documento muito completo e detalhado sobre o que podemos fazer para nos abrir à Missa", disse o Prelado.

Os bispos da Califórnia enviaram uma carta ao governador Gavin Newsom com o documento do Instituto Tomista em anexo. Alguns dias depois, o governador "falou positivamente sobre a adoração e a necessidade da fé, mais favorável às igrejas que se abrem para a adoração", disse Dom Cordileone.

"Trata-se de ajudar as autoridades do governo a perceberem que esses tipos de medidas de segurança podem manter nosso povo seguro quando se reúnem para um culto", explicou.

Dom Cordileone e McConnell responderam a algumas perguntas da audiência informativa.

CNA, agência em inglês do grupo ACI, perguntou se as igrejas que não seguem as precauções recomendadas ou necessárias poderiam enfrentar responsabilidade civil.

“É uma ótima pergunta sem resposta. Uma pergunta muito importante, com enormes implicações práticas. Se não houver proteção contra responsabilidade ou inclusive contra ações judiciais, que são extremamente caras para se defender, mesmo que ganhe no final, a abertura será muito mais lenta neste país”, disse McConnell.

A pergunta se aplica a empregadores, instituições, lojas, universidades e outros. McConnell disse que poderia "facilmente" imaginar que os governos suavizariam as ordens de confinamento, mas que as instituições demorarão a abrir "por medo de que, se alguém pegar o vírus e puderem rastreá-lo, poderia falir”.

Em resposta a uma pergunta sobre o acesso dos capelães a alguém que morre com o coronavírus, Dom Cordileone disse que ainda não ouviu falar de um caso no qual um sacerdote não tenha podido entrar para ungir alguém que estivesse a ponto de morrer. No entanto, houve momentos em que a falta de equipamento de proteção impediu que os sacerdotes visitassem alguém em uma condição menos grave.

McConnell, citando discussões informais, afirmou que "uma série de jurisdições que, de outra forma, foram bastante implacáveis ​​em suas proibições de culto religioso, foram mais complacentes com relação à visita dos sacerdotes aos doentes no hospital”.

"Não sei se isso é exigido legalmente, mas parece ser tão obviamente humano que espero que seja verdade", afirmou.

McConnell comentou que o foco atual dos tribunais sobre a liberdade religiosa remonta apenas à década de 1990. Anteriormente, o livre exercício da religião era tratado como um direito constitucional especialmente protegido que o governo só podia violar com um interesse convincente e da maneira menos restritiva possível.

Tais proteções “exigiriam um exame bastante sensível do que exatamente é proibido e quais são as formas alternativas de proteger a saúde pública. Acho que esse seria um regime mais favorável à religião", acrescentou McConnell.

Cerca de 20 estados e o Congresso dos Estados Unidos promulgaram leis de restauração da liberdade religiosa que restauram o padrão anterior à lei estadual e federal.

Publicado originalmente por CNA. Traduzido e adaptado por Nathália Queiroz.

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