O vaticanista italiano Sandro Magister publicou em seu blog Settimo Cielo algumas prévias do primeiro volume do “Prison Journal” (em tradução livre ao português, Diário da Prisão) do Cardeal George Pell, preso injustamente por pouco mais de um ano na Austrália, após ser acusado de abuso sexual de menores que nunca cometeu.

Entre outros temas, o Purpurado reflete nesta prévia sobre os católicos na China, o papel do Papa emérito, a exortação apostólica sobre o amor na família Amoris laetitia; e a liberdade religiosa. Suas reflexões foram publicadas pela Ignatius Press.

Em 2019, o Cardeal Pell foi condenado à prisão acusado de abusar de dois menores. No entanto, em 7 de abril deste ano, foi libertado, depois que a Suprema Corte da Austrália concluiu que o júri no julgamento do Cardeal não agiu de maneira razoável, ao não encontrar possibilidade de dúvida nas acusações que enfrentava. Foi absolvido de todas as acusações.

Relatos de que o Cardeal Angelo Becciu teria transferido dinheiro para a Austrália para armar uma cilada para o Cardeal Pell atraíram a atenção internacional.

O Papa Francisco retirou o cardeal Becciu de seu cargo como prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e retirou seus direitos cardinalícios, incluindo a impossibilidade de participar do próximo conclave.

Até 2017, o Cardeal Pell liderou um esforço incentivado pelo Santo Padre para ordenar e esclarecer as finanças do Vaticano, que por muito tempo careceram de procedimentos, controles ou supervisão centralizados. O Cardeal entrou em conflito nesse trabalho com o Cardeal Becciu, que serviu no Vaticano como Substituto do Secretário de Estado.

Entre outras coisas, o Cardeal Becciu agiu para cancelar um contrato que o Cardeal Pell havia feito para uma auditoria externa das finanças do Vaticano.

Este primeiro volume das memórias e reflexões do Cardeal Pell na prisão tem 350 páginas e se refere aos primeiros 5 meses de sua prisão em Melbourne.

O Cardeal escrevia duas ou três páginas por dia que “quase sempre começavam com as suas reflexões sobre as duas leituras matinais do Breviário, uma da Bíblia e outra dos Padres da Igreja, e terminavam com uma oração”, explica Magister.

Sua cela era pequena e tinha a permissão para sair por meia hora para um pátio, sozinho. Recebia visitas duas vezes por semana. Ele não tinha permissão para celebrar a Missa e a de domingo assistia na televisão. Na zona da prisão onde estava havia assassinos e terroristas. Era submetido, como os demais, a frequentes verificações antidrogas e revistas corporais.

No entanto, diz o vaticanista, “não há nada de triste em seus diários. Em vez disso, são calmos e reconfortantes, aqui e ali com um fio de ironia. Os jogos de futebol e rúgbi australianos têm nele um comentarista partícipe. A escrita é simples e profunda ao mesmo tempo. O lamento está ausente”.

Os católicos da China

“Meu tempo na prisão não é um piquenique, mas se torna um período de férias em comparação com outras experiências na prisão. Meu bom amigo Jude Chen, natural de Xangai e agora residente no Canadá, escreveu-me sobre a prisão que sua família sofreu sob os comunistas chineses”, escreveu o Cardeal Pell em seu diário.

“Em 1958, o irmão de Jude, Paul, um seminarista, e a irmã Sophie, uma estudante do ensino médio, foram presos por serem católicos e passaram trinta anos em duas prisões diferentes, para Sophie no frio da China setentrional. A família tinha direito a uma visita de 15 minutos por mês, quando estavam em uma prisão de Xangai, e uma carta de 100 palavras por mês ao longo de três décadas. O avô de Jude, Simon, que era rico e havia construído uma igreja paroquial dedicada à Santíssima Trindade, teve todas as suas propriedades confiscadas. Jude o amava e os dois viveram na mesma casa por nove anos até a morte do idoso. Jude conta que quando perguntado sobre a sua propriedade confiscada, ele respondia: 'Tudo veio de Deus e será restituído a Deus'.

“Após o início da Revolução Cultural na primavera de 1966, os Guardas Vermelhos invadiram sua casa e ficaram desapontados ao descobrir que o avô Simon havia morrido. Consequentemente, destruíram seu túmulo, saquearam a casa e forçaram a mãe de Jude a queimar todos os seus objetos religiosos. O pai de Jude foi despedido como professor e rebaixado a porteiro".

“Aos onze anos e no ensino fundamental, Jude foi forçado a confessar aos seus quarenta colegas da turma que era um criminoso de uma família criminosa. Recorda também que seu professor dizia aos seus colegas para que se mantivessem longe dele”.

“Aos dezessete anos, o próprio Jude foi enviado durante oito anos para um campo de trabalho no subúrbio de Xangai. Enquanto estava para ir embora, seus pais lhe deram esta instrução: ‘Jude, não conserve ódio no seu coração, mas somente amor’. Este é o combustível sagrado que dá força à Igreja”.

Amoris laetitia

“A fidelidade a Cristo e ao seu ensinamento permanece indispensável para algum catolicismo fecundo, para algum despertar religioso. Este é o motivo pelo qual as ‘aprovadas’ interpretações argentinas e maltesas de Amoris laetitia são tão perigosas: vão contra o ensinamento do Senhor sobre o adultério e o ensinamento de São Paulo sobre as disposições necessárias para receber devidamente a Sagrada Comunhão”, escreve o Cardeal.

“Nos dois Sínodos sobre a Família, algumas vozes proclamaram em alta voz que a Igreja era um hospital de campanha ou um porto de refúgio. Mas esta é apenas uma imagem da Igreja e está longe de ser a mais adequada ou relevante, porque acima de tudo a Igreja deve mostrar como não adoecer e como escapar dos naufrágios, e aqui os mandamentos são essenciais. O próprio Jesus ensinou: 'Se guardares os meus mandamentos, permanecerás no meu amor' (Jo 15,10)”.

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O papel do Papa Emérito

“Sou a favor da tradição milenar de que os Papas não renunciam, de que continuam até a morte, porque isso ajuda a manter a unidade da Igreja. Os avanços na medicina moderna complicaram a situação, permitindo que os papas de hoje e de amanhã provavelmente vivam muito mais do que seus predecessores, embora sua saúde esteja gravemente debilitada”, escreve o Cardeal Pell.

“Mas é necessário esclarecer os protocolos sobre o papel de um Papa que renunciou, para reforçar as forças de unidade. Embora o Papa aposentado possa manter o título de 'Papa Emérito', deveria ser reintegrado ao Colégio Cardinalício e passar a ser conhecido como 'Cardeal X, Papa Emérito', não deveria usar a batina papal branca e não deveria ensinar publicamente”.

“Por reverência e amor ao Papa, muitos relutariam em impor tais restrições a alguém que já se sentou na cátedra de Pedro. Essas medidas provavelmente seriam melhor introduzidas por um Papa que não tenha um predecessor ainda vivo”.

Theodore McCarrick

Em uma das páginas de seu diário, o Cardeal Pell conta que recebeu um cartão do ex-cardeal Thedore McCarrick, expulso do estado clerical pelos abusos sexuais que cometeu durante décadas.

“Tem oitenta e nove anos e assinou ‘Ted McCarrick, Catholicus, olim cardinalis’, que em latim significa ‘Católico, alguma vez cardeal’. Sempre foi cortês comigo e um habilidoso ‘arrecadador de fundos’ e criador de contatos, bem conectado em todos os níveis e especialmente com os Democratas [norte-americanos]. Infelizmente, causou muitos danos em mais de um sentido".

“Embora eu reze explicitamente todos os dias pelas vítimas, nunca mantive uma categoria em minha lista de oração pelos sacerdotes abusadores e bispos delinquentes. Deveria remediar isso e rezei por Ted McCarrick, 'olim cardinalis'".

Israel Folau e a liberdade religiosa

“Israel Folau é um brilhante jogador de rúgbi, originário de Tonga e um homem piedoso, de fé cristã simples, um protestante da velha guarda, que não tem tempo para as festas católicas do Natal e da Páscoa, muito menos para a devoção à Virgem”, escreve o Cardeal Pell em seu diário.

“Parafraseou e modificou a lista de São Paulo daqueles que não 'herdarão o Reino de Deus', publicando sua advertência no Instagram: 'Bêbados, homossexuais, adúlteros, mentirosos, fornicadores, ladrões, ateus, idólatras. O inferno espera por vocês. Arrependam-se". No entanto, os funcionários do sindicato do rugby o despediram por incitar ao ódio”.

“Este caso criará precedentes importantes na luta pela liberdade religiosa, e o Lobby Cristão Australiano mostrou sentido comum ao apoiar Folau. Embora não seja a favor de condenar as pessoas ao inferno, porque este é um assunto de Deus, Folau está simplesmente afirmando os ensinamentos do Novo Testamento, quando detalha as atividades não compatíveis com a pertença ao Reino dos Céus”.

“O que é estranho é que nenhuma reclamação tenha surgido de idólatras, adúlteros, mentirosos, ladrões, fornicadores, etc., pedindo sua expulsão e demissão. Eu me pergunto quantos daqueles que foram hostis a Folau são cristãos e como podem acreditar no paraíso e no inferno. Quem está seguro de suas próprias convicções não se preocupa muito com a expressão de pontos de vista diferentes e opostos, sobretudo se os considera desprovidos de sentido”.

“Pelo contrário, as forças cada vez mais grosseiras do politicamente correto não aceitam que todas as pessoas sejam tratadas com respeito e amor, mas exigem, em nome da tolerância, não só que a atividade homossexual seja legal como os casamentos do mesmo sexo, mas todos devem aprovar essas atividades, pelo menos publicamente; e que todos sejam impedidos de pregar os ensinamentos cristãos sobre casamento e sexualidade em qualquer espaço público. Este seria precisamente o fim da liberdade religiosa”.

"Quando se perde de vista a Deus em meio à névoa, seja esta a névoa da luxúria, de possuir ou do poder, violam-se as defesas da razão e da verdade”.

Publicado originalmente em ACI Prensa. Traduzido e adaptado por Nathália Queiroz.

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