Na terceira encíclica de seu pontificado, intitulada “Fratelli Tutti”, o Papa Francisco convoca a humanidade inteira a descobrir no amor uma força que deve transformar as relações internacionais, a política, a economia e a cultura.

O novo documento, que leva por subtítulo “Sobre a Fraternidade e a Amizade Social”, tem oito capítulos e 287 parágrafos. Na introdução, o Pontífice explica que “as questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações. A elas me referi repetidamente nos últimos anos e em vários lugares. Nesta encíclica, quis reunir muitas dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão”.

O Papa adverte que “as páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas detêm-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos”.

“Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”, afirma o texto pontifício.

PRIMEIRO CAPÍTULO: AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO

No primeiro capítulo, o Santo Padre realiza uma crítica ao estado atual das relações internacionais, regionais e interpessoais, lamentando que “a história dá sinais de regressão”, porque  “reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais”.

A respeito disto, o Papa Francisco escreve que “em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte”.

Além disso, “partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis», acrescenta.

O Pontífice observa também que “a falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população, juntamente com o abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem implicitamente que tudo acaba connosco, que só contam os nossos interesses individuais”.

Ao abordar outro aspecto da atual situação negativa, o Papa Francisco observa que “no mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco”.

A respeito, o Pontífice observa que quando a crise mundial gerada pela pandemia de COVID 19 for superada, “a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender”.

O Santo Padre aborda logo o drama mundial dos migrantes, assinalando que no mundo atual, “não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os «protagonistas da sua própria promoção».

“Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos”, assinala.

Neste capítulo o Santo Pai também critica a crescente hostilidade “online”, observando que esta tendência “favorece o pululamento de formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro, num desregramento tal que se existisse no contacto pessoal acabaríamos todos por nos destruir entre nós. A agressividade social encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis e nos computadores.”.

SEGUNDO CAPÍTULO: UM ESTRANHO NO CAMINHO

Neste capítulo o Papa Francisco muda o tom e oferece uma exegese contemporânea da parábola do Bom Samaritano, assinalando que  “apesar desta encíclica se dirigir a todas as pessoas de boa vontade, independentemente das suas convicções religiosas, a parábola em questão é expressa de tal maneira que qualquer um de nós pode deixar-se interpelar por ela”.

Aplicando a parábola ao mundo atual, o Papa destaca que “ao amor não lhe interessa se o irmão ferido vem daqui ou dacolá. Com efeito, é o «amor que rompe as cadeias que nos isolam e separam, lançando pontes; amor que nos permite construir uma grande família onde todos nos podemos sentir em casa (…). Amor que sabe de compaixão e dignidade»”.

“A parábola –continua o Santo Padre- mostra-nos com que iniciativas se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum”.

O Papa assinala que diariamente nos é dada “uma nova oportunidade, uma etapa nova. Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si a dor dos fracassos, em vez de fomentar ódios e ressentimentos”.  O Pontífice confessa, observando o mundo atual que “às vezes deixa-me triste o facto de, apesar de estar dotada de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, não temos desculpas. Todavia, ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua fé a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes”.

TERCEIRO CAPÍTULO: PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO

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Este capítulo aborda o poder radical da caridade como a força capaz de transformar a sociedade humana. “As pessoas podem desenvolver algumas atitudes que apresentam como valores morais: fortaleza, sobriedade, laboriosidade e outras virtudes. Mas, para orientar adequadamente os atos das várias virtudes morais, é necessário considerar também a medida em que eles realizam um dinamismo de abertura e união para com outras pessoas. Este dinamismo é a caridade, que Deus infunde”, ressalta.

O Sumo Pontífice observa ainda que “periferias que estão próximas de nós, no centro duma cidade ou na própria família. Também há um aspeto da abertura universal do amor que não é geográfico, mas existencial: a capacidade diária de alargar o meu círculo, chegar àqueles que espontaneamente não sinto como parte do meu mundo de interesses, embora se encontrem perto de mim”.

“Há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância”, pontua.

O Papa Francisco propõe neste capítulo a urgência de relançar o conceito da função social da propriedade: “Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: «Deus deu a terra a todo género humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém»”.

“O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática.”.

QUARTO CAPÍTULO: UM CORAÇÃO ABERTO AO MUNDO INTEIRO

O Pontífice propõe neste capítulo uma radical transformação, especialmente por parte das nações mais ricas, da maneira de acolher aos migrantes e refugiados, mediante uma política radicalmente distinta a atual.

“Isto implica algumas respostas indispensáveis, sobretudo em benefício daqueles que fogem de graves crises humanitárias. Por exemplo, incrementar e simplificar a concessão de vistos, adotar programas de patrocínio privado e comunitário, abrir corredores humanitários para os refugiados mais vulneráveis, oferecer um alojamento adequado e decente, garantir a segurança pessoal e o acesso aos serviços essenciais, assegurar uma adequada assistência consular, o direito de manter sempre consigo os documentos pessoais de identidade, um acesso imparcial à justiça, a possibilidade de abrir contas bancárias e a garantia do necessário para a subsistência vital, dar-lhes liberdade de movimento e a possibilidade de trabalhar, proteger os menores e assegurar-lhes o acesso regular à educação, prever programas de custódia temporária ou acolhimento, garantir a liberdade religiosa, promover a sua inserção social, favorecer a reunificação familiar e preparar as comunidades locais para os processos de integração”, explica.

O Papa concluiu sua reflexão assinalando que “esta abordagem exige, em última análise, que se aceite com alegria que nenhum povo, nenhuma cultura, nenhum indivíduo pode obter tudo de si mesmo. Os outros são, constitutivamente, necessários para a construção duma vida plena”.

QUINTO CAPÍTULO: A MELHOR POLÍTICA

O Pontífice examina amplamente a semântica dos términos "populismo" e "liberalismo", criticando ambos; e logo explica como o amor é uma virtude que também deve permear a política.

“Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias. Exigem a decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes, que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício alto da caridade. Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no «campo da caridade mais ampla, a caridade política».

O Papa Francisco acrescenta que “esta caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu favor”.

“Sobretudo o governante é chamado a renúncias que tornem possível o encontro, procurando a convergência pelo menos nalguns temas. Sabe escutar o ponto de vista do outro, facilitando um espaço a todos. Com renúncias e paciência, um governante pode ajudar a criar aquele poliedro bom onde todos encontram um lugar”, escreve o Santo Padre e acrescenta que “na política, há lugar também para amar com ternura”.

SEXTO CAPÍTULO: DIÁLOGO E AMIZADE SOCIAL

Neste capítulo o Pontífice oferece propostas para fazer a realidade sua constante reflexão sobre a Cultura do Encontro. “O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos. A partir da própria identidade, o outro tem algo para dar, e é desejável que aprofunde e exponha a sua posição para que o debate público seja ainda mais completo”, explica.

Mas em relação ao diálogo que leva a encontro, o Papa esclarece que “o relativismo não é a solução. Sob o véu duma presumível tolerância, acaba-se por facilitar que os valores morais sejam interpretados pelos poderosos segundo as conveniências da hora. Se, em última análise, «não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, (…) não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes (…).”.

“Numa sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional. Falamos de um diálogo que precisa de ser enriquecido e iluminado por razões, por argumentos racionais, por uma variedade de perspetivas, por contribuições de diversos conhecimentos e pontos de vista, e que não exclui a convicção de que é possível chegar a algumas verdades fundamentais que devem e deverão ser sempre defendidas”, explicou o Santo Padre.

O Papa conclui este capítulo explicando que “a amabilidade é uma libertação da crueldade que às vezes penetra nas relações humanas, da ansiedade que não nos deixa pensar nos outros, da urgência distraída que ignora que os outros também têm direito de ser felizes. Hoje raramente se encontram tempo e energias disponíveis para se demorar a tratar bem os outros, para dizer «com licença», «desculpe», «obrigado»”. 

SÉTIMO CAPÍTULO: PERCURSOS DUM NOVO ENCONTRO

“O percurso para a paz não implica homogeneizar a sociedade, mas permite-nos trabalhar juntos. Pode unir muitos nas pesquisas comuns, onde todos ganham. Perante um certo objetivo comum, poderse-á contribuir com diferentes propostas técnicas, distintas experiências, e trabalhar em prol do bem comum. É preciso procurar identificar bem os problemas que atravessa uma sociedade, para aceitar que existem diferentes maneiras de encarar as dificuldades e resolvê-las”, afirma o texto.

“O caminho para uma melhor convivência implica sempre reconhecer a possibilidade de que o outro contribua com uma perspetiva legítima, pelo menos em parte, algo que possa ser recuperado, mesmo que se tenha equivocado ou tenha agido mal. Porque «o outro nunca há de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo», uma promessa que deixa sempre um lampejo de esperança”, acrescenta o Santo Padre.

Ele explica que “Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano”.

Por isso, “o perdão não implica esquecimento”. “Antes, mesmo que haja algo que de forma alguma pode ser negado, relativizado ou dissimulado, todavia podemos perdoar. Mesmo que haja algo que jamais deve ser tolerado, justificado ou desculpado, todavia podemos perdoar. Mesmo quando houver algo que por nenhum motivo devemos permitir-nos esquecer, todavia podemos perdoar. O perdão livre e sincero é uma grandeza que reflete a imensidão do perdão divino. Se o perdão é gratuito, então pode-se perdoar até a quem resiste ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão, explica o Papa.

O Papa Francisco conclui este capítulo explicando amplamente: “Há duas situações extremas que podem chegar a apresentar-se como soluções em circunstâncias particularmente dramáticas, sem se dar conta que são respostas falsas, não resolvem os problemas que pretendem superar e, em última análise, nada mais fazem que acrescentar novos fatores de destruição no tecido da sociedade nacional e mundial. Trata-se da guerra e da pena de morte”.

“Aos cristãos que hesitam e se sentem tentados a ceder a qualquer forma de violência, convido-os a lembrar este anúncio do livro de Isaías: «transformarão as suas espadas em relhas de arado» (2, 4). Para nós, esta profecia encarna em Jesus Cristo, que, ao ver um discípulo excitado pela violência, lhe disse com firmeza: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, morrerão à espada» (Mt 26, 52). Era um eco daquela antiga admoestação: «Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão. A quem derramar o sangue do homem, pela mão do homem será derramado o seu» (Gn 9, 5-6). Esta reação de Jesus, que brotou espontaneamente do seu coração, supera a distância dos séculos e chega até hoje como um apelo incessante”.

OITAVO CAPÍTULO: AS RELIGIÕES AO SERVIÇO DA FRATERNIDADE NO MUNDO”

“Como crentes, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos, não podem haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade. Estamos convencidos de que «só com esta consciência de filhos que não são órfãos, podemos viver em paz entre nós», explica.

“Chamada a encarnar-se em todas as situações e presente através dos séculos em todo o lugar da terra – isto mesmo significa «católica» –, a Igreja pode, a partir da sua experiência de graça e pecado, compreender a beleza do convite ao amor universal”, escreve o Papa.

Este capítulo inclui um importante pedido ao mundo: “Como cristãos, pedimos que, nos países onde somos minoria, nos seja garantida a liberdade, tal como nós a favorecemos para aqueles que não são cristãos onde eles são minoria. Existe um direito humano fundamental que não deve ser esquecido no caminho da fraternidade e da paz: é a liberdade religiosa para os crentes de todas as religiões. Esta liberdade manifesta que podemos «encontrar um bom acordo entre culturas e religiões diferentes; testemunha que as coisas que temos em comum são tantas e tão importantes que é possível individuar uma estrada de convivência serena, ordenada e pacífica, na aceitação das diferenças e na alegria de sermos irmãos porque filhos de um único Deus»”.

A encíclica conclui com uma oração universal ao Criador e outra oração cristã ecumênica.

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